O Queer Lisboa terminou e os últimos dias ficaram aqui registados para os que se interessam por essas coisas como o cinema e a intimidade – ou a intimidade como cinema ou o cinema como intimidade.
Sétimo dia: a intimidade das utopias sexuais
Hoje começou o Queer Focus cujo tema a que se dedica é a economia do sexo – ou como se diz em economez as sexconomics – cujos programadores decidiram abordar por várias vertentes, desde o sexo pago, o turismo sexual, o casamento como forma de troca comercial, “o valor dos corpos e o mercado da intimidade”. Um pequeno ciclo de apenas cinco filmes sendo o primeiro Die Menschenliebe (2014) de Maximilian Haslberger, uma pequena pérola na forma como acede ao universo dos desejos de dois homens, dois personagens, possuidores de uma deficiência (no primeiro caso cognitiva, no segundo motora) que exigem o direito à intimidade, à privacidade e ao sexo a uma sociedade que tende a desconsiderá-los como seres sexuais (castrando muitas vezes os seus desejos – por preconceito moral ou por simples desconhecimento). Assim uma irmã impede o irmão de manter consigo revistas pornográficas (e todos aqueles que o rodeiam parecem incapazes de lidar com a relação não correspondida dele por uma prostituta) e um homem de cadeira de rodas ouve uma e outra vez os seus telefonemas para serviços de prostituição (hetero e homossexual) negados pela sua condição física – ou quando isso não acontece o serviço não é o ideal… A forma como estes dois homens, também actores numa escola para pessoas com deficiência, encenam a sua vida e a forma como a câmara nunca parece intrusiva apesar de ser por vezes muito gráfica é um achado – tomar consciência do direito à intimidade uma obrigação.
Mas se na verdade Baby I Will Make You Sweat (1995) de Birgit Hein só passa amanhã, também é verdade que na escrita os anacronismos são muitos e recorrentes (ainda que as boas práticas nos digam que se deve evitá-los), por isso deixo-me prosseguir este diário como se daqui não surgisse qualquer contradição temporal. O filme de Hein é o outro achado do dia. Apresentado há duas décadas no festival de Berlim foi recebido por uma audiência de feministas que viram no filme-viagem-diário de uma mulher na casa dos 60 anos que parte para a Jamaica em busca de sexo e intimidade, a expressão sexual de um pós-colonialismo imperialista da mulher branca (e germânica) sobre o jovem negro e pobre que se prostitui às turistas ricaças que lá vão passar uns dias. Uma leitura dessa natureza é incapaz de perceber dois aspectos do filme que são a meu ver fundamentais: (1) a forma como Hein, oriunda do cinema experimental, trabalha as suas imagens num contexto plástico ao converter o vídeo em 16mm e nesse trabalho de passagem reencontrar a aridez das imagens planas na sua vertente puramente pictórica onde o ralenti surge como utensílio perfeito para o efeito de expurgar o lado documental dessas imagens e a música atmosférica do colectivo POL a matéria lírica que se junta à narração, e aqui chegamos ao segundo ponto, (2) apesar de surgir apenas duas vezes num reflexo do espelho na casa de banho do aeroporto, Hein está omnipresente atrás da câmara e na banda sonora, com a sua voz que nos fala num inglês macarrónico sobre o seu envelhecimento, o facto de já não fazer sexo com ninguém há vários anos, de não dormir com ninguém há outros tantos e a Jamaica ser uma espécie de paraíso na terra na procura por um corpo com o qual possa foder e ao qual se possa agarrar durante horas. Ou seja, por um lado Hein afasta a natureza documental das suas imagens diarísticas, por outro leva-nos para um mundo de afirmação do corpo como dono e senhor das vontades e ao mesmo tempo fonte que cura a secura do recalcamento da idade. Por outras palavras, Birgit Hein cria para si (e partilha connosco) um mundo utópico onde todo o desejo se satisfaz e nesse mundo ela é feliz – it was great!
Oitavo dia: saladas exóticas
Penúltimo dia do festival, leio um artigo de antevisão do New York Film Festival pela mão de Manoha Dargis para o New York Times e não deixo de recordar uma frase que de tão óbvia parece nunca antes ter sido dita (pelo menos com esta clareza): “just because a movie comes out of a major American studio doesn’t make it bad and just because it has foreign-language subtitles and is interminably long takes doesn’t make it worth programming“. Esta frase ressoa nos meus ouvidos quando assisto às sessões de Black Stone (2015) de Gyeong-tae Roh e Batguano (2014) de Tavinho Teixeira, não porque algum deles seja um excelente filme de estúdio americano (ainda que o segundo tente passar por isso) mas porque ambos se revelam filmes cujo único interesse parece ser a componente exótica da sua origem artística. Isto é, a estranheza de ver um filme brasileiro sobre Batman e Robin que está algures entre um Andy Wharol de segunda e um John Waters de primeira (nas palavras do realizador o seu filme está entre Anton Chekhov e Beavis and Butt-head – o que é quase o mesmo) ou ver um filme Coreano com mortos vivos e rituais de magia tradicional para a cura do HIV/SIDA que é também um retrato da situação dos imigrantes nesse país e as suas condições de vida e trabalho e a juntar a isso um drama de caserna com superiores a violarem os jovens cadetes (e como se isso não bastasse há ainda a questão das mudanças climatéricas, dos desastres ambientais, a relação problemática entre um casal de imigrantes de diferentes origens…). Salganhadas vindas de longe sabem sempre melhor, mais não seja sabem diferente da comida de lata que a fábrica dos estúdios americanos sempre produz igual, mas não deixam de ser salganhadas… E convenhamos que o valor de diferença nem sempre basta para garantir o interesse ou necessidade de programação. Deste que aqui se assina pouco mais tenho a dizer.
