Como olhar para Chappie (2015), o novo filme de Neil Blomkamp, senão como uma versão moderna e infantilizada de RoboCop (RoboCop – O Polícia do Futuro, 1987)? A resposta passa acima de tudo por três aspectos que me parecem cruciais para perceber o cinema que Blomkamp vem trazendo às nossas salas: os limites da relação da máquina com a corpo, o manifesto político travestido de elegante filme pipoca e, por fim, o jogo entre o grotesco PG13 e o fofinho.
(1) Máquina-carne/Máquina-mente: a herança no cinema de Blomkamp está em Verhoeven, Cronenberg e Gordon, isso é mais que óbvio. Em District 9 (Distrito 9, 2009) a citação a The Fly (A Mosca, 1986) era evidente e neste Chappie a linha narrativa parece copiada a papel de químico do referido RoboCop de 87. Essa herança coloca o realizador sul africano numa posição invulgar no mainstream americano dos nossos dias (dias onde o gore é pós-produzido em computadores e o sangue, baba e ranho jorram a contragosto) já que é dos pouco preocupados com a falência contemporâneo dos corpos orgânicos e da sua sucessiva substituição por componentes mecanizadas. Em District 9 essa substituição era um processo de infecção alienígena e o próprio mecanismo da degradação, por sua vez em Elysium (2013) era uma exposição a radiação que levava Matt Damon ao exoesqueleto mecânico e este à sua expiação. Posto isto o caso de Chappie altera esta dinâmica máquina-corpo ao insistir sobre a questão da máquina com consciência humana (o que se justifica aqui da mesma forma que se justifica falar de pessoa humana defronte de um replicant) e de a substituição do corpo perecível se dar ao nível da transferência de consciência ao invés do seu melhoramento. Assim Blomkamp solta-se (ou soltam-no por imposição do público 6-12) do horrores da putrefacção para os idílicos da inteligência artificial infinitamente transferível entre invólucros [em mimetismo daquilo que quisera ser Transcendence (Transcendence: A Nova Inteligência, 2014) de Wally Pfister].
(2) Guerra à distância: em Erkennen und verfolgen (War at a Distance, 2003) de Harun Farocki o realizador analisa algumas das imagens de bombardeamentos da guerra do golfo onde novos mísseis “infalíveis” foram usados e coloca-nos a questão não tanto do propósito dessas imagens (que revelam já todo um programa e concepções militares) mas sim da sua escolha. Todas essas imagens divulgadas pelo governo norte-americano mostravam a destruição de pontes e edifícios sem a presença de qualquer civil, isto é, construíam uma narrativa de “no casualties” biunívoca, isto é, nem mortes americanas, nem mesmo mortes iraquianas. Uma narrativa semelhante é aquela que a imagem ternurenta de Barack Nobel da Paz Obama esconde e que Snowden (e outros) ajudaram a desmascarar, a saber, o crescente número de ataques com drones em países estrangeiros. Estou em crer que Chappie funciona como alegoria perfeita para este estado de coisas, isto porque o conflito existente no filme trata de opor Chappie o simpático robot dotado de consciência e swag (que até faz bonequinhos) com Moose (alce) a bisarma armada controlada por Hugh Jackman. Isto é, o segundo corresponde ao sistema de máquina de guerra controlada à distância por um operador militar com um interface semelhante a videojogos – o drone – (Farocki pergunta-se se não será esse o destino das guerras no ocidente, manterem-se virtuais, dado o desenvolvimento das armas sem oposição possível) e o primeiro um sistema em tudo semelhante mas que é capaz da auto-gestão e que se pretende moral segundo as três leis da robótica de Asimov (I am your maker…). Assim, em modo típico do sci-fi, Blomkamp contraria a opção militar contemporânea através de uma solução utópica e benéfica para todos. É este optimismo e este cinema de causas o que mais emociona nos seus filmes: o olhar congregador sobre o Apartheid em District 9, a visão esperançosa sobre as políticas da emigração e da saúde em Elysium e agora a a alternativa militarista de Chappie fazem de Blomkamp um dos realizadores mainstream mais preocupados com o contemporâneo (e que sobre ele agem a cada filme).
(3) I fink u freeky: antes demais convido-o a clicar nesta hiperligação e a deleitar-se com o fetichismo electro-grotesco de Die Antwoord. O que aqui se ensaia não é o direito à diferença ou à estranheza, é pelo contrário o culto dessa diferença e estranheza no sentido de construir um universo entre o macabro e o repulsivo que é tão fascinante como aterrador. Isto é, e o refrão da música parece funcionar como instrumento de auto-interpretação, I think you are freaky and I like you a lot é o mote-mantra de uma freakalhice atraente que de alguma forma conserva vários aspectos de inocência infantil (como num bebé demoníaco). Se refiro o colectivo sul africano não é por acaso, é que Blomkamp escolheu os seus vocalistas (Ninja e Yolandi) para darem corpo aos pais do imberbe Chappie. Neste passe de mão o realizador convoca para o ecrã o universo de rua do grupo e toda a atmosfera que referi infectando o corpo do filme dessa panóplia de sentimentos contraditórios: Chappie é pois a convergência de todas estas intenções que vão desde o merchandising para o público juvenil até à definição de consciência, passando pela política militar do ocidente e o culto do freak – os blockbusters estão cada vez melhores!