A obra de Hirokazu Koreeda regressa a Portugal depois de um hiato de cerca de cinco anos das salas nacionais e duas longas metragens entretanto postas na prateleira “para inglês ou cibernauta verem”, Umimachi Diary (Our Little Sister, 2015) e Umi yori mo mada fukaku (After the Storm, 2016): impressionante como ninguém (festivais inclusive) pegou no segundo; filme subtil e minucioso sobre a desagregação familiar, retrato honesto e maduro de como reconstruir laços parentais entre pequenos e grandes adeuses. No entanto, a coisa mais insólita da proposta da Legendmain Filmes – distribuidora portuguesa deste Sandome no satsujin (O Terceiro Assassinato, 2017) e que, desde já, necessita de uma saudação por ter tido a ousadia de apostar, sem concessões, na exibição comercial de cinema japonês contemporâneo – foi escolher um filme que frustra completamente as expectativas de quem vai ao cinema ver “autores às postas” e espera reconduzir sem solavancos a parte no todo, o filme na obra, a cara no coração. Seria muito mais fácil escolher, por exemplo, Umi yori mo mada fukaku, mesmo com os quase dois anos de atraso face à estreia (nada de novo debaixo do sol das nossas distribuidoras), do que este mais recente Sandome no satsujin. No primeiro reconhece-se o cineasta comedido e sensível dos dramas familiares, o mais legítimo herdeiro do tradicional shomin-geki (“estórias da gente comum”); neste segundo o criador aventureiro que, no passado, já nos deu, entre outras coisas, uma comédia suave e despretensiosa de samurais, um romance pretensioso e carregado entre um homem solitário e uma boneca insuflável e um documentário sobre os périplos de uma cantora. Muitos cinéfilos defendem que se não houvesse o primeiro Koreeda, o segundo não passaria de um medíocre cineasta. Pois bem, faça-se uma apologia dessa mediocridade, desse cinema “ao lado”, cuja faceta irreconhecível raras vezes chega às nossas telas.
Mesmo na filmografia nem sempre coerente de Koreeda, Sandome no satsujin é um corpo estranho. Um courtroom drama nada vulgar, mas que ainda assim conserva uma certa intemporalidade dos clássicos. Akira Kurosawa, que filmou muitas vezes os seus personagens como réus num tribunal, nunca descurou questões decorrentes deste género algo peculiar: Shûbun (Scandal, 1950) desaguava num julgamento entre a imprensa cor-de-rosa e uma celebridade afectada pelos abusos de privacidade; a longa sequência do velório em Ikiru (Viver, 1952) recorria ao flashback como se se tratasse de uma judicatura cósmica, recompondo o retrato moral do bem-feitor padecendo de cancro; Rashômon (1950), por fim, introduzia o problema da incongruência dos testemunhos de um crime, problematizando o carácter subjectivo no interior da própria facticidade. Se a urgência do quesito da justiça era própria de Kurosawa, então os seus trâmites e processos de culpas e absolvições eram característicos do cinema de um outro realizador, Yoshitarô Nomura. Nomura era obcecado pelo espaço físico do tribunal. Filmava julgamentos como Poirot (ou Kôsuke Kindaichi, para não sairmos do Japão) desmascarava crimes. Nos seus filmes, a câmara está do lado dos advogados e dos detectives e ambos são faces da mesma moeda: investigam a verdade dos factos, o passado, os motivos das mentes criminosas como em Suna no utsuwa (The Castle of Sand, 1974) e Jiken (The Incident, 1978) ou colocam-se do lado dos arguidos para os ilibar de um processo enevoado como sucede em Giwaku (Suspicion, 1982). A realidade existe para resolver o processo. O “mundo lá fora” é um quarto contíguo ao tribunal de onde raramente se sai até se desenrolarem todos os novelos.
Koreeda mantêm-se classic with a twist. Consegue fazer a proeza de estar com um pé em Kurosawa e um pé em Nomura e não ser nenhum dos dois.
Apesar de, no cinema japonês, a popularidade dos dramas penais ainda não ter decrescido (ao contrário do que se passa no Ocidente em que essa estética foi relegada maioritariamente para o pequeno ecrã), Koreeda mantêm-se classic with a twist. Consegue fazer a proeza de estar com um pé em Kurosawa e um pé em Nomura e não ser nenhum dos dois. É definitivamente inspirado pelo jogo de espelhos da realidade em Kurosawa, mas pouco se preocupa em responder às questões morais subjacentes; interessam-lhe as intrigas de corredor dos tribunais de Nomura, o sistema penal japonês e o estranho quotidiano flutuante dos advogados, mas evita ao máximo o espaço onde se julgam os criminosos, negando o seu potencial de refinamento da verdade. Aqui, são mais proeminentes as sequências em que os advogados comem ramen instantâneo, dormem mal e porcamente, divagam sobre o caso que defendem e as idiossincrasias da justiça do que as cenas na barra do tribunal onde supostamente contaria a ardilosa retórica ou a seriedade glacial do investigador. Este não é, de todo, o tipo de filme que está assente na complexidade dos diálogos e da argumentação declamada. A austeridade nesse departamento (e noutros) tem o seu quê de surpreendente.
