Seguimos na estrada callahaniana coleccionando corações partidos. Como programadora, sinto muitas vezes os olhos cansados de um cinema maneirista, demasiado afeiçoado a gimmicks reproduzidos até à exaustão. Torna-se, assim, mais fácil regressar ao passado para produzir estupefacção, descoberta, mesmo que – como será o caso aqui – nem sempre me depare com filmes que me despertem particular afecto. Visto que para reflectir sobre o tema desta crónica de uma forma suficientemente abrangente teria de incluir paragens obrigatórias em todas as épocas e continentes (perdoe-me o rei do melodrama por nem sequer mencionar o seu nome), aviso que vou apenas desenrolar um fiozinho do gigantesco novelo, numa espécie de escala Richter de tragédia percorrendo o histerismo de quatro obras.
La Otra (A Sombra da Outra, 1946), de Roberto Gavaldón, não é puro, é qualquer coisa como um melodrama-noir e talvez não devesse estar aqui mas é uma boa introdução ao género, uma que não nos fará desistir logo à primeira. Roberto Gavaldón constrói (co-escreve também) um jogo de reflexos antagónicos com os ingredientes basilares: moral, bem vs mal, família. Uma vez apresentadas as gémeas Méndez – María, infeliz e pobre, e Magdalena, cínica e rica – a moral perde protagonismo para os espelhos, que se encarregam de arrebatar todo o simbolismo. A maior tragédia é anunciada exactamente no momento em que María se observa no espelho do toucador da irmã, com as sumptuosas peles da mesma sobre os ombros, e um dos criados a confunde com Magdalena. A partir deste momento os reflexos e contrastes (a mansão iluminada vs o apartamento lúgubre) tomam uma carga dramática cada vez mais fascinante graças à fotografia de Alex Phillips. Será assim até ao fim, momento no qual a própria narrativa assume o seu reflexo: María acaba na prisão a pagar pelo pecado da irmã, depois de a ter assassinado para ficar com a sua vida.
Dolores del Rio manobra na perfeição as nuances das duas gémeas, nenhuma delas sendo uma caricatura. Persistem um profundo desprezo por qualquer tipo de sentimento desinteressado e acções que nada têm de nobre, num filme que nunca sucumbe à simplista ditadura do bem e do mal. Um cinismo contrastante com o natal mexicano, que vem embelezar a complexidade demoníaca das irmãs. Na mais incrível cena do filme María regressa a casa, atravessa as celebrações da consoada e é interpelada por um bando de vizinhos felizes, cuja alegria intensifica o horror do crime que está prestes a cometer. Quando Magdalena se dirige a casa da irmã para a emboscada, atravessa no mesmo local a procissão natalícia na qual as crianças marcham com velas, como um cortejo fúnebre que anuncia a sua morte. Todo o jogo de sombras que se segue ao assassinato de Magdalena é absolutamente avassalador. O espelho obrigará várias vezes María a confrontar-se com o seu acto, até à cena final em que o seu reflexo está na face do amor que perdeu. Tive a sorte de começar esta exploração por aqui mas quis o destino que até agora não me deparasse com outro melodrama mexicano tão excitante. A continuar.
Em La mujer del puerto (1934) realizado por Arcady Boytler e Raphael J. Sevilla, é que a porca do melodrama começa *mesmo* a torcer o rabo. Quando o sistema é escravo dos tradicionais elementos melodramáticos – a religião, a moral, a família – com um desprezo quase total pela narrativa (aqui inspirada em Le port, de Maupassant), começamos nós a bocejar. Rosario (Andrea Palma, a Dietrich mexicana) nasceu pobre e está destinada a ser vítima de todos os que a rodeiam. Apaixona-se por um douchebag (farei questão de incluir esta palavra em todas as crónicas que escrever) que a desonra, é maltratada pelas velhas descabeladas da porta ao lado (a mais pura encarnação do mal), é-lhe negada a dignidade de receber a boa vontade dos outros.
