Je n’ai pu percer sans frémir ces portes d’ivoire ou de corne qui
nous séparent du monde invisible.
Gérard de Nerval, Aurélia
Um sonho
A tela está negra quando o rufar de tambores dá início ao primeiro tema musical e ao filme. Os créditos indicam que estamos a assistir a La signora di tutti (1934), uma produção de Novella-film baseada no romance de Salvator Gotta, interpretada por Isa Miranda, com canções de Daniel Dax, etc. (Max Ophüls não é creditado como realizador). Ao fundo, vêem-se discretas formas móveis, como fumo que ascendesse no ar.
No fim dos créditos, o ecrã torna-se negro por breves instantes. O negro é rasgado por um raccord em efeito de espiral, que começa no centro de um disco que gira no gira-discos e revela a imagem, como se a abrisse. Depois de começar sob a égide do círculo, o filme estruturar-se-á definitivamente sobre esta forma, remetendo-nos prospectivamente para outros filmes de Max Ophüls: lembremos o carrossel de La Ronde (A Ronda, 1950) ou a estrutura circular de Madame de… (1953), que começa e acaba com um plano dos brincos cuja viagem o filme documenta (discuti um princípio semelhante a propósito de Odete [2005], de João Pedro Rodrigues). No entanto, constatar a circularidade da forma nestes filmes não é suficiente para fazer justiça à complexidade da sua geometrização. Há que atender às especificidades de cada uma destas formas. Em particular, há que tomar em consideração, por exemplo, a cristalização perfeita que a circularidade do anel de Odete oferece, e que se reflecte no amor cristalizado a que ela simbolicamente se reporta, e que é também o tema do filme. Em La ronde, por seu turno, não deve ser valorizada apenas a circularidade do carrossel, como ainda, essencialmente – e isto é algo para que o meneur de jeu, interpretado por Anton Walbrook, chama a nossa atenção –, o movimento do carrossel que, ao girar perpetuamente em torno de um único centro, promove simultânea e paradoxalmente movimento e estagnação, numa dinâmica que se resolve em pelo menos dois níveis: ao nível da intriga, as personagens do filme não se fidelizam a nenhuma outra (fixidez), ao mesmo tempo que prosseguem ininterruptamente nos seus casos amorosos (movimento); ao nível da forma do filme, sucedem-se “blocos narrativos” (movimento) aos quais, no entanto, nunca é atribuído tempo suficiente para que se desenvolvam, condenando o filme a um achatamento narrativo e psicológico (fixidez).
Em La signora di tutti, o círculo resulta muito concretamente da sobreposição de duas formas circulares: por um lado, o disco, que gira sobre si próprio, em sentido horário, e, por outro lado, o raccord, que revela a imagem num movimento de rotação centrífugo, em sentido anti-horário. Trata-se, então, de dois movimentos circulares que, funcionando numa lógica de oposição, e sobrepondo-se ao nível da imagem, geram na sua polaridade inerente um campo de tensão significativa. É possível ler o nome da protagonista, Gaby Doriot, na inscrição do disco, informando-nos de que a voz que se ouve na canção diegética corresponde à da protagonista, que canta nesse momento “Io sono la signora di tutti”. Ou seja, o filme começa com um plano aproximado de um disco, onde se lê o nome da protagonista, e que dá a ouvir uma canção, cantada por esta, em que ela declara “eu sou la signora di tutti”. Isto é, “eu sou [o filme]”, mas também, “eu sou [Gaby Doriot]”, o que por sua vez – dada a inscrição do nome no disco – pode significar “eu sou [o disco que toca]”. Em relação directa com o disco é posta também a própria imagem do filme, que abre literalmente sobre aquele objecto, ainda que num sentido oposto ao sentido segundo o qual ele gira.
Seguindo esta proposta de coalescência entre Gaby Doriot e o disco, e atentando no pormenor de a imagem abrir num movimento oposto ao do disco, dir-se-ia que o regime de imagem do filme se instaura, em La signora di tutti, contra Gaby Doriot. De certo modo, assim será efectivamente, uma vez que esta mulher só aparecerá em campo vários minutos após o início do filme, prostrada no chão da casa de banho do seu quarto e após uma tentativa de suicídio, isto é, no limiar da vida e da possibilidade da imagem, ou, pelo menos, de um certo tipo de imagem, com a qual o filme trabalha nestes primeiros minutos, e que abandonará para adoptar um outro.
