Há certos gestos cinematográficos que me emocionam sempre. Coisas formais, na maioria das vezes. Um em particular é quando um realizador passa, sem cortes, de um plano objectivo a subjectivo. Este exercício de subjectivação diegética do olhar (dentro de um filme, que é já, de partida, um olhar subjectivo) tem o poder de literalizar, em continuidade, o acesso a uma interioridade do personagem. Expondo portanto os mecanismos da construção da empatia pelo cinema e, por outro lado, afirmando a própria ideia de que é (ainda, pelo menos no cinema) possível um acesso à experiência do Outro. Isto é, de que existe um dispositivo fílmico que re-apresenta a possibilidade de um encontro inter-subjectivo.
Pensei nisto, pela primeira vez, aqui há uns anos quando Agnès de ci de là Varda (2011) foi apresentado (apenas os dois primeiros episódios, salvo erro) no DocLisboa. Logo no primeiro tomo desta mini-série, que a “avozinha punk” do cinema francês fez para o canal Arte, há um desses emocionantes gestos: quando a realizadora se encontra (fisica e “inter-subjectivamente”) com Manoel de Oliveira. Esse encontro faz-se através da pequena câmara digital que Varda sempre enverga. Ela filma-o. Ele repete o seu costumeiro gag do Charlot, em que imita a postura do personagem de Chaplin, arqueando as pernas, agitando a bengala, fingindo um bigodinho [como já fizera para outra câmara, dessa feita a de Wim Wenders, em Lisbon Story (Viagem a Lisboa, 1994)]. Se a candura da performance infantil, daquele que já era o mais antigo realizador em actividade, deleita qualquer um, o que se segue reveste-se de pura emoção. Varda passa a sua câmara para as mãos do colega de profissão. Filma-me, pede-lhe (Shoot me, dir-se-ia em Inglês). E ele, desprevenido, aponta o objecto ao alvo. O resultado, um enquadramento torto e desfocado daquele que é o “mestre” do cinema nacional [como desfocados também são vários dos planos filmados por Varda neste Visages, villages (Olhares Lugares, 2017)]. Esta franqueza e esta disponibilidade de uma realizadora que oferece a sua ferramenta de trabalho ao Outro, que partilha com ele o gesto de criação, e assume no espaço da sua subjectividade a subjectividade do outro, isto, emociona-me. E aqui está, a meu ver, a grande força do trabalho de Agnès Varda dos últimos anos, a disponibilidade face ao Outro. Varda é a grande patroa do exercício da alteridade, esse esforço que parece vir escasseando cada vez mais nos nossos dias.
Há aquela ideia feita (da qual desconfio muito, mas que neste momento não me interessa pôr demasiadamente em causa) de que são as vanguardas que alimentam a arte popular, em particular, que é o cinema experimental que renova e re-inventa o cinema mainstream. Pois bem, o mesmo será verdade para a influência dos pioneiros da vídeo-instalação. Há duas peças de filme instalado de Dan Graham e Michael Snow, respectivamente Helic/Spiral (1973) e Two sides to every story (1974), que quase coincidindo no mesmo momento histórico exploram de formas muito semelhantes este gesto cinematográfico que venho sublinhando na sua qualidade mais formalista. São os dois filmes de duplo canal sicrano e em loop, produzidos em película 16mm, onde duas câmaras apontam uma para a outra (ora através de dois operadores que rodopiam, como numa valsa entre amantes iconófilos, ora através de um vidro que se materializa, costas com costas, na superfície de projecção). As duas peças procuram reflectir sobre a própria natureza do processo cinematográfico mas, de novo, abrem-se a um universo onde há espaço para um Outro. Um outro que Me infecta o olhar.
O olhar de JR é coisa de estética pinterest, imagens de uma beleza fácil e segura. Já o olhar de Varda é um olhar que procura a instabilidade, que se delicia no inesperado.
As repercussões destes exercícios no cinema de grande público dá-se com popularização dos filmes de terror de found footage. Nestes é muito comum uma câmara filmar outra e, logo na abertura do “revolucionário” The Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch, 1999) de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, parece haver uma citação à espiral de Dan Graham. Nestes filmes, nos melhores pelo menos, a câmara reveste-se de ferramenta bélica. No recente remake de Adam Wingard, por exemplo, o ecrã do pequeno aparelho de vídeo devem escudo de Perseu na sequência final, e no subvalorizado Diary of the Dead (Diário dos Mortos, 2007) de George A. Romero um recém mordido humano grita “shoot me!” (como a Varda a Oliveira) para o personagem/realizador que numa mão tem uma câmara e noutra uma pistola – até na morte a câmara como possibilidade de encontro do Outro, a câmara como utensílio de eutanásia (o mais extremo exercício da alteridade).
Tudo isto para dizer que Visages, villages, de Agnès Varda e JR é um filme cujo cerne está precisamente nesta possibilidade da partilha de subjectividades, entre Varda e fotógrafo/artista plástico JR. Mas também com as pessoas que a dupla vai conhecendo neste que é um road movie atípico pela França rural. Para isso os dois realizadores embarcam num carro-objectiva – a fazer lembrar os agit-train da propaganda soviética de, entre outros, Dziga Vertov – que deambula pelas vilas (villages) e produz fotografias de grande formato dos rostos (visages) que encontra. A isto acresce ainda a proposta dos realizadores de cobrir as fachadas dos edifícios com os ditos rostos dos seus moradores (ou dos seus locais de trabalho). E aqui dá-se o impasse. O olhar de JR é coisa de estética pinterest, imagens de uma beleza fácil, emotiva, nostálgica, segura. O olhar de Varda é um olhar que procura a instabilidade, que se delicia no inesperado – a certo momento ouve-se, da sua boca, “É horrível, é lindo” olhando para a carcaça amputada de um peixe na praça. E o momento do embate entre esta divergência, momento triste aliás, dá-se quando Varda deseja colocar uma fotografia na fachada de um edifício em construção, fachada nua, de betão armado, e JR ri-se, às bandeiras despregadas, com a escolha tão inusitada (acabando por a demover). A ele só lhe interessa as paredes estragadas, as ruínas e os espaços industriais, locais onde há uma bagagem estética, histórica e emocional que preenche o vazio do seu trabalho fotográfico (que não anda muito longe das intervenções de Vhils).
Vertov diria que o “O cine-olho é entendido como ‘aquilo que o olho não vê'”, em JR não se trata de um cine-olho, mas sim de um olho-cínico (para não dizer oportunista ou vampírico). De facto ele é o pior de Visages, villages, como pior é o momento “o que dizem os teus olhos” à la Pedro Abrunhosa (ainda que a literalização, pelo desfoque, da maleita da vista de Varda traga uma saudável provocação). No entanto o melhor do filme, e faço esta leitura de máximos e mínimos porque um devém do outro, é o des-encontro com Jean-Luc Godard (esse sátiro de fino requinte) que escapa à maquinaria subjectiva de Varda resumindo a sua presença a uma nota num vidro (talvez citando a instalação de Michael Snow?). Porque se é belo quando uma subjectividade se abre a outras, também não deixa de o ser quando uma se reserva o direito à sombra.
E se dúvidas restassem sobre essa oposição entre os dois assinantes da realização, os créditos finais esclarecem os mais cépticos: mesmo no fim pode ler-se “de AV et JR, AV par Agnès Varda et JR par JR.” Em Varda há um fundo na sigla, em JR já só há sigla.