La mujer del puerto vai mastigando lentamente a tragédia, para depois apressar o desenrolar da história nuns meros quinze minutos. Há contudo, uma razão para ver este filme (ou duas, se incluirmos a direcção de fotografia de Alex Phillips*): no enterro do pai, Rosario acompanha o caixão completamente sozinha quando é surpreendida pelo cortejo de carnaval da aldeia em peso. A beleza desta cena é incontestável e riquíssima nos seus contrastes sendo impossível não estabelecer um paralelo com o calvário auto-infligido de María em La otra, também envolvida numa celebração que sublinha a sua agonia. O problema é que daqui para a frente é um tirinho entre abandona-a-aldeia-vira-prostituta-do-porto-e-tem- sexo-com-o-irmão (esta última parte sendo a verdadeira controvérsia para a época). No final, ela nunca mais se matava e eu nunca mais ia lanchar.
Chuto a bola para a Itália, também prolífica em dramas capazes de exasperar até a alma mais choninhas em busca do seu tearjerker. Há limites para tal. Tal como em Portugal em 2015, o grande público dos anos 40 e 50 desprezava os tesouros do neo-realismo para devorar as dezenas de melodramas que Raffaello Matarazzo perpetrava (aqui e agora o objecto de paixão é O Pátio das Cantigas mas a essência do problema não tem de todo a ver com o género). O díptico I figli di nessuno (Os Filhos de Ninguém, 1951) / L’angelo bianco (1955) (remakes que fizeram também a história do estúdio Titanus) vem partir a loiça toda da histeria. I figli di nessuno colecciona todos os chavões do melodrama: o amor de Luisa e Guido condenado pela diferença de classes, uma sogra odiosa, um bebé raptado, uma ida para o convento (sempre precedida de tentativa de suicídio), uma criança maltratada que acaba por morrer depois de descobrir quem são os seu pais e, consequentemente, uma mãe que descobre que o filho estava vivo mesmo a tempo de o ver morrer.
Na sequela L’angelo bianco o céu é o limite e a insanidade torna-se total. Passaram anos, Guido casou-se e é pai de uma menina. O filho que teve com Luisa morre e Guido separa-se da mulher mas, ao querer ficar com a custódia da filha à força, acaba por provocar um acidente no qual morrem as duas. Ponto da situação: o seu grande amor virou freira, o filho que descobre que tinha morre, a filha e a mulher também morrem. É aqui que conhece Lina que é – ta-raaaan – uma doppelgänger de Luisa, que não só engravida dele como vai parar à prisão. Vítima de uma carga de pancada brutal das colegas presidiárias, Lina casa com Guido antes de morrer para que a criança não seja – lá está – figli di nessuno mas morre para salvar o bebé do incêndio. Mas ainda não acabou: o bebé é raptado pelas presidiárias que o usam como alavanca para a liberdade. Na cena final, o bebé é entregue aos braços do pai são e salvo (que estranho), graças a Luisa, que morre (acho eu).
Não sou de rotular tudo como camp e rir que nem uma hiena qual hipster de bigode magro mas também não sou pelo miserabilismo popularucho que só usava a tragédia absurda quase como propaganda para que as pessoas esquecessem as suas miseráveis condições de vida. Serei talvez mais sensível aos melodramas que não fecham completamente o espectro dramático nas peripécias trágicas, circunscrevendo a acção a antagonismos moralistas demasiado esquemáticos. Guardarei com carinho apenas uma cena destes dois Matarazzos – a mãe que rapta a filha para que não lhe seja retirada a guarda, enfrentando um mar tempestuoso numa sequência que gravei selectivamente como fluida e realmente dramática, embora possa não ser bem assim.
Depois disto achei que precisava de uma pausa e vi o De vierde man (O Quarto Homem, 1983) de Paul Verhoeven. E com o olho a ser espremido através do buraco da porta, senti-me logo melhor.
*não é uma coincidência que apareça nomeado em relação a dois filmes neste curto texto. O prolífico director de fotografia conta com mais de duas centenas de filmes na carreira, tendo sido homenageado com uma retrospectiva no último festival de Locarno.