O efeito de fumo que se vê nos créditos transita para os primeiros planos do filme, em que dois homens conversam, enquanto fumam charuto (ao fundo, na primeira das imagens acima, vemos, desfocado, um retrato da protagonista). Trata-se de um agente e do director de uma produtora cinematográfica, que discutem o valor monetário de uma mulher, Gaby Doriot. O agente pede 450 mil liras pela produção de dois filmes com Doriot como actriz principal, e o director regateia para 400 mil liras. Descontente com o rumo da discussão, o agente tenta terminá-la, retirando o disco do gira-discos e preparando-se para abandonar a sala; o outro, porém, não desiste, tirando-lhe o disco das mãos e voltando a colocá-lo no gira-discos. A conversa é retomada. De forma significativa, encena-se aqui uma primeira figura da interrupção, do silêncio, da fixidez: ao retirar-se o disco do gira-discos, pára a música, interrompe-se a voz de Gaby Doriot (que é a condição acusmática da sua presença na cena) e termina-se a discussão que versa, lembro, sobre a própria Doriot. Isto é, nesta primeira cena, os vários elementos que se reportam à figura principal do filme são figuras do movimento: visual (o gira-discos), temporal (a música e a voz) e da ordem da linguagem (a conversa). Estes elementos são, note-se, interdependentes: o filme reitera que, concluindo a discussão, termina a música e guarda-se o disco. Garantir-se-ia assim a ausência de Doriot. E, no entanto, a cena termina com a segunda personagem a voltar a colocar o disco a tocar e a retomar a discussão, isto é, a criar as condições necessárias para que Gaby Doriot volte a ser uma presença. Todo o filme será construído de forma a fazer predominar o movimento, até ao último minuto, em que o fim do filme coincide com uma morte depois da qual – veremos porquê – não há possibilidade de continuação.
A cena seguinte sublinha esta mesma noção de movimento. Numa sucessão de planos, uma máquina imprime uma série de cartazes em que se vê a actriz Isa Miranda, lendo-se também o nome da sua personagem. Estes breves planos voltam a sublinhar que esta figura existe associada, por um lado, aos regimes da representação e da referencialidade (a imagem e o nome) e, por outro, ao movimento e ao ritmo (ela funcionará, veremos também adiante, como uma máquina de produção de imagens de cinema – o movimento circular do disco no início, aliás, replica também o movimento da bobine).
Ao abrir-se uma nova sequência, então em pleno estúdio de cinema, a primeira palavra que um realizador, que entra em cena, diz é justamente: Doriot. Ele grita o nome repetidamente, chamando pela actriz, que está atrasada para as filmagens. À medida que o nome é repetido, o homem percorre o estúdio, e a câmara, em travelling, deambula pelo espaço com ele. Do realizador passa-se a acompanhar um assistente, que, noutro ponto do estúdio, percorre o espaço repetindo o nome, introduzindo uma pequena variação: “Madame Doriot” (Madame D…). Vêem-se em campo dezenas de figurantes, as vozes multiplicam-se, o ritmo da mise en scène é frenético, e, contudo, este carnaval serve o propósito de sublinhar a ausência de Doriot.
Deve reiterar-se, no entanto, que, nestes primeiros planos, o filme não se limita apenas a duplicar o chamamento das personagens, como se, através delas, também ele chamasse por Doriot. No universo ficcional, Doriot está efectivamente ausente para as restantes personagens, mas ao nível do jogo com o espectador (que acaba de transitar de um mundo em que Doriot não existe para outro mundo – o do cinema – em que ela passa a existir a partir do momento em que é nomeada), o filme trabalha essa ausência insistindo em formas deficitárias de presença: o disco com o nome, a voz de Gaby a cantar o título do filme, a discussão dos dois homens em torno dela e do seu valor (uma discussão que, no caso de uma actriz, tem um certo valor ontológico), os cartazes impressos com a sua imagem e o seu nome, as personagens que percorrem o estúdio gritando por ela. Em suma, os diversos elementos reforçam um estranho efeito de presença-ausência que é importante para alertar o espectador para o facto de a existência deste filme depender intimamente da existência desta mulher.
