Eu era apenas o veículo do anjo Heurtebise, e ele me tratava como seu veículo. Ele preparava sua saída.
Jean Cocteau, Diário de um desconhecido
Cry like a child , though these years make me older,
With children my time is so wastefully spent,
A burden to keep, though their inner communion,
Accept like a curse an unlucky deal.
The eternal, Joy division: Bernard Summer, Ian Curtis
Filme concebido sob os arcanos do fantasma genético da infância, L’étrangleur (O Homem do Cachecol Branco, 1970) começa com uma cena originária, fresta de fechadura oclusa pela narrativa policial: o túnel uterino perseguido em um travelling dianteiro, uma mulher na estação de trem, um foulard cor de creme, o algoz que a espera, a criança que a reconhece e persegue (em cada uma das mulheres a quem precisa “salvar” da solidão, de l’ennui de vivre, de si mesmas). Este arquetípico intróito romanesco é um “Era uma vez”, por intercessão do qual o desejo psicótico do jovem Émile se encarna na figura de um círculo modulado pelo leitmotif de uma única toada, deliquescente scherzo hipnótico, que conflagra os mesmos ritos e papéis sacrificiais, a Mesma cena: e se às vezes tudo nos aparece sob um modus fantasioso, lúdico ou semi-onírico – pelo menos sob o ponto de vista de Émile, pois o filme também esposa o do detetive travestido de jornalista, da grave “caçadora” de rastros Anna Carré, assim como do duplo ladrão do estrangulador, seu gémeo perverso-, é porque permanecemos essencialmente entrincheirados na perspectiva da criança: ao final, encontraremos Anna Carré, a mulher que não teve infância, na mesma estrada onde Émile surpreendera, quando criança, a mulher esfíngica sendo assassinada: o fim reencontra o princípio, mas desde quando saímos dali? Para o Inconsciente, não existe Não, tempo e Morte: tudo permanece lá, incrustado no mesmo espaço, entoando o mesmo refrão. O xale branco com que Émile presenteia suas vítimas com um beijo fatal é uma espécie de Macguffin fantasmático, que suscita a ronda dos entes como o encadeamento dos eventos; Anna, Émile, o ladrão “Le chacal”, o inspetor Simon Dangret se perseguem e se refratam, encenando a infatigável ciranda do Mesmo e do Outro nesta adaptação secreta do La ronde (A Ronda, 1950) de Ophüls; o espaço da Paris de L’étrangleur é um saturado quadrante imaginário, onde os personagens se entrecruzam sem cessar, estabelecem relações recíprocas e reversas (entradas, saídas de campo, uns no encalço dos outros; contracampos fulminantes, onde o rato e o gato trocam de posição e de trunfo): é um espaço de emboscada, onde os pólos se imantam para melhor enredar-se em seus vestígios de presas. Esta patrulha incessante, esta circulação centrífuga de todos na arena do filme – entre os outros, contra, cúmplices e algozes – não parece equacionada por nenhum souci de réalisme na descrição desta Paris de arrabaldes e beiras de cais que, como já se escreveu, reedita o populismo lírico de Grémillon. Antes pelo contrário: este raccord persecutório que enfeixa os personagens em um círculo mortificante e encantatório- e, de fato, no cinema miscigenado de Vecchiali, devemos admitir que ambas as possibilidades não se excluem, mas antes se relançam mutuamente: a féerie e o grotesco, o thriller “polar”e o conto de fadas psicanalítico – corresponde à visão infantil que desencadeia a maquinaria, dispõe os peões, arremessa o jogo.
