A consagração de Brillante Mendoza a nome maior do panteão de autores contemporâneos deu-se na temporada 2008/2009 quando estrearam, no festival de Cannes e de Veneza, Serbis (Serviço, 2008), Kinatay (2009) e Lola (2009), tendo o segundo vencido o galardão de melhor realizador no festival francês. Depois disso o cineasta filipino entrou em modo desmultiplicativo, virando-se para as co-produções francesas – com Captive (Cativos, 2012), protagonizado por Isabelle Huppert –, para o cinema de género, Sapi (2013), realizando inúmeras curtas-metragens de encomenda e alguns melodramas descompensados – Thy Womb (2012) e Taklub (2015). Ma’ Rosa (Mãe Rosa, 2016) parece ser o regresso à boa forma, quando mais não seja porque é também um regresso aos eixos temáticos e formais dos filmes que lhe deram visibilidade. A saber: a fábula moral sobre os horrores da corrupção e do capitalismo acompanhado por um olhar dardenniano que segue e confronta as situações mais terríveis com a faca nos dentes.
O primeiro plano de Ma’ Rosa mostra um tapete de compras numa caixa de supermercado recheado de pacotes de batatas fritas e outras guloseimas. Estes são registados e cuidadosamente arrumados em sacos. A funcionária informa do custo da compra e Rosa paga o que deve. Mas a caixa não tem trocos suficientes e perguntam-lhe se poderão ficar a dever-lhe 25 cêntimos. Rosa irrita-se, quer o que é seu de direito, mesmo que seja uma ninharia – no poupar é que está o ganho. Esta é a cena de abertura de um filme que levará até às últimas consequências os mecanismos que criam a dívida e obrigam ao pagamento. Era já, no entanto, sobre o dinheiro que Lola girava – outro conto moderno sobre a perversidade da pobreza – e Ma’ Rosa repete, quase ponto por ponto, situações e ideias desse filme.
Ma’ Rosa é sobre o “inho”: a corrupçãozinha, a chantagenzinha, a porradinha, os molhinhos de notinhas, as vidinhas penhoradinhas e os políciazinhos um bocadinho mais riquinhos.
Lola começava igualmente com uma aquisição, uma avó comprava a vela que iria colocar no local do assassinato do neto, a mesma avó que não tinha dinheiro para o enterro desse mesmo neto – eram os vizinhos que a ajudavam a pagar o funeral. Em Lola outra avó roubava os clientes para poupar algum, viajava quilómetros para pedir dinheiro a familiares e depois de estes apenas lhe oferecerem verduras e ovos, esta vendia tudo o que podia às pessoas que encontrava na estação de comboios. A meia-hora final de Ma’ Rosa é, nesse aspecto, muito semelhante: os três filhos mais velhos da Rosa percorrerem todas as capelinhas das suas relações à procura da quantia necessária para pagar a ilegítima fiança dos pais. Aliás, um dos filhos anda pelas ruas com um televisor nas mãos a ver se encontra quem o pegue e também em Lola a senhora penhorava a televisão (a qual passava a toda a hora, muito ironicamente, programas do género Deal or no Deal) e pedia dinheiro aos agiotas de bairro. Havia mesmo, no filme de 2009, uma cena que era magistral na explanação limite deste estado de coisas: umas notas caiam ao chão num dia de chuva, estas eram recolhidas cuidadosamente e estendidas, de seguida, na corda da roupa. Também neste filme, no final, Rosa usa ou poucos cêntimos que lhe restam (talvez apenas 25) para comprar uma fartura e come-a num transe pós-traumático que dá um novo significado à expressão final em aberto – transe esse que terá valido a Jaclyn Jose o prémio de melhor actriz em Cannes, o ano passado. A tese de Mendoza é a de que o dinheiro não é luxo, é comida, é roupa e é família. É a fundação necessária para a mínima estabilidade, o mínimo conforto, e a mínima sobrevivência – numa sociedade (ou numa cidade, Manila) onde imperam relações de natureza financeira.
Ma’ Rosa prossegue as preocupações de Lola, mas repete também as investidas frenéticas das câmaras de Kinatay e, no momento da prostituição do filho mais novo, remete-nos para Serbis. E como também nesses filmes, por vezes escorrega no excesso dramático do quanto-pior-melhor. Aliás, há um momento, depois de a filha mais velha ter ouvido o raspanete de uma familiar, antes desta lhe emprestar algum do dinheiro que precisa, em que a miúda, fragilizada pela situação, escorrega no chão molhado, perde as chinelas e estatela-se ao comprido nas ruas sujas de um beco infecto. Esse momento é paradigmático dos deslizes do cinema de Mendoza que está sempre à beira de rasgar a corda (de tanto a esticar). Mas ainda assim Ma’ Rosa contem-se quase sempre, talvez (ou melhor dizendo, por causa) da pequenez de todos os horrores(zinhos) que desfilam no ecrã.
Se, de facto, o traçado dos caminhos imundos do dinheiro dá forma à narrativa do filme, o tom desse traçado é, paradoxalmente, um que se faz nessa pequenez que aflige tudo aquilo com que a câmara se depara. O pequenino negócio familiar de tráfico de droga é, assim mesmo, pequenino (8 gramas ao todo). A traficante sendo uma senhora imponente não é uma fervorosa gangster e compadece-se da dependência dos seus agarrados – como uma boa mãe que só é severa na aparência. O fornecedor traz na mochila a pequena balança com que pesa o estupefaciente na sala dos fundos. E também a intervenção policial é coisa familiar, negociozinho de fundo de escritório. São só 50 mil pesos que pedem, nem é muito. Espreme-se um bocadinho aqui (no traficante), espreme-se outro bocadinho ali (no fornecedor) e lá se ganham uns trocos – é no espremer que está o ganho – que dão para a cerveja e para o frango assado (o momento em que a mãe de um dos polícias vem interromper o “interrogatório” para saber porque está o filho atrasado para o jantar é impagável no amadorismo de tudo e todos – e é aí que entra o humor sulfúrico de Mendoza). Ma’ Rosa é afinal sobre o “inho”: a corrupçãozinha, a suplicaçãozinha, a chantagenzinha, a porradinha, os molhinhos de notinhas, as vidinhas penhoradinhas e os políciazinhos um bocadinho mais riquinhos.
E como lutar contra esta forma de degradação institucionalizada que se faz de modo tão virulento (dessas febres que nunca aquecem muito, mas desfazem o corpo aos poucos)? Desfrutando do prazer oleaginoso de uma boa fartura, está claro. Ou, como se grita todos os anos na Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa, “Contra o Capital, Prazer Anal, Contra o Vaticano, Prazer Clitoriano, Contra o Patriarcado, Prazer em Todo o Lado.”