Ida Lupino (1918-1995) tem um lugar incontestável no cinema que se cola a um imaginário noir e se inscreve num universo de filmes fascinantes de muitos estilos e géneros. Marca a sua presença durante o período clássico, quando ergueu a sua figura frágil, (mesmo só a figura porque o temperamento era de outra dimensão), com uma voz única e irrepetível. Esta voz fez-se ouvir sob diversas formas com uma vontade férrea que não permitiu ser engolida pela máquina dominadora da big Hollywood. Queria poder fazer, tão simplesmente, o que desejava nos seus papéis como actriz e depois nos seus próprios filmes, enquanto cineasta independente. Foi ela actriz muitas vezes, argumentista, produtora, compositora de músicas e também uma grande e grande realizadora.
Falar de Ida Lupino é tarefa gigantesca na proporção exacta da escala que representa o seu papel no cinema, o seu pioneirismo na realização no feminino – a referir também a realizadora Dorothy Arzner – e a sua gigante dimensão como actriz. Para além da sua abordagem temática, rara e vanguardista, na escolha recorrente de assuntos fortes que explorava sem medo, sem vedetismos, com um olhar denso e dramático, e também, simples implicado, e humanizado. Ligava-se ao mundo das suas personagens de uma forma lúcida condensando ideias importantes nos temas que abordava.
Aqui vamos falar de um desses temas, ou melhor de um dos seus filmes, The Bigamist (1950), bom pretexto para parar e relembrar Ida Lupino, sem antes deixar de referir algumas notas de uma biografia singularíssima que merece muito mais até do que provavelmente aqui se dirá.
Ida Lupino nasceu em Inglaterra, filha de actores de teatro estudou na Royal Academy of Dramatic Art e lançou-se cedo como actriz em The Love Race, (1931), realizado por um tio, Lupino Lane. Em Inglaterra ainda trabalha com Allan Dawn em, Her First Affair (1932), e noutros filmes, mas rapidamente parte para Hollywood. Nos Estados Unidos a carreira prossegue, e o seu talento não escapa a Anatole Litvak, Lewis Millestone, William Wellman, Jean Negulesco, Archie Mayo, Michael Curtiz, Fritz Lang, Nicholas Ray, e também a Raoul Walsh, entre outros. Participará em muitos filmes de série B, aliás, uma área de eleição que marca exactamente a sua liberdade e independência, e o seu espírito insubmisso. A assinalar também papéis secundários como actriz em Peter Ibbetson (Amor Sem Fim, 1935), de Henry Hathaway e no Artists and Models (1937), de Raoul Walsh, relação que não se esgota por aqui. Diz-se que foi Walsh que fez dela uma verdadeira actriz, oferecendo-lhe três dos melhores papéis da sua carreira com os soberbos: They Drive by Night (Paixão Cega, 1940); High Sierra (O último Refúgio, 1941), e The Man I Love (1947).
O poder das grandes produtoras – Warner Bros, Columbia Pictures – não caíam bem a Lupino, daí começar por recusar papéis e a ser suspensa consecutivamente no trabalho. Na sequência de um quadro profissional que sentia desmotivador monta com o seu marido, à época, o argumentista e romancista, Collier Young, a sua produtora, The Filmakers, onde acumulará funções na produção, realização e escrita de argumentos. A filosofia da Filmakers defende a produção de filmes independentes, com pequenos orçamentos, mais afastados de temas glamour, e mais próximos de pessoas não mitificadas dirigindo-se directamente à classe média americana.
