Eldorado XXI (2016) de Salomé Lamas surge como uma interpretação contemporânea do filme etnográfico quando a potência testemunhal da câmara já perdeu em grande medida a sua relevância e o real foi substituído por paraficções — para usar o termo da realizadora. Etnografia essa feita então à luz de um cinema estruturalista à la James Benning ou dos olhares distendidos de realizadores como Tsai Ming-liang, Lav Diaz e Wang Bing (do qual se cristalizou na expressão slow cinema).
Em boa verdade esta segunda longa metragem de Lamas parece resultar, quase directamente, do seu trabalho nas curtas metragens e nos filmes de instalação (ou, senão o resultado, pelo menos estabelece com eles uma ligação profunda e de múltiplas interpenetrações). A forma como a câmara de Lamas e Luis Armando Arteaga (o seu director de fotografia) se debruça de longe sobre a paisagem nevada dos Andes peruanos é semelhante aos demorados planos de Encounter with Landscape – x3 (2012) ou do recente A Torre (2016) e o desejo de recolher testemunhos pessoais é o mesmo que já se manifestara em A Comunidade (2012), Terra de Ninguém (2012) e Le Boudin (2014). Neste sentido Eldorado parece ser o paroxismo do seu cinema de veia documental, e paradoxalmente (ou nem tanto assim) é aqui que se lançam já as bases para as suas incursões pelo cinema propriamente ficcional: Ubi Sunt I-III (2017) e Coup de Grâce (2017).
Esta compreensão do filme no conjunto da obra da cineasta é uma que só é possível num exercício reflexivo à posteriori, isto porque Eldorado XXI se apresenta como um objecto audiovisual de formas muito livres e como tal constantemente surpreendentes. Surpresa essa que vem do modo como Lamas (juntamente com Telmo Churro, o seu montador) uma e outra vez testam os limites da previsibilidade das durações, das escalas e das variações de luminosidade entre os raccords, ou mesmo as mutações de som (trabalho de Miguel Martins) que fazem coligir entrevistas, anúncios radiofónicos e testemunhos escabrosos com batimentos de coração, escorrer de águas no interior de uma caverna ou gemidos de animais agónicos. Este gosto de esticar (do ponto de vista temporal, mas também do ponto de vista estético) ao ponto da ruptura os automatismos do que é uma possível e rudimentar linguagem do cinema (nas formas e nas estruturas — visuais, auditivas e narrativas) é o que permite a Eldorado transcender a qualidade exótica e misteriosa do local que retrata, reintroduzindo-o depois segundo a marca da experiência sensorial. Ou então pelo prisma cinéfilo que recorda de uma banda Werner Herzog e de outra as revisitações recentes do western pela perspectiva agreste da terra de ninguém onde o crime e a desordem reinam sobre todos aqueles que tentaram a sua sorte aquando da febre do ouro. Aliás, que deliciosa double bill alva de neve se faria entre este filme e o último de Tarantino, a mesma suspensão da moral em pleno faroeste e um não muito diferente humor, fino e ácido, que infecta todas as situações).
Salomé Lamas recorda-nos da nossa posição enquanto espectadores do mundo, sempre a criar as nossas paraficções a partir daquilo que são as nossas percepções (lacunares) do real.
Mas claro, não há como escapar ao vórtice que tudo absorve: o plano de 57 minutos que ocupa a primeira metade do filme. Um plano fixo picado que começa ao entardecer com a luz do crepúsculo (nada dos amarelos doces que costumamos associar a esses momentos, aqui tudo é cinzento, castanho e azul) e se torna progressivamente mais escuro até ao breu total, apenas pontuado pelas lanternas dos milhares de trabalhadores que percorrem (para cima e pra baixo) o acesso à mina, na hora da mudança de turno. Esta introdução ao universo da La Rinconada e Cerro Lunar (as povoações contíguas às minas) é uma que se faz por sobre uma imagem propositadamente pouco rica obrigando o espectador a primeiramente conhecer os hábitos, rituais e mitologias dos que lá vivem através do ouvir dizer. Nesse primado do som sobre a imagem cada um vê-se obrigado a construir para si uma imagem das condições de vida que nos são descritas. Imagem essa que depois é paulatinamente contrariada pela segunda parte do filme que uma e outra vez oferece uma realidade diferente daquela que cada um havia construído (naturalmente mais alegre, mais colorida, mais festiva, mais prática e mais humana). Neste sentido o filme de Salomé Lamas recorda-nos da nossa posição enquanto espectadores do mundo, sempre a criar as nossas paraficções a partir daquilo que são as nossas percepções (lacunares) do real. Isto é, Lamas questiona as possibilidades da etnografia ou, em lato sensu, das próprias possibilidades de conhecer: num exercício que tem tanto de manipulação como de questionamento epistemológico.
Por isto mesmo o plano fundacional do filme é um sobre o qual não cessam de atravessar-se pessoas, sempre em trânsito, sempre de passagem (como a própria Rinconada e como o próprio real). E mais do que dizer que “tudo é transacção”, apetece dizer que tudo é transição. Não é por acaso que lá, na Rinconada, como cá, o vocabulário se desmultiplica em termos cada vez mais intransmissíveis, fragmentando a língua à imagem das necessidades dos seus falantes. E de facto tudo transita em Eldorado XXI: os valores, a moral, a lei, noções como segurança e autoridade, o autêntico, o exótico, o belo…