Aproveito o facto de estarmos a lançar um dossier dedicado ao tema das mulheres no cinema, E elas criaram cinema, para produzir algumas reflexões sobre esta coisa do feminino e do masculino. A caixinha mágica ajudou. No canal Hollywood viajei até aos longínquos anos 60 para me adiantar milhares de anos, até ao futuro mais intangível. Viajei atrás para ir muito à frente, mas o gesto do maior realizador-mulherengo do século XX, Roger Vadim, é antecipatório do futuro próximo. Se em 2017 vamos assistir ao lançamento do franchise da Mulher Maravilha, então, senhoras e senhores, permitam-me que vos apresente Barbarella, a argonauta do espaço que só conhece uma religião: o amor. Baseado num comics de Jean-Claude Forest, este sci-fi campy está muito menos datado do que se possa pensar. Há uma verve, tão sexual quanto paródica, a atravessar este filme que faz dele uma diversão irresistível, mesmo hoje. A “mulher maravilha” Jane Fonda começa a matar: com um strip à la Vadim, isto é, de pernas devidamente despidas, ainda mais insinuantes por causa da gravidade zero, que as faz desenhar no ar uma coreografia de sensualidade 3D. Vadim foi o homem que lançou no cinema algumas das mulheres mais belas do século, e fez delas, tantas vezes, suas esposas ou amantes. No ecrã juntou-se o útil ao agradável. A diversão de cama, co(s)micamente especulativa, converteu-se em pura diversão fílmica.

No princípio era o verbo? No princípio eram as pernas. De quem? De Brigitte Bardot, de Jeanne Moreau, de Jane Fonda, de Jane Birkin, de… A projecção do futuro mais longínquo tem de começar na fantasia – sexual, claro! – mais louca. É isso que é o sexo em Vadim: fantasia louca onde se projectam desejos impossíveis. É mais que eloquente a forma como Bardot dá a volta à cabeça de Jean-Louis Trintignant no filme de estreia da sua longa parceria com o então marido Vadim, Et Dieu… créa la femme (E Deus Criou a Mulher, 1956). Nesse gesto nu, selvagem, verdadeiramente subversivo, ensaiava-se a mudança que aí vinha – a do cinema moderno. Vadim não é o nome mais lembrado e celebrado da chamada Nouvelle Vague, ainda que tenha recebido alguns encómios – e a baba – dos jovens críticos dos Cahiers du cinéma. O seu amor às mulheres ultrapassava os níveis do razoável. Mas, de facto, quem quer razoabilidade nestas coisas do amor erótico? Não foi François Truffaut quem escreveu: “O cinema é a arte de fazer coisas belas a mulheres belas”? Foi. E disse mais: “Os filmes reflectem ou o divertimento ou a angústia de se fazer cinema”. Pois bem, Vadim interpretou correctamente as duas propostas: fez coisas belas a mulheres belas e divertiu-se muito, mesmo muito, pelo meio. E o que passa? Passa uma energia sexual amusante. Datada? Sim, um pouco, mas o seu sentido de humor transformou as modas do seu tempo em deliciosos pedaços de paródia fílmica.
Barbarella é, toda ela, um corpo de “sins”. Ela diz “sim” a mais que uma “pausa Kit Kat” na narrativa para… a mais louca foda cósmica da história do cinema.
A certa altura, a nossa astronauta sexy é torturada pelo dissidente humano Durand Durand, cientista louco que está apostado em interromper os milhares de anos de paz que governam o cosmos. Na “Máquina dos Excessos” o verbo “tocar” ganha todo um novo significado. Felizmente a língua de Camões não trocou o predicado pelo da língua de Voltaire: tocamos um instrumento ao invés de o jogarmos (jouer). Na “Máquina dos Excessos” Durand Durand toca (em) Barbarella. Um piano diabólico que tem a capacidade de matar de prazer quem nele é… tocado. Este é apenas um dos dispositivos de tortura e prazer que clamam por Wilhelm Reich ou Georges Bataille. O êxtase é uma arma neste mundo que pensa em amor, onde – parafraseio – os anjos sensuais não fazem amor, porque eles já são, in esse, amor. É Barbarella (Barbarela, 1968) um filme feminista? Absolutamente, se entendermos por feminismo uma mobilização de vontade que faz da mulher directora (no sentido hollywoodesco de director) do seu corpo e dos seus desejos. Ela está sempre disponível para novas experiências e a ofertas de sexo pouco cavalheirescas (por exemplo, de um Ugo Tognazzi) responde com curiosidade e assertividade.