Do estúdio, passamos para o hotel de Gaby. O agente chama por ela, e, face à ausência de resposta, entra nos aposentos dela: primeiro na sala, depois no quarto, e percebendo finalmente que a mulher se encontra na última divisão, na casa de banho: “Ainda na casa de banho?”, diz, traduzindo a suspeita de que a actriz se demora na toilette, veiculando a sua vaidade (mais tarde, vê-la-emos várias vezes a olhar-se ao espelho). Não obtendo resposta, ele entra na casa de banho, pára na porta, surpreendido por um cenário que ainda não podemos ver, cai-lhe o cigarro da boca, e a câmara aproveita o embalo da queda para efectuar um movimento brusco que revela Gaby Doriot no chão, junto à banheira, entre vidros partidos. A câmara volta a pousar sobre o homem, e acompanha-o à medida que ele atravessa o quarto e a sala, refazendo o mesmo travelling que tinha realizado antes, no sentido oposto.
O director é informado de que Gaby foi encontrada entre a vida e a morte, e chama ao seu gabinete os vários realizadores em cujos projectos ela está envolvida. Perguntam-lhe que informações se dará aos jornais, e ele responde que se dirá que a actriz está doente. Perguntam-lhe o que se fará a propósito da impressão dos cartazes em curso, e ele responde que esta deverá continuar. “Tudo continuará como antes. Os médicos vão salvá-la. Calma. Tudo continua. Continua. Tudo continua.” A câmara regressa às máquinas que imprimem os cartazes, e ouve-se em over: “Continua! Continua! Continua!” Ainda sob o ruído das máquinas, num raccord sonoro, vê-se Doriot numa maca, a ser preparada para a cirurgia. O ritmo abranda, estamos muito longe do frenesim dos minutos anteriores.
Os médicos preparam o gás anestésico, que desce sobre ela, semi-consciente, numa espécie de capacete. Um plano subjectivo – o primeiro até então – dá a ver o ponto de vista da máscara de gás a descer sobre a mulher, e o plano seguinte dá acesso ao ponto de vista desta, que vê a máscara cair sobre si. Regressa-se ao ponto de vista da máscara, que desce; depois, volta-se novamente ao ponto de vista dela; novamente ao ponto de vista da máscara; outra vez ao dela; e por fim ao da máscara, que se aproxima do rosto da moribunda até quase tocar-lhe, causando um efeito de desfocagem. Surge um grande plano da máscara (trata-se do ponto de vista dela, cujo campo de visão está então inteiramente ocupado pela máscara côncava), e um efeito de freeze sobre a máscara. Ouvem-se os gemidos da mulher, e o plano da máscara começa a misturar-se com uma imagem de fumo reminiscente dos créditos iniciais. Surge um intertítulo, onde se lê: “No sono da narcose toda a sua vida lhe surge numa vertigem de sonho.”
Até este momento, o ponto de vista da câmara fora sempre exterior, assimilando na sua movimentação o ritmo agitado das personagens que, ora falavam muito e rapidamente, ora se moviam pelos cenários. Aqui chegados, no entanto, o ritmo da cena abranda: as personagens falam mais baixo, há momentos de silêncio, a câmara move-se pouco, por vezes permanecendo fixa. Na primeira parte desta longa sequência de abertura, a insistência numa noção de movimento articula-se com as figurações da ausência de Gaby Doriot, ao passo que, na segunda parte da sequência, em que Gaby adquire um corpo, se insiste na desaceleração. Em suma, há dois regimes em tensão: um exterior (do mundo, do showbiz, dos homens) e um interior (do sonho, do sentimento, da protagonista).
Podemos regressar agora ao momento inaugural do filme, e à minha sugestão de analogia entre Gaby Doriot e o disco que se move num sentido oposto ao do raccord que abre a imagem do filme. Perceberemos agora por que motivo esta contradição inicial revela que o regime de imagem de toda esta primeira sequência, até ao intertítulo, funciona contra Gaby Doriot. Nestes cerca de dez minutos iniciais de filme, em que diversas noções de movimento são obrigadas a prevalecer, em que o ritmo é frenético, em que o corpo da mulher poucas vezes é figurado directamente, sendo a sua presentificação mediada por figuras referenciais, ela está, afinal, moribunda e, portanto, de alguma forma, já se encontra (com um pé) fora do mundo ao qual a câmara, sempre em planos objectivos, dá acesso.
