Quando Hegel escreveu que a História repete-se duas vezes, ao que o barbudo Karl Marx acrescentou “primeiro como tragédia, depois como farsa”, certamente que estariam a pensar naquele momento no Século XX em que Norma Desmond e o seu mordomo Max Von Mayerling visionam Queen Kelly (A Raínha Kelly, 1929) numa cabina de projecção. Um filme que, vinte anos antes, tinha significado o início da decadência de Desmond como actriz popular, o epitáfio de Mayerling como cineasta, e um dos últimos crespúsculos do cinema mudo.
Estamos em 1928 e o cinema, com pouco mais de trinta anos, parece ter atingido o auge da sua arte. As obras-primas de cada ano parecem ser ainda mais inolvidáveis do que as do ano anterior. Pessoas abrem sarjetas na rua e saem de lá obras-primas. A linguagem cinematográfica atinge um notável refinamento, concentrado na Europa (países nórdicos, surrealistas na França, Alemanha, URSS) e nos Estados Unidos, onde os mestres dos últimos dez anos atingem proporções bíblicas de aperfeiçoamento. No Japão, Mizoguchi e Ozu já laboram a grande vapor, mas será preciso mais um quarto de século para verem os seus atributos reconhecidos (Cannes era só praia, Berlim era um deboche – dentro e fora do ecrã – e Veneza era rataria em cada casulo), e, tragédia das grandes, praticamente todos os seus trabalhos dessa altura ora desapareceram da face do planeta, ora encontram-se mutilados na sua duração, ora se apresentam em inanes condições de preservação, ora se escondem, até hoje, num qualquuer sotão de uma aldeia rural perto de Kyoto. Mas atenção, há indícios de sinais de alarme: a locomotiva sonora já não se ouve muito longe do apeadeiro. Com um pau de marmeleira numa mão e uma caneta noutra, Rudolf Arnheim vai começando a distribuir vergastadas e reprimendas perante esta diabólica inovação que presumivelmente irá dar cabo da “magia” e da “especificidade cinematográfica”. Indiferente a esta ameaça, uma das maiores actrizes de Hollywood planeia um dos mais ambiciosos e mais caros filmes mudos jamais feitos.
Filmes cujo resultado final está muito longe de corresponder ao desígnio inicial podem acontecer devido a uma multitude de factores, mas não há, neste capítulo, algo que mexa mais com o coraçãozinho dos cinéfilos da cepa dura como o “filme inacabado”, o “filme perdido”, o “filme de ideias grandiosas mas que nunca chegou a existir”, ou o “filme desvirtuado”. E se algumas das classificações anteriores tiver acontecido devido a um choque entre um cineasta e um produtor ou actriz, então a comoção cinéfila ainda será maior. E se esse cineasta for um nome maior da arte e já possuir antecedentes semelhantes, então, da tinta e da boca do cinéfilo, correrão palavras de engrandecimento do mesmo e de injúrias e difamações dos bandidos que não permitiram que o artista levasse o seu métier adiante. O cineasta é elevado a mártir e os seus oponentes a uns grandessíssimos filhos da puta. Há uma especificidade ainda mais particular que poderá desencadear um ainda maior chorrilho de fervorosas aclamações, e que acontece quando determinado “filme em escombros” provoca o fim da carreira do cineasta e/ou de uma era. Para saber mais sobre este caso especial, consultar os dois milhões de documentos que os estudiosos Vasco Câmara e Peter Biskind já escreveram sobre um filme de 1980 que enterrou de vez a “dourada” época do “eram os anos setenta”. Dois milhões e um, acabam de nos segredar.