Ida Lupino realiza o seu primeiro filme, no qual não é creditada, Not Wanted (1949), como substituta do realizador Elmer Clifton que morreu durante a rodagem. Este filme chama desde logo a atenção, o tema é incomum: a gravidez acidental de uma jovem ingénua e um consequente aborto, e a culpa que instiga a protagonista ao rapto de um bebé. Segue-se uma filmografia curta, densa, com um inequívoco traço autoral que manifesta, em primeira mão, um talento marcante para lidar com aspectos formais e narrativos. O filme Never Fear (1949), mostra uma bailarina à qual é diagnosticada poliomielite, avançando um quadro de dor, luta e sofrimento. Por seu lado Outrage (1950), tem como centro uma jovem violada e todo o périplo que esta vai empreender após o incidente traumático. Mais uma vez as situações são limite, há sempre uma luta nos seus filmes, uma energia de ataque, inconformada e enérgica, que se projecta formalmente, extremando-se num trabalho intenso com as personagens – os actores.
Depois, em Hard, fast and Beautiful, (1951), temos a história de uma tenista face a uma mãe controladora que reflecte os clássicos esquemas de dependência familiar. Seguir-se-á o consagrado Hitch Hicker (1953), primeiro film noir a ser realizado por uma mulher. Aqui, Lupino, projecta-se num universo masculino, violento e inesperado, na figura de um assassino em série a assolar a vida de dois amigos pacatos que tiveram apenas o azar de o cruzar na estrada. A fuga é para a frente e o ambiente de alta tensão trabalhado com mão de noir, expõe um universo inclemente e patológico, onde sombras e clausura mostram a expressão do mal (a assinalar o detalhe da deficiência física do assassino que não fecha a pálpebra direita, adensando o clima de suspense que acompanha a malograda viagem de carro).
The Bigamist (1953), é o seu penúltimo filme, o último será The Trouble With Angels, (1966), e prosseguirá um trabalho continuado para a televisão com séries importantes (Batman, Bonanza, Twilight Zone, etc.), para as quais escreve, representa e realiza. Não deixará de continuar a trabalhar como actriz em grandes filmes como o belo e perturbador, On Dangerous Ground (Cega Paixão 1951) de Nicholas Ray, em que interpreta um papel de cega (existe um rumor que diz que Lupino também teria participado na realização). The Big Knife (No Reino da Calúnia, 1955) de Robert Aldrich, e While the city sleeps (Cidade nas Trevas, 1956) de Fritz Lang, são a destacar, também neste período.
Voltando a The Bigamist, em análise, não sendo o mais brilhante ou o mais incontestável filme da realizadora é, no entanto, um objecto singular que se eleva sintomaticamente num campo mais perturbado, por trás da aparente esquematização narrativa e da tonalidade clássica mais previsível. O argumento é de Collier Young, nesta altura já divorciado de Lupino, e Joan Fontaine é a personagem Eve, casada com Harry, representado por Edmond O’Brien. O elenco de base completa-se com a própria Ida Lupino, no papel de Phyllis. Não é muito comum Lupino entrar nos seus próprios filmes e também trabalhar com figuras famosas, preferiu sempre actores não contaminados por escolas ou por tiques à Hollywood (neste caso fala-se do facto de J. Fontaine ser na época a mulher actual de C. Young).
The Bigamist conta duas histórias de amor, duas vidas para um homem, duas mulheres, duas cidades, duas casas. Na triangulação do The Bigamist encontra-se na base o casal Eve e Harry Graham, aparentemente bem casados, a viverem em S. Francisco, e na ponta Phyllis, mulher sozinha, (que virá a casar com Harry), a viver em Los Angeles.
O arranque do filme mostra-nos o casal Eve-Harry num gabinete a tratarem do assunto que os prende no momento: a adopção de uma criança pela impossibilidade de Eve engravidar, após 8 anos de vida conjugal. Uma mise en scène discreta dispõe a situação, de forma natural e até funcional, e um compasso narrativo sóbrio apresenta as linhas gerais desta história, sob uma estética clássica. Nada a apontar. As coisas neste universo parece terem encontrado lugar para se desenrolarem à sua própria medida, mesmo que saibamos, logo à partida, que uma anunciada investigação, por parte do responsável da adopção na vida privada do casal, vai abalar o quadro estável e revelar que há por aqui complicadas pontas soltas. É o primeiro sinal destabilizador que Lupino nos mostra através do visível mal estar de Harry, pelo risco que vê agigantar-se à sua frente da sua vida ser posta a nu.