A questão é que, aqui, a mulher não se limita a gerir o seu direito – que é um poder – de dizer “não”. Barbarella é, toda ela, um corpo de “sins”. Ela diz “sim” a mais que uma “pausa Kit Kat” na narrativa para… a mais louca foda cósmica da história do cinema. Seja pelo tacto ou pelos efeitos de um psicotrópico futurista, Barbarella é dona e senhora da sua feminilidade. Ela é uma mulher que diz “sim”, a fantasia viva de qualquer homem e, contudo, de maneira alguma ela é uma personagem diminuída ou – palavrão horrível – “desempoderada”. Afinal, uma mulher não pode gostar de sexo e ser digna, forte, “super-heróica”? Vadim diz: sim. Nós dizemos sim com(o) ele. E porquê? Porque gostamos de mulheres? Sim e porque não as queremos presas – sobretudo no grande ecrã – à lógica belicista do “não”, do anti-machismo primário, da sexualidade cinzenta, teorizada, sensualmente sabotada, não divertida. Barbarella conquista o direito à diversão e, por isso, manda piropos ao anjo que não pode fazer amor, porque já é amor.

No outro lado do cosmos está Charles Bronson. Se Barbarella ou Jane Fonda é o epítome do feminino – melhor, da feminilidade – no cinema, Bronson assalta-nos com injecções cavalares de testostorona. Mesmo, ou diria até sobretudo, o Bronson mais velhinho que protagonizou alguns dos filmes urbanos de vingança mais ideologicamente dúbios dos anos 70 e 80. Falo, por exemplo, de The Mechanic (O Mecânico, 1972) e Murphy’s Law (A Lei de Murphy, 1986), dois títulos que passaram na televisão portuguesa recentemente (respectivamente, na Fox Movies e TVCine 4). Bronson é um “homem à antiga”: rosto inexpressivo, olhar profundo, bigode eloquente por cima de lábios carnudos que raramente se mexem. Poucas palavras e muita acção? Nem tanto: Bronson mexe-se tanto quanto fala. Mesmo quando persegue alguém, ele é perto de estático. O que resulta daqui? Uma presença inabalável no campo da acção. Parece que nada nem ninguém o perturba. Não haja dúvidas: Bronson nunca deixou de ser uma variação do “harmonica man” de Sergio Leone [icónica personagem de C’era una volta il West (Aconteceu no Oeste, 1968)]. O silêncio dos lábios é o seu leitmotiv tal como no rosto inerte a câmara descobre uma paisagem.
The Mechanic é um filme meticulosamente construído, de um dos realizadores que melhor souberam tirar partido dessa tão particular – particularmente viril, entenda-se – presença de Bronson: Michael Winner. Com ele Bronson filma dois dos seus filmes mais marcantes: este The Mechanic e Death Wish (O Justiceiro da Noite, 1970). Esse primeiro filme centra-se na história de um hitman em “fim de carreira” que se vê enredado numa duvidosa relação profissional com um jovem que quer seguir as suas pisadas. O que é mais apreciável neste filme são os seus minutos iniciais. Winner filma Bronson em acção. Uma acção completamente rotineira. Este veterano assassino a soldo sabe bem o que faz e fá-lo numa coreografia exacta, quase intuitiva. Vêmo-lo, em silêncio, a trabalhar. A câmara de Winner tem a solene acuidade de um Jean-Pierre Melville. Nada está a mais, tudo tem um lugar específico. A receita para a morte tem dois ingredientes fundamentais: como noções essenciais de espaço e tempo, a mise en scène e um cronómetro. The Mechanic começa exactamente assim: a falar-nos, com elegância, a linguagem do cinema.
Murphy’s Law, de J. Lee Thompson, encontra um Bronson ainda mais veterano, mas, desta feita, ele incarna um polícia recentemente divorciado, à procura de uma razão para largar a bebida. A famosa “Lei de Murphy” vai ditar aqui o destino do protagonista: tudo o que pode correr mal, com certeza que correrá mal. Na realidade, muito mal: Murphy acaba perseguido pela máfia, por uma mulher tresloucada e, imagine-se, pelos seus próprios colegas da polícia. A essa “Lei” Jack Murphy, nome da personagem de Bronson, responde com uma outra, muito sua e que diz o seguinte: “quem foder com Jack Murphy, leva troco”.
Se The Mechanic impressiona pelos seus minutos iniciais, Murphy’s Law ultrapassa o nível médio do típico “filme de vingança bronsoniano” na sua longa sequência final, toda ela desenrolada no mítico Bradbury Building [onde se filmaram Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982), Chinatown (1974) ou D.O.A. (Com as Horas Contadas, 1950)]. É notável o modo como a câmara de J. Lee Thompson percorre o espaço e parece transformar cada esquina num motivo cinético. Mais digna ainda de apreciação é a forma como o filme desfecha. Se há fera maior entre as feras esta é a mulher louca, assassina fria e destemida, que persegue Murphy. Todo o filme está cheio de tiradas machistas, e até ligeiramente homofóbicas, que brincam com ou implicam a persona austera e viril de Bronson. Mas só no fim é que este duelo algo inusitado vale um one-liner sexista. Ela está prestes a cair de um dos últimos andares do edifício, mas mesmo antes da sua queda para o inferno, Bronson mexe os lábios para disparar: “ladies first”. Masculinidade ferida? Masculinidade redimida, mas – há que conceder – a ameaça feminina foi, sem sombra de dúvida, a mais real aqui.