Um courtroom drama com pouco ou nenhum courtroom time não é a única subversão oferecida. Também a sensibilidade associada ao Koreeda dos dramas familiares vai para prisão preventiva. Atente-se bem ao desapaixonamento da fotografia e tente-se passar por cima do mau gosto das pianadas intromissivas da trilha sonora, talvez, o único pecado indesculpável do filme. Oxalá Koreeda tivesse aconselhado Ludovico Einaudi a tirar os dedos do piano, e fechado a porta a qualquer tentativa de melodia: o formalismo robótico e cerebral destas imagens só deveria encontrar o silêncio como companheiro. Apesar desse percalço musical, imageticamente, Sandome no satsujin situa-se num constante balanço entre uma apatia marmórea em que o bocejo é um elogio e uma inventividade discretamente rígida e passível de gramaticalidade. Aqui, essa capacidade da câmara construir uma forma de olhar é decisiva, por exemplo, no modo como acedemos aos rostos dos personagens. Em vários fotogramas de promoção e até no cartaz nacional do filme, notamos alguma estranheza na forma como eles estão enquadrados. Durante o visionamento, também os rostos vão-se progressivamente compactando, esquartejados por uma perspectiva parcial, tornando-se egípcios.
A câmara não se priva de filmar planos frontais por intervalos, mas quando eles surgem, criam a impressão que o acesso ao interior dos personagens ficou um pouco mais assegurado. Emoções plenas, por fim. Respiramos. E, logo a seguir, amontoam-se os planos desconfortáveis de perfil, mesmo quando não há qualquer intensidade narrativa que o justifique. Da mesma forma que nunca ficamos a saber qual dos testemunhos contraditórios e sempre diferentes do assassino aos seus advogados é fiável, os enquadramentos de perfil põem a descoberto uma face da verdade enquanto que a outra permanece relegada nas sombras. A crescente presença e soberania destes planos de caras dilaceradas representam a comichão irritante de sabermos que não temos posse de todas as informações. Um conhecimento do não-conhecimento, uma episteme da negativa, se quisermos, os prognósticos de um jogo de póquer em que nunca se chega a deitar as cartas na mesa. Diria mais: vai-se operando aqui uma redução ao absurdo com pés de lã, um alastramento radical do cepticismo. Com o passar do tempo, nem mesmo nos planos frontais podemos confiar. Se, através da bidimensionalidade do exterior éramos convidados a um acesso pseudo-adequado ao interior, são agora as próprias emoções dos outros que ficam obliteradas por um egipcianismo atroz que tudo contaminou. Mesmo a confissão afectada de violação, por parte de uma nova testemunha, que desponta numa lágrima pode ser colocada, por nós, no mesmo nível de falsidade de uma adolescente rebelde, filha do advogado, que finge o choro para ser desculpada de furtar produtos de um super-mercado. Ambas filmadas de frente estão agora sujeitas ao modo mental de ver em perfil. Todo o filme passa a estar.
O uso engenhoso, todavia parco, dos flashbacks distancia-se do paradigma narrativo de Nomura e de tantos outros cineastas de tribunal com vícios do noir. As remissões ao passado não descrevem (como a primeira, logo na sequência inicial, parecia antever) nem desempatam as antinomias do real, antes, baralham ainda mais a percepção, desdobrando-a em fragmentos solipsistas e projecções subjectivas (veja-se como o sonho do advogado numa viagem de comboio em nada difere, em termos essenciais, das duas ou três reencenações “pseudo-reais” do crime). Os flashbacks são alucinações colectivas de querer crer e nunca regimes mais profundos e iluminados de entendimento. São segmentos em que o filme sonha por nós e pelos seus personagens. Portanto, em relação à verdade, a câmara de Koreeda começa por adoptar o olhar de um advogado cínico (perdoem-me o pleonasmo), mergulha nos avanços e recuos do nosso sistema de crenças, nessa estrutura feita da mesma matéria dos sonhos, e acaba onde começou, mas sem o cinismo, antes com o palpitar doentio da inquietação.
