Le cinéaste qui se fait esclave de l’argent n’a plus la liberté de se faire esclave de la liberté.
Marcel Hanoun, Cinéma cinéaste: Notes sur l’image écrite
Há conceitos que, de tanto usados e abusados, hoje significam pouco ou nada. Um é “cineasta independente ou marginal”, outro é “cineasta experimental”. Dir-se-ia que era preciso fazer reset a estes conceitos – lavá-los de todas as impurezas que foram ganhando com o passar do tempo – para aqui poder resumir rapidamente a obra complexa e desafiante do francês Marcel Hanoun. Sim, terão havido poucos cineastas mais independentes, mais livres das amarras “canonizantes” que fazem da história do cinema uma colecção de fórmulas e derivações. No caso de Hanoun, a nossa dificuldade – de espectadores e escritores – começa por conseguirmos “domar” a sua linguagem, entendê-la nas suas profundas ligações. Mas serão assim tão profundas? Estarão elas em profundidade ou à superfície? É Hanoun que diz em entrevista a André Cornand e Abraham Segal: “Acho que os meus filmes estão extremamente organizados, e são muito simples, por isso, eles acabam por ser acessíveis e não são de maneira alguma intelectuais. Eles são feitos de carne. Eles estão vivos. Eles têm sentimentos. Eles têm pele.” Passemos então a mão por esta pele.

A tetralogia da estações foi realizada entre 1968 e 1973. Não esteja à espera das articulações transparentes entre os títulos e os filmes tal como entre os filmes entre si. Estamos longe, por exemplo, dos projectos fílmicos – de longo prazo – de Éric Rohmer. Hanoun trabalha filme a filme e, dentro do filme, trabalha-o verticalmente, consoante o sentido do vento da sua inspiração: “eu vivo o meu trabalho dia-a-dia, numa base dialéctica e ‘imediata'”, confidencia na mesma entrevista. O seu cinema baseia-se num diálogo intenso e por vezes violentamente íntimo com as imagens. No prefácio do seu notável livro aforístico de reflexão fílmica, Cinéma cinéaste: Notes sur l’image écrite, Nicole Brenez resume assim o gestus essencial do seu cinema e, lato sensu, da sua “escrita”: “a rarefação plástica; a reflexividade como filosofia do esquisso; a abertura ao desastre; a interpelação ética feita ao espectador; o amor às formas breves; a invenção infinita de formas de corte” (p. 10). A propósito do ritmo de corte no seu cinema, Brenez avança com a ideia de uma “ciência da montagem (…) que se inspira muito no modelo musical da fuga” – ela, a fuga, vigora, errática e, agora sim, livre e permanentemente aberta à experiência, no cinema de Hanoun. Foi sempre com esta liberdade e independência (esta “escrava liberdade”) que Hanoun escreveu e realizou os seus filmes. Foram perto de 60 as obras que assinou e escreveu um punhado de livros de reflexão, onde se destaca o já citado Cinéma cinéaste – espantoso livro irmão das Notas sobre o Cinematógrafo de Robert Bresson.
Hanoun começou a sua carreira na longa-metragem – antes notabilizara-se como fotógrafo – com uma obra pungente, Une simple histoire (1959). História de uma mãe e de uma filha entregues à sua sorte em plena cidade de Pais. Procuram uma vida na grande selva urbana. Acabarão por depender da bondade – e da esmola – de estranhos. É um filme seco e humanamente avassalador. São essas também as características principais daquele que será o filme mais visto de Hanoun: L’authentique procès de Carl-Emmanuel Jung (1966). Retrato duro – frio, necessariamente frio – do julgamento de um criminoso de guerra nazi. Como facilmente se antevê, neste “teatro judicial” encenar-se-á uma micro Nuremberga onde se explana a crise de representação aberta pela Shoah – numa espécie de resposta ao famoso filme de Stanley Kramer, Hanoun no momento de mostrar as imagens do Holocausto dá-nos a ver apenas um quadro em branco, são as não-imagens de que falava Serge Daney, aquelas que são sempre insuficientes para enquadrar a dimensão inominável do que representam. O que muda destes filmes para L’été (1968)? O gesto de uma revolução, o estilhaçamento – político, moral e cultural – que foi o Maio de 68. A revolução pára enquanto a personagem se retira, de férias, na sua casa do campo. Ou será esse “intervalo” o lugar certo para se (re)pensar – política e sentimentalmente – o sentido da utopia revolucionária? O filme vive de uma alternância aforística – escrita de imagens como imagens da escrita – entre a imagem em movimento e a imagem parada. A animação do cinema com a fixidez da fotografia. Como escreve Hanoun, em Cinéma Cinéaste (p.75), “L’absence du mouvement, mouvement suprême”.

