No decurso da História da Humanidade, existem dois Maios de 1968. Existe o Maio de 1968 que foi o quinto mês do ano mil novecentos e sessenta e oito após a suposta data do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. E existe o “o Maio de 68”, uma data que traz logo à mente imagens muito agradáveis de jovens agrupados em círculo agarrados às suas violas, charros, livrinhos vermelhos e pedras em cada bolso. Sim, recomeçamos estas crónicas com uma inevitável lágrima outonal. E porquê esta súbita alusão a um dos mais bonitos meses na história do mundo, em que o bandido do de Gaulle ficou a saber de que massa era feita a brava e valorosa populaça de França (nomeada e mormente, a dos seus estudantes, vamos-revolucionar!)? Porque é precisamente nesse ponto que se inicia um dos melhores primeiros filmes que já existiram.

Esse início (com uma manifestação “civilizada” do povo a pedir melhores salários e mais emprego para os jovens, com banda filarmónica a fazer soar a suas maravilhas) não significa que em L’enfance nue (Uma Infância Atribulada, 1968) seja estabelecida de forma primária e objectiva uma relação entre essas questões sociais e o problema das crianças abandonadas pelos pais e posteriormente adoptadas por casais de acolhimento, e no caso tanto faz se por uma genuína vontade em providenciarem as melhores condições possíveis a uma criança ou por outros interesses menos nobres (aka “preciso de dinheiro”) . Não é isso que interessa aos argumentistas ou ao Maurice Pialat. Após esses momentos vérité style da manifestação, há um corte para uma família que faz compras. Um corte que marca o início “real” do filme e que é em si um anúncio do que estará por vir ao nível da montagem.
Um corte que produz um raccord até bastante suave se se pensar em muitos outros que pontuam o filme de Pialat. São estes tão inesperados, bruscos e “radicais” que a determinado momento uma pessoa pergunta-se se não foram engolidas cenas inteiras do filme. Para se certificar, até se vai ao imdb consultar a duração do filme. Está tudo certo, não há problema, é tudo uma questão de escolhas formais. Agora vamos dar uma de Slant Magazine, a revista online dos significados cosmológicos e das interpretações surreais em cada obra de cinema, e vamos interpretar esta montagem elíptica como uma ideia de correspondência com a instabilidade da vida (exterior) do pequeno François. Também não me parece de muito difícil interpretação. Mas suspeitamos que para um ou outro escriba da Slant esta edição anti-clássica terá a ver, certamente, com o assalto ao Santa Maria que tinha ocorrido oito anos antes.
L’enfance nue é um filme “realista”. Posto isto, vamos já fugir daqui e acrescentar que esse “realismo” não só é posto à prova por essa edição “buraco negro” como pelo facto da simples existência da cor provocar prazeres visuais que um tanto ou quanto nos iludem da força bruta do “tema”.
Vamos cavalgar a onda e agora mudemos a direcção para dar as boas vindas ao Captain Obvious: L’enfance nue é um filme “realista”. Posto isto, vamos já fugir daqui e acrescentar que esse “realismo” não só é posto à prova por essa edição “buraco negro” como pelo facto da simples existência da cor provocar prazeres visuais que um tanto ou quanto nos iludem da força bruta do “tema”. É estar atento, sobretudo, às cores primárias na casa do casal que recebe François, um deleite para os olhos. Uma casa de subúrbio que nos trouxe à memória, não talvez injustificadamente, a França pré-cimento existente no Mon Oncle (O Meu Tio, 1958). Ler a Slant é bonito.
Um dos momentos mais interessantes no filme é precisamente quando à matéria “realista” se acrescenta um motivo musical diegético que parece ter vindo directamente do universo paralelo mais distante. À música de Wagner sobrepõem-se não só as interpretações e os diálogos em estado bruto dos actores amadores, como também alguns sons quotidianos que parecem dessacralizar o lirismo sonoro, ou precisamente o inverso, a música a tornar sagradas as cansativas rotinas do quotidiano. Na obra-prima Van Gogh (1991), ainda se fazia melhor: colocavam-se copos a partir e sons mundanos numa taberna como “banda sonora” para a morte do pintor holandês. Voltando a esta particular cena da obra de Pialat: termina exemplarmente, a fazer justiça sobre o que se escreveu sobre a sua montagem.
Agora uma pequena história: uma vez perguntaram a um escritor, num daqueles inquéritos de Verão nas páginas centrais de um jornal, quais eram os seus livros preferidos nos campos da ficção, do ensaio e no da poesia. Dada a resposta, o jornalista notou que apenas se tratava de romances e nada das outras áreas. E vai disto, questiona o escritor sobre tal, ao que este responde assim: “nos grandes romances já lá está tudo: prosa, poesia e ensaio”. L’ enfance nue, como “romance” cinematográfico, já lá tem a sua prosa, a sua poesia, o seu ensaio e mais experimentação que em muitas declaradas obras feitas com uma panela e um saco de pevides. Produzido pelo Truffaut.