Os flashbacks são alucinações colectivas de querer crer e nunca regimes mais profundos e iluminados de entendimento. São segmentos em que o filme sonha por nós e pelos seus personagens.
Talvez por isso mesmo, a violência maior de Sandome no satsujin seja demonstrar, por a mais b, que a adesão à verdade de um testemunho num tribunal (e porque não na vida?) é sempre acompanhada por uma empatia fiduciária que não foi sujeita ao crivo da racionalidade quando os factos disponíveis não facilitam o veredicto. E, no entanto, numa das últimas sequências em que o advogado fala com o seu cliente, muitos espectadores poderão sair da sala com uma pretensão de clarividência, um levantar a saia de Maya, aquele “aha” característico do leitor de policiais quando, na realidade, apenas se produziu o tipo de “ciência” barata de videntes, cartomantes e espectadores de cinema: uma baseada na intuição e nos palpites. Koreeda não é nada inocente aqui. Cria as condições para podermos erradamente crer em algo, no que quer que seja ditado pelo nosso faro enganador. Põe à prova o olhar que é capaz de duvidar até dos seus truques enquanto contador de estórias, apelando a um mutismo ensurdecedor, o mesmo que precede o pedido (desesperado ou provocador?) do seu próprio criminoso: “Acredita em mim, Sr. Advogado?” – “Acredita em mim, Sr. Espectador?” Questões que, devido ao seu carácter problemático, são o mantra debaixo do qual todo o filme se constrói e destrói: para saber algo é preciso, primeiro, acreditar. E acreditar é um saber que não sabe. Fugir da sombra de qualquer crença seria a estratégia mais sensata, mais perto da luz, mas paradoxalmente seria também a mesma que impediria a vida de se dar, os olhos de ver. Fora, portanto, do salto mortal da necessidade vital ou pedido inexplicável em “acreditar em algo” para aceder ao mundo e aos outros, só existe a encruzilhada da razão. A razão como anjo exterminador ou como redução ao nada dos sentidos. Comprove-se isto através da desafectação presente no último plano do filme, simples na sua literalidade, mas eficaz no seu significado: uma razão sem crença não pode, de facto, deliberar, escolher um dos vários caminhos.
Para qualquer jurista, esta forma de apresentar o problema, questionando a capacidade de qualquer homem julgar outro na raiz, é apenas desconversar. O pressuposto mais básico do Direito é que a realidade externa existe, o acesso aos outros é adequado e uma deliberação não pode ser adiada ad eternum sob pena de nunca nos encontrarmos em condições de vestir a toga dos deuses. Encolhendo os ombros, poderíamos fechar o assunto falando de uma justiça falível, à dimensão dos erros e da perspectiva humana, prosseguindo, no entanto, com a coerção das leis. Poderíamos descredibilizar as primeiras perguntas em virtude do cinismo do Homem pragmático (como parecem fazer aqui todos os personagens que metem as mãos na massa da justiça), mas por não pactuar com maniqueísmos desnecessários, Koreeda não esgrime críticas contra ninguém em particular, mas a todos em geral. Encara o Direito e os seus agentes como um epistemólogo, não como um advogado. Portanto: pensa muito e nada muda. Quem, porém, defender a ideia de que o “Terceiro Assassinato” do título diz respeito ao “crime” perpetrado pelo Estado (quando, querendo despachar a sentença de um duplo homicida sem dar contas à verdade, abdica de qualquer hipótese de justiça), tem apenas metade da resposta correcta. Contrariamente ao que se escreveu e continua a escrever sobre Sandome no satsujin, não parece que a intenção fundamental seja a de manifestar activamente contra a pena de morte, mas sim chamar a atenção para a nossa terrível constituição interna de acesso àquilo que achamos ser verdade, exasperando-a, desgastando-a, colocando-a na encruzilhada. Este assassinato metafórico, esta falta de justiça constituinte, são, pois, prévias à condenação atabalhoada dos juízes.
Afinal de contas, como podemos descrever Sandome no satsujin? Um Rashômon burocrático, sem notícia ou rasto do seu dinamismo, enchumaçado com fatos caros e nós de gravata da lei; sem resposta ao que fazer depois do cepticismo, de como orientar uma ética individual num mundo onde os factos teimam em ser revelados. Se o final da película de Kurosawa lutava contra o impasse construído por uma narrativa de perspectivas desencontradas mas inquietantemente válidas, salvando-o através da descoberta da autonomia da acção moral em relação à verdade objectiva, o exercício de Koreeda permanece demasiado quieto no manto da dúvida, demasiado discreto e formalista na mise-en-scène, quase abstracto no seu carácter observacional, letárgico e analítico. Contrariamente ao que pode parecer, é aí que reside o seu fascínio.