A partir daqui The Bigamist parece tomar um tom de film noir, num corpo desajustado à nomenclatura mais criminosa, mas sem deixar de lhe seguir as linhas gerais – há uma investigação e há alguém que parece culpado de qualquer coisa. Os dados estão lançados. Lupino enquadra Eva e Harry no seu habitat burguês com elementos subtis, aqui e ali, que falseiam a solidez aparente. A certa altura umas cortinas servem como limite ao quadro teatral onde se desenvolve num plano fixo uma conversa, após a partida de Mr Jordan, que visita o casal. Harry procura justificar a Eve o seu mau humor perante a investigação abusiva, ao mesmo tempo que informa que viajará para Los Angeles, onde vai regularmente em trabalho. A cena mostra-se como um jogo de mentiras, frontalidade encenada que serve ainda, utilmente, para recolher informação antecipada. E o filme agarra, absorve, porque trabalha engenhosamente os detalhes, trabalha esta montagem das partes que não encaixam no guião da vida daquelas pessoas. As coisas deixam de servir à superfície. A fria Eve brinca com o soldado de dar corda, o brinquedo substitui-se à criança que não existe e ao desejo de a ter, e joga com o efeito, talvez singelo, talvez cliché, da maternidade a ressurgir. Perdoam-se estes detalhes a Lupino, esta singeleza faz parte desta construção, desta narrativa que se molda muito bem ao cenário real e afectivo que a realizadora constrói e precisa de sustentar. Mas nada é demais, nada é demasiado suavizante, porque as pequenas coisas têm um espaço importante nesta história e vão existindo sem grande ostentação.
O filme avança com a investigação de Mr Jordan e rapidamente sem alarde, nem sinal dramático, num seguro alinhamento narrativo composto para o efeito, já estamos na segunda casa de Harry em Los Angeles, e a segunda vida fica a descoberto. Podia Harry ter escapado quando Mr Jordan o segue e lhe toca à campainha (do 2.º habitat, da 2.ª vida), mas o anunciado choro em off de um bebé denuncia que ali existe mais história a contar. Não há volta a dar-lhe e face a esta nova realidade é tempo de reajustar as verdades. Bonito é o momento que vem justificar a dupla vida do protagonista, a bigamia proposta no título, através de um flashback, que vai relatar o encontro de Harry e Phyllis num autocarro turístico. Sente-se a solidão de Harry face a uma Los Angeles que se estende à sua frente, e aliamo-nos empática e naturalmente a essa solidão.
O acaso vai então levá-lo a um passeio de autocarro por Beverly Hills, numa visita guiada às mansões das estrelas. Acaso fortuito e conveniente que coloca no banco ao lado dele Phyllis (a que vai ser a 2.ª mulher). O que é fascinante é a forma falsamente ligeira como Lupino nos mostra o momento, como escolhe este passeio, mostra as fachadas, fala de gente real, (real de Hollywood), e ainda com humor faz referência à casa do próprio actor Edmund Gween, o Sr. Jordan, o Pai Natal do filme Miracle on 34th Street (De Ilusão Também Se Vive, 1947) — aliás antes já houve outra graça acerca do Pai Natal-Sr Jordan que lhes iria trazer a criança adoptada.
Na verdade o humor está presente ao longo do filme e pontua com ligeireza alguns momentos. Harry quando entra no autocarro comentará em off: “Eu gosto de filmes mesmo que não me interesse saber onde vive o Clark Gable”. É nesta lição desinteressada de estrelatos e artifícios que Ida Lupino se afirma, brinca, ironiza.