A partir de L’été a linguagem hanouniana implode. A revolução – os ares da revolução como os “ares do campo” – impregnou-se na matéria fílmica. Só na obra-prima L’automne (1973) perceberemos inteiramente isto, mas Hanoun, mais do que um fazedor de filmes, é uma testemunha activa dos mesmos. Como ele disse, os seus filmes são entidades vivas, que precisam de tempo – e espaço – para se desenvolverem e, com isso, ganharem carne e pele. Ou fará mais sentido falar em desabrochamento, como se cada filme necessitasse da atenção – e delicado cuidado – que faz a planta crescer? Jonas Mekas, apreciador do cinema de Hanoun, gostaria mais desta imagem. Para o cineasta do underground americano a câmara é como o regador que sorve a terra de motivos para a vida. O realizador, esse, é o grande jardineiro do mundo das imagens. O cinema está aí no mundo, basta sabê-lo regar e, na altura justa, estender a mão para colher os seus frutos. Escreve Hanoun ainda nesse livro de aforismos: “Le mystère du film à être, à devenir, fait ma nécessité du cinéma.” O cinema não é feito por…, ele faz-se a si mesmo. É preciso criar condições para este “devenir”.

O cineasta é espectador – veremos como este conceito é levado até às suas últimas consequências em L’automne. Mas antes de mais importa falar nos filmes do meio, L’hiver (1969) e Le printemps (1972). São experiências de desabrochamento fílmico. Exigentes, quase impenetráveis, mas só até certo ponto. Até àquele ponto em que já estamos plenamente entre as imagens. O filme a fazer-se, o filme a fazer-nos? Em L’hiver abre-se no cinema de Hanoun a instância do metafilme. Não só este é um filme sobre um filme, questionamento da fronteira entre a vida e o cinema, ele é também um filme que só tem um assunto: a sua própria possibilidade – ou, na realidade, mais contundentemente, a sua impossibilidade – de ser cinema. “Le film n’a pas de sujet, il est le sujet du film” (p. 43). Um realizador a rodar um documentário na cidade de Bruges decide que quer fazer um outro filme. A partir daqui temos o cinema a dobrar-se sobre si mesmo. As imagens chocam, oscilam, banham-se de cor, luz e preto-e-branco. Pinturas, fachadas de edifícios, rostos e natureza. É um filme dentro da cabeça de um cineasta, mas não é Otto e mezzo (Oito e Meio, 1963) nenhum. É, antes de mais, uma tentativa de materializar em imagens o convulso processo criativo. L’hiver é, assume Hanoun na entrevista citada, o resultado de um cinema “em estado bruto”. Como se o cineasta tivesse conscientemente criado uma ficção toda ela com outtakes. Outtakes como lugar do mais potente espaço off: “C’est le hors visible, c’est le hors-champ qui nourrit son identité” (p. 40). Mais à frente, escreve ainda Hanoun em Cinéma cinéaste: “Le film est moins une soustraction de ses images réelles qu’une addition de ses images absentes.” (p. 82) As sobras da imaginação como prato principal? Em certo sentido sim, mas, de novo, o processo é mais natural, menos “intelectual”: um desabrochamento, para ser mais exacto.