Nono dia: cinefilia e fluídos corporais
Último dia de festival e já sinto o cansaço, já me aborrece sentar-me na sala e ver os filmes, já me aborrece sentar-me aqui ao computador e escrever estas palavras – só aliviadas pela intimidade do que escrevo, pela primeira pessoa do singular e pelo tempo que já está mais ameno. Assim e porque já não estou para fretes prefiro escrever só sobre aquilo que de alguma forma me estimulou (e todos sabemos que na tenra idade que possuo qualquer coisa é passível de estimular, basta uma festa ao de leve, um olhar mais longo, uma respiração próxima – ou uns split screens e umas referências a Pierre Étaix e Jacques Tati). Posto isto refiro Cancelled Faces (2015) de Lior Shamriz apenas como descargo de consciência e para não mais ter que falar desse mau reclame da Samsung transvestido de sessão fotográfica da Vogue. Assim fico-me apenas por Das Zimmermädchen Lynn (2014) de Ingo Haeb o último filme da competição de longas metragens de ficção e Eisenstein in Guanajuato (2015) de Peter Greenaway, o filme de encerramento.
Sobre o primeiro há que dar-lhe alguma atenção já que a aparente simplicidade germânica do filme esconde um calor cinéfilo que não se lhe esperava de partida. A trama é uma que tantas vezes se mostrou no cinema, uma criada de quarto que faz mais do que apenas puxar os lençóis e aspirar a alcatifa, ainda que aqui o tom, embora muito distante do cinema de género, faz lembrar um recente filme de Jaume Balagueró, Mientras duermes (Enquanto Domes, 2011), sobre um porteiro que também excedia a suas tarefas e se tornava obsessivo e perigoso para com os habitantes do prédio onde vivia e trabalhava. Vicky Krieps ao invés de tomar um personagem como o desse outro filme, apresenta-se como uma figura que na sua exclusão auto-imposta perde a noção das fronteiras entre público e privado, entre íntimo e social, por isso ao fazer a fascina dos quartos do hotel onde trabalha aproveita também para experimentar as roupas dos alojados, investigar os seus pertences e deles tirar ilações sobre as suas vidas – ao ponto de tornar um hábito semanal o dormir debaixo das camas dos incautos hóspedes. Não o faz com maldade nem sequer é um desejo de voyeurismo o que a atrai mais, explica-nos a certa altura que essas experiências lhe permitiram descobrir que os casais não se beijam ao acordar, pelo contrário, resmungam sobre o hálito do parceiro. Essas actividades ilícitas funcionam para o personagem e para o filme como um acesso ao espaço das reações a que ele não está enturmado. Mas o belo neste filme é percebermos que o outro mecanismo para aceder a esse mesmo espaço (ou à versão de fábula mimética dele) seja o cinema. A Lynn do título está constantemente a ver filmes, no seu computador, na televisão… ao ponto de num momento de sonho o realizador representar o acesso a esse mundo de ilusão através do espaço de um cinema de onde Lynn lança o seu olhar espantado pelo que vê – a acrescentar a isso, noutro momento de sonho, Haeb organiza uma reconstituição da cama motorizada de Heureux anniversaire (1962). Esta ideia de um personagem que só é capaz de se projectar pelo cinema e de aceder à sua emoção e à intimidade através do processo de distanciamento que é sempre a tela/lençol é no fundo a síntese narrativa e simbólica dessa doença de nome cinefilia “que eclode na puberdade mas pode ser ultrapassada com algum acréscimo de convívio”.
Sobre o segundo talvez seja de bom tom (ou mau) começar por enumerar os fluídos corporais que se libertam, por vezes em jorro, outras em simples corrimento, dos corpos que Greenaway põe em cena: sangue, diarreia, vómito, ranho, lágrimas, esperma e mijo. Para o realizador britânico a cinefilia sempre foi um território de vida onde necessariamente tudo da vida tem que estar não só presente como figurado – daí o seu típico excesso, a sua assertiva tendência para a náusea, o seu gosto por fazer confundir e (con)foder vida e arte fazendo a segunda não se poupando à primeira. Eisenstein in Guanajuato é pois um filme menos interessado no filme inacabado (leia-se inacabado pelas mãos de Eisenstein) ¡Que viva Mexico! e mais interessado no que ocupou mesa e cama do realizador russo na sua estadia latino-americana, ou seja, relega o trabalho em detrimento da vida como que afirmando que pela primeira vez Eisenstein deixou de ser uma máquina de fazer cinema e descobriu que era também gente como todos nós. Essa afirmação não é inocente por se fazer acompanhar de uma leitura (que é necessariamente revisionista) da obra de Serguei, apresentado o momento de rodagem em Guanajuato como a separação das água: “I always felt Eisenstein’s first three films were very different from the last three – why? I think the answer to that is, when you go abroad, you become a different person”. Obra e biografia fundem-se nesta leitura que encontra nos “dez dias que abalaram Eisenstein” o momento charneira em que o seu cinema passou de orquestral a íntimo – figurando (mais uma vez) a famosa questão não dita da homossexualidade do realizador o que levou a que o filme fosse proibido na Rússia. Se há nesta atitude de “concatenar” público e privado ao fazer confluir no espaço da tela a reconstituição com as imagens de arquivo através de inúmeras estratégias digitais (de onde o split screen é a mais evidente) o resultado é uma compilação audiovisual meio histérica meio epiléptica: no final da sessão dei por mim a comentar, eu até gosto da figura Greenaway no seu discurso e nas suas intenções, o que eu não suporto são os filmes…