Neste primeiro encontro é sob um diálogo feito de algumas pequenas graças, típicas de um certo mal estar entre desconhecidos, que a relação Harry-Phyllis começa a fazer-se, a partir daqui tudo pode acontecer, tudo vai acontecer. Lupino junta as duas solidões e torna impossível ajuizar seja o que for, moralizar, ou até sentimentalizar a desgraça do desejo dividido, da impossibilidade de escolher, etc., etc. Filma um encontro entre dois desconhecidos e a formação de uma intimidade. Há na forma como ela se prende às personagens um sentido de justeza que se resolve apenas com alguns planos que jogam entre o interior e o exterior do autocarro. E continua assim a filmar por aí fora, as despedidas no vão das escadas, a dança, o restaurante chinês, o beijo tardio, tudo sem precipitação. Harry-Phyllis tão naturalmente, como o acaso, aproximam-se e as tentativas de voltar atrás por parte de Harry saem frustradas. Haverá sempre qualquer coisa que o atira para Phyllis. Mesmo depois de se querer afastar, de Eve se aproximar, da adopção em marcha, nada funciona. Phyllis engravida e Harry não foge, é um homem partido, dividido, sem escapatória. Ele bem tenta, tentou, e nada resulta, a engrenagem não pára e impede-o de agir. Ou antes ele só consegue andar para a frente, não consegue dizer não, e acaba por casar com Phyllis.
Lupino torna a narrativa por vezes mais pesada, mais noir, o décor fica mais sombrio: cortinas esvoaçam na janela do quarto de Harry-Eve, ela dorme, ele pensa e repensa, maquina soluções, num ambiente escuro atravessado por sombras. A câmara mexe-se mais que habitualmente e as personagens ficam mais quietas, o espaço parece um contentor sombrio de desejos. Lupino consegue condensar o mal estar crescente da personagem com um sentido incrível da sua impotência, da sua quebra interna, da sua fragilidade.
Harry começa a ter ‘’reflexos de criminoso’’, a ter medo de ser apanhado, a ter consciência que as coisas começam a ficar perigosas, presas por fios quebradiços. Eve visita-o em Los Angeles, janta com ela deixa-a no aeroporto e volta para Pyllis “a outra metade da minha esquizofrenia”, dirá, lúcido, consciente. E quando está quase a separar-se de Phyllis temos uma visão de Ida Lupino, actriz, tocante, grandiosa, alagada em lágrimas a pedir, a pedir tão legitimamente na sua inocência que Harry volte para ela. Ela ainda não sabe da verdade, não teve ainda acesso a ela, porque Lupino reserva esse momento para o final e deixa o filme acontecer e explicar-se por si. Todo o jogo dramático de Lupino, é de resto, sem mácula, completamente entregue a uma personagem de mulher plena em delicadeza, e intensidade, num impressionante jogo interno e afectivo. Terminado o flashback o presente impõe-se e é tempo para Harry de se entregar à justiça. A verdade afirma-se e a bigamia condenável tem aqui um espaço relativo de censura, o juiz parece empatizar com o réu enfatizando o quanto o caso é “irónico, tragicamente irónico”. A sentença fica adiada e o espectador fica com uma história que se pode completar na sua cabeça, à sua justa medida. The Bigamist não tem o fulgor formal de Outrage, ou a angústia de Hitch Hicker, ou toda a linha mais selvagem e impura que outras obras manifestam, e pode ser menos surpreendente, mais banal, num certo sentido. Mas, esta história improvável, consegue um apuramento narrativo admirável, com uma sobriedade única no tratamento, que por detrás de um formato clássico projecta uma história intensa e inconformada, com actores incríveis – a Lupino em especial – tudo isto num quadro tragicamente irónico.
Aproxima-se muitas vezes Ida Lupino a Fuller pela marca autoral e a crueza do seu universo, ou a Ray pela dimensão infinita e dramática das suas personagens, ou ainda, à nobreza tocante da obra de Leo McCarey. Pode ainda pensar-se numa proximidade a Frank Borzage, por uma fulgurante poética que atravessa as imagens e uma fragilidade humana face à violência da vida.
Ida Lupino tem voz própria e o que ela consegue sempre dar, num quadro noir, trágico, seja ele formal, temático ou narrativo, é um brilho intenso às imagens que contam histórias que se superam a si próprias. Viva a Lupino.