Esta Paris subitamente miniaturizada (só contamos dois ou três planos gerais no filme), à altura da mão e do encalço do Outro, é uma cidade reconfigurada segundo os olhos da criança, que recorta o espaço e o tempo segundo as coordenadas de seu “fantasma familiar”; os personagens do filme se perseguem de um plano a outro porque pertencem a uma mesma família “de Desejo”, são habitados pelo mesmo fantasma: Simon, outrora membro da Resistência francesa, é um homem de meia-idade solitário, e parece ter em Anne sua primeira amante; Anne não teve infância, e o duplo ladrão de Émile é claramente uma projeção, fraternamente homossexual, do personagem. Uma “história de fundo” de abandono e solidão é comum a todos, como às vítimas de Émile: a imagem da mulher enforcada pelo cachecol branco é a cristalização de uma imago de spleen, que obseda a criança e estrutura o filme, o sonho da criança. Outro dado, desta vez mais “diegético”: para Émile, os crimes que comete não são atrocidades dirigidas a mulheres indefesas (ponto de vista da efeméride jornalística, da enquête policial, em suma do Outro: mas a perspectiva que preside a L’étrangleur é a do Mesmo, pelo menos até que o “Romanceiro familiar” de Émile começa a se desvanecer), mas justamente o contrário: são a salvação do miserabilismo de suas vidas desterradas da ribalta, exiladas da vida pública; e sabemos da importância para Vecchiali, nisto herdeiro de Renoir, da “comédia humana” do convívio social como um grande teatro ontológico, onde a Verdade do ser se revela exemplarmente: A carruagem de ouro, Femmes femmes. Émile, saturnino anjo exterminador, busca na noite uma experiência primordial de valor de uso, que o dia inclemente nos nega: se mata as mulheres, é para devolvê-las a esta Imemorial noite onde os filhos de Saturno se queimaram até o êxtase e a melíflua aniquilação; aqui, como em tudo, reside uma aspiração regressiva, que adquire uma allure mística e mítica: a Noite é o útero e o túmulo, como o Fim há de reencontrar o Princípio, o Outro o aconchegante colo do Mesmo, e tudo enfim perder-se no negrume taumatúrgico desta primeira noite de tranquilidade que Goethe identificou na Morte, noite sem sonhos. A criança em Émile exprime-se assim tanto nos percalços formais do filme (os raccords e o tratamento do espaço, que assinalam um espaço contínuo compartilhado por todos, pela mesma “família de Desejo”) quanto em seu móbil diegético: assim,L’étrangleur é, apesar dos pastéis da foto de Strouvé e os crescendos fantasistas da trilha de Vincent, uma densa aquarela expressionista, pois sob o bico-de-pena de sua limpidez cartesiana, jaz o tumultuoso ponto de vista de um inconsciente imberbe.
Perto do final, assistimos àquela que considero uma sequência chave na obra de Vecchiali: o passeio cocteaunesco pela noite suburbana de Paris, onde Émile é assaltado por todos os fantasmas da Cidade; a senha de passe desta odisséia de pesadelo é o “J’obeís”, extraído do Testamento de Orfeu, que o comissário cita para o jovem psicótico. Este episódio extraordinário exprime da maneira sentenciosa o momento, fatal para o personagem, em que a “Cena familiar” de Émile (sob a égide da qual ele vai matando as mulheres, comandado pela arquetípica sequência de abertura) começa a desagregar-se: com a entrada do duplo ladrão (O Chacal), do inspetor e de Anne, o círculo enfeitiçado da Casa familiar se dilacera, o mecanismo emperra, os fundamentos se desvanecem; essencialmente, é a intrusão do Outro que condena Émile à impotência (ele não consegue matar Anne nem a prostituta, e se deixa caçar pela armadilha do comissário), e brevemente à morte; se a princípio, o que vale para o jovem é a ideia de que aquele circuito de personagens podem vir a atualizar a família perdida (relações ambíguas com o inspetor e Anne, que o perseguem), é a descoberta do duplo que precipita sua perda, pois desmonta a engrenagem sobre a qual se assentara sua subjetividade psicótica, revelando o “Outro dentro de si”; o fantasma perdera sua insularidade “subjetivista”, familiar, e se abre à vasta Noite do mundo, merry go-round de sombras: a bicha desfigurada estilo “Dora Maar chorando”, a mulher traída que deseja revanche, a gang de trombadinhas do cais, o bêbado emplastrado de vômito e de sangue… em uma série de raccords lancinantes, são agora as quimeras da Paris noturna que possuem o rapaz, desalojando o fantasma “mamãe, papai e filhinho pederasta” (Genet) que o iluminara até então: Émile descobre em si, não a ternura desolada do menino abandonado, que o leva a matar em nome do amor e da poesia, mas a baixeza do psicopata com delirium tremens no encalço de sua presa. Então, ele chora, enlutado pelo que perdeu; e, no minuto seguinte, assume sua nova máscara, seu novo sórdido daimon: mata o cafetão que o confunde com uma bicha. Émile começa a crescer, e deve morrer por lhe ser impossível suportar o incomensurável, imundo peso desta nova máscara. Esta passagem da psicopatia lírica da “Cena familiar” para a psicopatia demoníaca da “Cena do mundo” é um dos grandes momentos do cinema contemporâneo, e uma demonstração do paradoxo fundante do cinema: como uma arte de fatura tão materialista pode chegar a encarnar o Fantasma em toda a sua exuberante pujança, o sonho em seu impetus de embriaguês, o delírio em seus esplendores e misérias?