Um novo regime de imagem tem início no momento em que o filme assimila o ponto de vista da máscara de gás através de um plano subjectivo. Dar acesso ao olhar de uma figura inanimada – e que, portanto, à partida não vê (e, no entanto, fala-se no olho da câmara…) – anima-a efectivamente, e diz-nos, nesta espécie de prosopopeia visual, que a máscara de gás possui atributos da ordem do perceptivo. Do ponto de vista das implicações ao nível do estatuto da imagem, é evidente que este plano – o ponto de vista de uma máquina – inscreve no filme uma variação radical. No entanto, e a acrescer a isto, este estranho plano é complexificado a partir do momento em que se revela que ele é o campo de um contracampo (ou o contracampo de um campo) que corresponde ao olhar da mulher. Isto é, através da montagem, o olhar da máquina é posto numa relação dialéctica com o olhar da protagonista. A sucessão de planos subjectivos em campo/contracampo que atrás descrevi, e que se vê no conjunto de imagens acima, agudiza esta relação, sublinhando (agora sim, com uma certa dose de frenesim – mais do que um encontro pacífico, há um embate tenso) a aproximação física entre estas duas subjectividades, à medida que a máscara desce sobre o rosto da mulher.
O freeze sobre a máscara introduz uma nova variação sobre a gramática visual do filme. Essa paragem ocorre, significativamente, num plano que corresponde ao olhar da mulher. Isto é: o filme pára sobre o olhar dela, no momento em que neste olhar se dá o contágio do olhar da máquina. Este é o regime de imagem que passaremos a ter: o de uma mulher que vê o passado filtrado pelo gás anestésico, que por sua vez lhe empresta a sua narcose, nascendo deste encontro uma nova vida – para ela e para o filme – alucinada. O intertítulo diz-nos justamente isto: no sono desta mulher, aparece-lhe toda a sua vida com a vertigem de um sonho. Tal como suspeitáramos no início do filme, Gaby, entre a vida e a morte, já pouco tem que ver com o regime de imagem realista, aparentemente não problemático, que a câmara propõe. É a máquina que, emprestando-lhe a possibilidade da alucinação, lhe permite alucinar a sua vida e criar o filme, instaurando definitivamente uma fantasmagoria.
Pouco antes destes campos/contracampos, fora da sala de operações, o agente dissera: “uma mulher tão bela. Tinha tudo na vida. Não percebo. Ainda ontem assinou mais dois contratos.” “Alguma coisa será. Talvez um homem…”, fora a resposta do seu interlocutor. “Eu não sei de nada. Sempre a vi sozinha”, e o agente concluíra: “estas coisas não se podem saber. Apenas ela pode sabê-lo. Apenas ela”. Torna-se claro que toda a sequência inicial serve para formular uma pergunta: porque tentou suicidar-se esta mulher que tem tudo? Na realidade, nunca ninguém o saberá com certeza, uma vez que Gaby Doriot morrerá na mesa de operações. A condição sine qua non de o espectador obter uma resposta – e, portanto, a condição para a existência deste filme que tem na sua razão de ser uma pergunta – é então aceder à (in)consciência de Gaby Doriot.
Um sonho dentro de um sonho
O flashback transporta-nos para um dia na juventude de Doriot, durante uma aula de música. Um professor está atrasado, e ninguém sabe onde ele se encontra. O director da escola entra na sala e anuncia que sucedeu uma tragédia naquela manhã. Nesse momento, Doriot desmaia, e rapidamente se sabe que o professor cometeu suicídio, deixando uma carta onde confessava o amor pela aluna, não obstante ser casado e pai de família. Confrontada com a carta, Doriot afirma que o professor lhe declarou efectivamente o seu amor um dia, no intervalo das aulas, mas que ela o rejeitou, e acrescenta que, se soubesse que a sua recusa originaria tal tragédia, teria aceitado envolver-se com ele.
Esta sequência estabelece finalmente alguns traços de personalidade de Gaby Doriot (até então, uma espécie de tela branca disponível para projecções), sublinhando em particular a sua inocência. Sem querer, Doriot orquestrou um desastre, e, como consequência disto, aos olhos dos outros, ela não pode ser inocente: “vergonha, vergonha!”, grita o director (a sequência seguinte, em casa do pai, começará justamente com este a repetir: “vergonha, vergonha!”, após a expulsão da escola). Em suma, cria-se um cenário que se repetirá, e que de certa forma prolonga aquilo que já discuti a propósito da primeira sequência, e que diz respeito à construção de uma descoincidência absoluta entre a verdade desta mulher e a percepção que os outros (e, eventualmente, ela mesma – a qual pode muito bem não coincidir com a verdade) têm dela. Gaby parece condenada a ser desconhecida, e, numa primeira análise, o filme de Ophüls parece desenhar-se no sentido de combater esta vocação para o desconhecimento.