Voltando à actriz com o seu projecto megalómano. Gloria Swanson, de seu nome, e fiel aos caprichos de uma starlet de Hollywood dos anos 20, quis provavelmente acabar em modo épico os seus dias nos silent movies, e vai daí pede ao seu amante, Joseph P. Kennedy (pai de JFK), para lhe financiar uma extravangância dramática de cinco horas de duração. Com os bolsos a rebentar de moedas e notas, Joseph não se fez rogado e distribuiu à sua princesa os dinheiros de que necessitava para tão custosa aventura, talvez pensando que assim as suas noites adquirissem uma especial rebaldaria. Com as milhentas ao dispor, Gloria tratou logo de ir buscar um realizador que estivesse ao nível dos seus requintados desejos, e de quem é que ela se foi lembrar? Erich Von Stroheim, que poucos anos antes tinha sido escorraçado pelo petiz Irving Thalberg dos comandos de Greed (Aves de Rapina, 1924), naquela que é talvez “a” disputa entre o “visionarismo” de um realizador e os “interesses económicos” de um produtor/director de uma companhia na história do cinema. Águas passadas e começa a rodagem de Queen Kelly. Tudo vai carrilando nos conformes, até que a determinado momento, Swanson, farta dos desmandos perfeccionistas e da astronómica escalada nos custos de produção, exige ao amante Joseph que Stroheim seja expulso. Joseph, a pensar nos amanhãs que cantam numa qualquer cama de Los Angeles, satisfaz imediatamente o pedido da sua rainha, enviando Erich para o degredo. A própria Gloria assume então ela própria os cordelinhos da situação, sentando-se na cadeira de realizador e assegura Gregg Toland como director de fotografia. Em 1929, estreia finalmente Queen Kelly, “versão Gloria Swanson”, com a irrisória duração de setenta e cinco minutos, e em 1985 a Kino International restaura o que sobrou da “versão Stroheim”, com a duração de cento e um minutos, com o recurso a legendas e fotografias. Cada uma das versões apresenta finais distintos.
Embora a esmerada meticulosidade de Stroheim seja a razão primeira para Gloria Swanson se ter fartado do austríaco, talvez a justificação se enconttre noutro lado, nesse prazer escarninho do realizador em fazer navegar a coqueluche em águas degradantes, onde há uma viagem física de um convento para um bordel, e uma mental de uma singela castidade para uma alucinada corrupão do corpo. A “sequência africana”, passada no tal bordel, assume contornos da grande capacidade sádica de Erich, que coloca a beleza e a aparente pureza de Gloria envolta numa podridão arquitectónica e comportamental, ao ser vítima de gozação por outras prostitutas (“agora é que vais ver o que é bom…”, pensarão) e a receber o indiscreto charme de um tarado sexual (Tully Marshal), que em primorosos grandes planos (We had Faces!), encosta quase a cabeça ao ombro da donzela e esboça um esgar de perversidade sexual que traz à lembrança a mesma demente excitação de Emile Jennings perante Li Dagover em Herr Tartuff (Tartufo, 1925); mais um bocadinho de coragem e colocar-se-ia baba a sair dos cantos da boca. Ainda assim, um conjunto de planos que retratam as liberdades da época, que em breve seriam desmanteladas pelo caceteiro Hays. Já antes, na primeira parte do filme (intacta), há uma princesa ninfomaníaca praticamente nua apenas com um gato ao colo (que faz questão de atirar violentamente para o chão nas situações de maior exasperação, e nem o facto de evidentemente se ver que é um peluche fariam hoje essas acções passar no crivo das censuras), há um arraial de chicoteadas dessa princesa na Kelly (para grande gáudio dos guardas de serviço, que mais à noite lá terão motivos visuais para ajudarem as suas nojentas fantasias), há jogos florais que envolvem as cuecas de Gloria, há um príncipe ébrio que vem carregado de putedo na sua carruagem, há um jantar à luz das velas que destila uma tal carga sexual que nos faz ter um lenço à mão (para limpar o suor da testa, evidentemennte), enfim, há muita fruta apetitosa para aguçar, quase cem anos depois, a nossa imaginação, nesta pobre época em que bastam uns cliques no rato e lá se vai a imaginação toda. O fim dos tempos?
Queen Kelly é um muito feliz casamento entre um mundo de devassidões e um produto final igualmente degradado. A aura de putrefacção que daí resulta deveria ser motivo de regozijo, e não de censura, até porque a “versão completa” talvez nunca pudesse transmitir a mesma aragem de sevícias na celulóide. Além disso, é mais um motivo para celebrarmos o injustiçado, o mártir Erich Von Stroheim, que teria aqui, na prática, o fim da sua carreira, e que hoje em dia é mais conhecido pelos trabalhos que não completou dos que os que levou a bom porto. Esperemos que esteja, neste exacto momento, a rir com o Welles, gozando da nossa tristeza perante os seus infortúnios.