Do Inverno passamos para a Primavera, a estação mais violenta de todas – Hanoun fala de Le printemps como um “filme de horror”. A “ciência da montagem” atinge o seu cume. A montagem alternada, aprimorada originalmente em Griffith, é aqui objecto de reflexão – no sentido total do termo “reflexão”. Hanoun cria uma ponte invisível entre duas histórias: num cenário campestre, acompanhamos o dia-a-dia de uma menina, nas suas brincadeiras, e a sua avó, nos afazeres domésticos; nas redondezas – esta vizinhança, claro, é apenas sugerida na montagem, como uma releitura do efeito de Kulechov – acompanhamos as movimentações de um homem em fuga, alguém que terá cometido um crime do qual pouco sabemos. Percorre ele a paisagem à procura de um destino que lhe possa sanear a culpa? A montagem é perversa, na medida em que apenas sugere uma ligação entre estas duas histórias – será o homem o pai da menina, ou melhor, o pai que a menina aguarda? No fim o homem é apanhado pela câmara – o zoom atinge o corpo como uma bala. A câmara ganha corpo no espectro dramático deste filme não para o concluir mas para o interromper indefinidamente. É um acto de verdadeira violência: “Au cinéma, la vraie violence est dans l’interruption de la violence.” (p. 128) O cinema volta a ser o assunto principal aqui. A realidade da rodagem – e da montagem – não cessa de operar o filme de dentro para fora, como uma espiral. A tendência é para intelectualizar, pensarmos narrativa e simbolicamente o que pertence ao domínio sensorial – musical! – do plano e do corte. Mas, afinal, o que quer dizer Hanoun sobre esta “máquina de matar pessoas (más)” chamada cinema?

Chegamos ao Outono. O cinema de Hanoun sai do mundo e recolhe-se. Michael Lonsdale, actor principal da tetralogia e aqui alter ego de Hanoun – mais até do que já fora em L’hiver -, olha para nós. A câmara permanece imóvel e, portanto, apetece dizer que lhe devolve o olhar. Mas não sabemos ao certo o que o filme dentro do filme dá a ver. Apenas ouvimos o filme que Hanoun fabrica na mesa de montagem. Estamos na presença de uma das obras mais essenciais sobre o processo de montagem. Uma espécie de Shirin (2008) em que o protagonista não é o espectador, mas o cineasta. O cineasta como espectador. O primeiro de todos os espectadores. Lonsdale monta um filme com a ajuda da sua assistente, interpretada por Tamia. Os dois estão fechados na caixa. Os dois olham o filme, que olha de volta – os dois olham-nos a nós, espectadores destes espectadores, deste, apetece dizer, puro espectáculo do filme que desabrocha, deste “corpo-a-corpo” constante. “L’œill, l’image, un corps à corps.” (p. 64)
Estamos todos fechados no plano do filme e no lugar daquela sala de montagem. O tempo também se enclausura e, com isso, ganha densidade, espessura. Habitamos aquele plano, aquela sala. Habitamos, com isto, o corpo do próprio filme – sentimo-nos próximos dessa pele e dessa carne chamada cinema. L’automne não é apenas o quarto – e último – filme da tetralogia das estações de Hanoun. Ele é a culminação, radical na sua nudez, de um exercício, momento-limite a partir do qual o cinema não pode avançar mais. Vemos pouco o filme que está a ser montado, mas vemos tudo o que ele desperta no seu primeiro espectador, o cineasta. Com isso, somos levados ao íntimo da criação, onde o cinema vive e pensa.
A Tetralogia das Estações está editada num pack de DVDs, com legendas em inglês e contendo um booklet (do qual extraí as citações referentes à entrevista a Hanoun). A cortesia é da fabulosa Re:Voir. Este texto só foi possível graças à parceria que estabelecemos com esta editora. A ela o meu agradecimento pela prontidão e simpatia. E os meus parabéns pelo trabalho que continuam a desenvolver em favor de um cinema escravo da liberdade.
A Caixa de DVDs em questão pode ser adquirida aqui. O fabuloso livro de Hanoun aqui abundantemente citado, Cinéma cinéaste, também pode ser adquirido na loja Re:Voir aqui.

Um agradecimento final ao Paulo Soares, que me deu a descobrir Marcel Hanoun.