Adicionalmente, esta primeira sequência do flashback adiciona à circularidade do filme um padrão de repetição. Se a sequência de abertura se centrara numa personagem inicialmente ausente, que é depois procurada pelas restantes personagens, sendo finalmente encontrada após uma tentativa de suicídio, a primeira sequência do flashback repete o mesmo esquema. Nesta repetição, porém, a protagonista ocupa um papel distinto: passa a ser o ícone, a causa da perdição. Ainda perto do início, somos levados a crer que, tal como o professor se suicidou por causa dela, talvez o interlocutor do agente tivesse razão quando supusera que na origem da tentativa de suicídio da actriz estivesse um homem. Tomaremos conhecimento, com o desenrolar do filme, de que Gabriella Doriot será a perdição de dois homens (o pai adverte, no início: “ela é perigosa e não o sabe!”), para, no fim, encontrar num homem a sua própria perdição.
Gabriella é expulsa da escola e sentenciada pelo pai a uma vida de reclusão. Num dia de sol, uma régua lançada a partir do exterior – no meio de uma briga entre jovens amigos – cai no jardim da família, aos pés da jovem. Na régua estão inscritas as iniciais R.N. Poucos dias depois, ela e a sua irmã são convidadas para um baile oferecido por um jovem rapaz, Roberto Nanni. Preparando-se para o baile, vemos a protagonista olhando o seu reflexo no espelho, como se se apercebesse pela primeira vez da sua extraordinária beleza, que se tornará, sabemos, a razão pela qual ela será simultaneamente senhora de todos (actriz popular, amada pelos homens e apreciada pelo público) e senhora de ninguém (sozinha, sem nunca conseguir estabelecer contacto efectivo, prolongado, com ninguém).
No baile, ela conhece Roberto, com quem dança, rodopiando como rodopiara o casal malfadado de Liebelei (1933) e rodopiariam os casais malfadados de Letter from an Unknown Woman (Carta de uma Desconhecida, 1948) e Madame de… Este rodopio – que em todos estes filmes condensa, de alguma forma, uma coexistência dos amantes fora do tempo e do espaço ordinários, fazendo-os pertencer temporariamente a outra ordem, que acaba por ser abandonada ou pervertida – retoma também, no caso específico de La signora di tutti, o movimento do disco que, no início (o qual, lembremo-nos, se situa cronologicamente no fim da vida de Gaby), gira sobre si próprio, numa condenação simbólica da actriz a uma solidão e a um solipsismo que, saberemos, ela nunca desejou para si.
No momento do baile, no entanto, Gaby não está só, e, portanto, o mesmo efeito de rodopio em torno de um centro adquire o significado oposto ao que obtém no caso do disco: ela e Roberto formam uma unidade. Tal como em todos os restantes filmes de Ophüls que referi, o momento em que o casal rodopia sobre si mesmo cristaliza simbolicamente o cenário ideal que todos estes filmes tratarão de destruir, um em que os amantes podem coexistir.
A certa altura, durante a dança (“gostaria de dançar perpetuamente”, diz ela), Gaby afasta-se de Roberto, começando a girar sozinha, até perder o equilíbrio e cair. Ele adverte-a: “estás a ver? Isto acontece quando me deixas sozinho.” Por esta altura, tendo já entendido a mecânica do filme, o espectador pode perceber que aqui está contido o fulcro melodramático da narrativa: Gaby encontra um homem com quem pode dançar perpetuamente, mas acaba por se distanciar dele, dançando sozinha e acabando por cair. E, no entanto, se ela não o tivesse deixado sozinho, não cairia. Ophüls trabalha uma característica trágica muitas vezes transposta melodrama clássico, que consiste no facto de as personagens não possuírem a habilidade de ler os sinais que lhes permitiriam evitar os erros e conduzir o seu percurso de vida da forma ideal. Seguindo esta linha de leitura, La signora di tutti inscreve-se claramente numa certa tradição melodramática em que as personagens são vitimadas por si mesmas, e não pelos outros. Gaby não se apercebe do peso simbólico das palavras de Roberto, e perde para sempre, nessa mesma noite, a possibilidade de se unir a ele. Roberto sairá da sua vida algumas horas depois de ter entrado, para regressar (à sua vida e ao filme) apenas no final (da vida e do filme).
Roberto parte para Roma no dia seguinte sem poder despedir-se de Gaby, que por sua vez se torna companheira diária da mãe do rapaz, Alma, que, sem o filho e o marido – ambos em viagem –, se vê presa a uma vida solitária numa cadeira de rodas (círculos paradoxais de fixidez). Leonardo, o marido, regressa e, ao ver Gaby pela primeira vez, decide passar mais tempo em casa. Nessa mesma noite, Alma convence a jovem a ir ao La Scala, onde tem reservado um lugar. Gaby – humilde, pouco habituada a luxos, mas curiosa por experimentá-los – gostaria de ir, mas não tem um vestido condizente com a grandeza do La Scala. Ela acaba por assistir à ópera nessa noite, ocupando o lugar reservado a Alma, com um vestido emprestado por Alma, e com o marido da mulher mais velha, então decidido a conquistar a jovem. Segundo uma lógica particular que se repete em filmes de substitutos (escrevi sobre esta temática a propósito de Jacques Demy, Wong Kar-Wai e Yevgeni Bauer), estão criadas as condições para Gaby poder ocupar o lugar de Alma. Resistindo inicialmente aos avanços de Leonardo, Gaby torna-se por fim esposa deste após causar inadvertidamente a morte de Alma, que cai na grande escadaria da casa enquanto Gaby e o marido se beijam no jardim, ao som da ópera que havia sido vista por Gaby dias antes, e que passa então no rádio.
Depois da morte trágica de Alma, Gaby e Leonardo passam um longo período de tempo em viagem, tentando escapar ao peso das mesmas circunstâncias que os uniram. Ao regressarem à casa, o retrato de Alma impõe-se na sala. Sentindo-se desconfortável, Gaby dirige-se à lareira, de onde sai fumo, e começa a ouvir, como se o fumo transportasse música, a ópera a que assistira na primeira noite com Leonardo e que se podia ouvir na casa na noite em que Alma morreu. Gaby descontrola-se e exige ao criado, gritando, que desligue o rádio. No entanto, Leonardo e o criado respondem-lhe que nada podem fazer, porque a casa está, na verdade, em silêncio.
E, contudo, o espectador ouve efectivamente a música. Torna-se então evidente aquilo que, por este momento, talvez pudesse ter sido esquecido: o filme a que se assiste é o filme da cabeça da protagonista. Não admira, portanto, que ao assistir a esta cena na grande sala da casa, possamos ouvir a música que só ela ouve, e que, na realidade, não existe. Não é de forma arbitrária que Ophüls faz coincidir o início da música com um plano sobre o fumo, uma vez que foi o fumo que, como vimos, marcou a transição do primeiro nível de realidade para o sonho dela. Ao ouvirmos a música com ela, somos lembrados de que alucinamos com ela. Repare-se ainda nas últimas três imagens do conjunto imediatamente acima, e em como Ophüls compõe a imagem de modo que o fumo de cigarro projectado por Leonardo se misture com a cabeça de Gaby – a mesma na qual este filme, na verdade, acontece.
Na verdade, vários elementos são dispostos mais ou menos subtilmente ao longo do filme, com o efeito de reforçar a qualidade não-real de tudo o que vemos. Após a cena em que Gaby e Roberto dançam, o casal sai para o jardim, dando início a um longo travelling durante o qual se pode ver claramente um operador de câmara, perfeitamente em campo, a olhar para o espectador antes de iniciar um travelling dentro do travelling. Este erro demasiado conveniente para não ser calculado reforça a ideia de que esta mulher, ao sonhar a sua vida, encena o seu próprio filme, no qual ocupa simultaneamente as funções de realizadora e actriz. Na verdade, podemos identificar outros momentos de disrupção da ilusão de realidade, que chamam a atenção para a qualidade artificiosa deste filme dentro do filme, tais como as diversas aparições de sombras do aparato técnico em campo, ou, por exemplo, perto do final da cena em que Gaby ouve a música (a cena que sinaliza a sua loucura – e são muitos os exemplos de filmes em que a loucura das personagens se alia à faculdade de fazer imagem [apenas um exemplo: The Ward [O Hospício], 2010, de John Carpenter), num momento de emoção paroxística, um corte particular na montagem, que é de tal maneira abrupto que parece antecipar os jump cuts que Godard celebrarizaria com À bout de souffle (O Acossado, 1960), mas que aqui parece obedecer, efectivamente, à lógica desconjuntada de um sonho.
Mas o filme faz coincidir mais coisas para além de “sonho” e “filme”. Após abandonar Leonardo, Gaby torna-se uma actriz célebre, que a dado momento vemos a narrar ao seu agente os acontecimentos da sua vida, aos quais nós próprios, os espectadores, assistíramos até então. Percebemos que Gaby estava a contar, dentro do sonho, os eventos da sua vida de modo a que estes pudessem integrar uma biografia que está a ser escrita sobre ela. Contudo, o homem diz-lhe que aquilo que ela lhe contou não é o tipo de coisas que o público procurará na biografia de uma estrela. “Isso é matéria de romance, de filme!” Não é matéria de uma vida. E, assim, publica-se uma biografia de Gaby Doriot à qual não nos é dado acesso, mas que sabemos ser discordante da sua verdadeira história, uma vez que, no fim da narração dela, o agente lhe mostra o papel em branco, dizendo: “sabe o que escrevi de tudo o que me disse? Nada”. Se a matéria real da sua vida não é transformada em biografia textual, ela é – sabemo-lo por esta altura – escrita em filme por Ophüls, que não precisa do texto, podendo penetrar na sua consciência.
Perto do final, vemos num escaparate vários exemplares do livro, na entrada de um cinema que está a passar o derradeiro filme da estrela, La signora di tutti. Se considerarmos que esse filme é a versão cinematográfica da biografia falsa de Gaby Doriot, então estamos perante a sobreposição de dois filmes, que partilham o mesmo título e a mesma protagonista, e que, contudo, oferecem narrativas radicalmente diferentes. O filme dentro do filme, versão solar (dissera-lhe o agente: “uma actriz tem de ser como o público a quer: jovem e rejubilante! Ninguém quer saber de desgraças”), oferecerá uma “versão sonhada” da narrativa da vida da actriz; o filme de Ophüls, versão nocturna, oferece a “verdade dos factos”, que, não sem ironia, é efectivamente sonhada.
E, contudo, convém tomar a verdade destes factos com um grão de sal. Tal como facilmente nos podemos perder na fantasia persuasiva, mas possivelmente com uma certa dose de delírio, de Lisa em Letter from an Unknown Woman (Carta de uma Desconhecida, 1948) – filme com o qual, como aqui se torna claro, La signora di Tutti partilha características estruturais evidentes –, convém tomar em consideração que, neste sonho que ocorre no limiar da vida, Gaby Doriot pode estar a oferecer inconscientemente a sua versão dos factos, que, como a “mad scene” com a música da ópera deixa perfeitamente claro, é a única à qual temos acesso.
Um espectador céptico poderá ver nesta alucinação uma série de deturpações da realidade que procura ilibar constantemente Gaby dos desastres que acontecem, por sua causa, à sua volta. Interessa pouco, no entanto, interrogar a verdade das situações que o filme reproduz, mas sim compreender que – tal como em Letter – Ophüls mina, através da estrutura do filme, uma ideia de verdade que seja exterior à sua própria lógica. A verdade do filme (e de qualquer filme, esta é a hipótese extremada no horizonte – e que já toquei num outro texto, a propósito de Kapurush [O Cobarde, 1965], de Satyajit Ray) é a verdade da alucinação. É por isto mesmo que somos obrigados a regressar à transição operada, no final da primeira sequência, com o intertítulo que marca o início do sonho, entre o “real objectivo” e a “subjectividade de Goriot”.
Atentando nos créditos, observamos um fumo muito semelhante ao que ilustra o intertítulo da passagem para o sonho. Torna-se assim claro que o começo do filme marcava já uma transição para o domínio do sonho (o sonho do cinema, no qual o espectador está a ingressar), e, deste modo, o sonho de Gaby Doriot, que começa no intertítulo que transcrevi acima, é afinal, como diria Poe, um “sonho dentro de um sonho” que, no fim de contas, não anula, mas antes reforça, a dimensão onírica do primeiro nível de realidade. A verdade da alucinação, ou sombras de sonhos.