O Córtex — Festival de Curtas-Metragens de Sintra decorre este ano de dia 11 a 15 de Abril no Centro Cultural Olga Cadaval e, pela primeira vez, no Cinema Ideal. Como habitual um dos seus pontos fortes é a competição nacional que acolhe várias das curtas metragens mais sonantes do passado ano, incluindo filmes como Água Mole (2017), Altas Cidades de Ossadas (2017), Coup de Grace (2017), Farpões Baldios (2017), Os Humores Artificiais (2017), Surpresa (2017), Thursday Night (2017) – todos filmes sobre os quais escrevi aquando da sua exibição no Curtas Vila do Conde – assim como os excelentes Tudo o que Imagino (2017), Miragem Meus Putos (2017), Limoeiro (2017) e O Meu Pijama (2017) – exibidos no IndieLisboa –, o vencedor do Urso de Ouro em 2017, Cidade Pequena (2016), entre outros. Além da Competição Internacional e de outras secções como o Frontal, o Hemisfério e um programa que retrospectiva os vencedores dos últimos 8 anos do festival, o que me chama a atenção é a retrospectiva dedicada ao realizador austríaco Ulrich Seidl, que mostra algumas das suas primeiras curtas metragens assim como a mais recente longa, Safari (2016), pela primeira vez em Portugal. [Antes, o IndieLisboa já havia exibido as longas Im Keller (Na Cave, 2014) – de onde originou este Safari, já que um dos casais protagonista desse filme tornou-se o mote deste – e a propósito da trilogia Paradies: Liebe (2012), Glaube (2012) e Hoffnung (2013), montou um foco dedicado ao realizador, sobre os quais o walshiano João Lameira escreveu.]
No que já vem sendo um hábito, o Córtex vem exibindo na sua sessão de abertura (e agora distendido pela semana) algumas das primeiras curtas de realizadores que atingiram mais tarde grande reconhecimento com as suas longas, desde o americano Antonio Campos ao luso César Monteiro, passando pela trilogia de estreia de Terrence Davies ou os primeiros títulos da neozelandesa Jane Campion. Este olhar sobre aqueles que são, na maioria dos casos, filmes de escola, permite encontrar os cineastas agora consagrados numa fase em que exploravam linguagens e procuravam ainda encontrar uma voz. Nesse sentido é, no mínimo, curioso descobrir certos excessos, certas aventuras que não deixaram lastro, certas inversões formais e estéticas, enfim, permite perspectivar o trabalho de um realizador no sentido em que ajuda a traçar um percurso contínuo que os levou aos “filmes-chave” da sua obra. No entanto corre-se o risco de fazer este percurso com duas ideias-feitas em mente: (1) a ideia da curta metragem escolar como cartão postal, isto é, como algo que anuncia outra coisa, que só serve e só é válido na relação com o que veio depois; (2) a ideia da curta metragem como território de aprendizagem, como universo de crescimento, e como tal, cujo interesse é apenas o da passagem para as longas. No entanto, vistos os filmes que inauguram a obra de Ulrich Seidl, apetece dizer que o seu cinema sempre caminhou para a longa – vejam-se as metragens dos filmes da retrospectiva, quase todos de média metragem – e que, pelo rigoroso formalismo que os caracteriza, o estilo seidliano foi algo que o realizador encontrou muito cedo (o que não deixa de ser irónico quando Safari é talvez o menos seidliano dos filmes que lhe conheço).
Narrativamente os seus filmes trabalham a partir de uma ideal coral, em que diferentes personagens compõem uma imagem de conjunto que traduz “uma noção da realidade”.
Que estilo é esse? Começo então: um cinema documental construído à base de entrevistas talking heads e filmado essencialmente através de planos fixos e frontais, que ora enquadram uma, ora enquadram duas pessoas (não mais); são planos cuja composição segue a regra da simetria e que pensa a relação do(s) personagem(ns) e do seu ambiente na relação de 1 para 3 (como no arroz), com este(s) ocupando tipicamente o terço inferior, deixando os dois superiores para o “seu” espaço, isto é, um território que os define (o quarto, a sala, o escritório, a sala de aula, etc.); Seidl trabalha uma mise en scène da fixidez, com os seus personagens quase sempre imóveis, muitas vezes sentados (mas por vezes de pé e nesses casos quase sempre em silêncio – neste caso os funcionários, do Europapark ou do parque de safaris), olhando directamente para a câmara em cenas manifestamente encenadas e em que muito raramente se ouve a voz do encenador/entrevistador (excepção para as suas duas primeiras curtas, que também não traduzem este rigor dos enquadramentos); a juntar a isto há ainda uma estratégia de montagem alternada que intervala longas sequências de entrevista com motivos que são muitas vezes musicais (ensaios para o prom, o tocar do piano, uma caixa de música ou um brinquedo a pilhas) ou, no mínimo, acções repetidas e repetitivas que demonstram um trabalho continuado ou uma recorrência (uma velhinha teimosa e com frio, as voltas e voltas do carrossel, o desmembramento dos animais após a caçada ou a acção repetida de uma máquina); por fim, narrativamente os seus filmes trabalham a partir de uma ideal coral, em que diferentes personagens compõem uma imagem de conjunto que traduz “uma noção da realidade” (surgindo, ocasionalmente, um plano que compõe uma série de personagens – todos idênticos – em fila ou em escadinha, aliás, o recurso à profundidade de campo foi algo que se perdeu com os anos nos filmes do realizador), sendo que desse coro Seidl costuma destacar um ou outro personagem em detrimento dos demais; as suas grandes angulares e a sua escolha por personagens bigger than life (ou bigger than reality) tendem a produzir um primeiro impacto que é o da caricatura (do cromo, do freak – os anões, a autista, a obesa, o nerd, o kinky), impacto esse que os melhores filmes de Seidl acabam por desmontar de fora para dentro – esse é, aliás, o seu modus operandi.
Feita esta descrição (naquela que é provavelmente a frase mais longa que alguma vez escrevi) quero agora fazer um pequeno desvio que, como a motorizada do anão de Einsvierzig (One Forty, 1980), chia nas curvas e assusta os transeuntes. Abrir espaço ao inesperado é sempre uma coisa boa, e fazê-lo no âmbito do regime alimentar do cinéfilo melhor ainda, por possibilitar encontros entre filmes que de outro modo dificilmente se falariam se se cruzassem no passeio. Tenho gosto em estimar estas improváveis comunicações. Foi o que fiz quando vi, consecutivamente, Khaneh siah ast (The House is Black, 1963) de Forugh Farrokhzad e Furious 7 (Velocidade Furiosa 7, 2015) de James Wan, ou quando se deu o caso de ver, no mesmo dia (e na mesma rua) After Earth (Depois da Terra, 2013) de M. Night Shyamalan e Bigger than Life (Atrás do Espelho, 1956) de Nicholas Ray. Pois bem, desta feita a coincidência passa por, nos dois últimos serões, ter visto The Man Who Knew Too Much (O Homem Que Sabia Demais, 1956) de Alfred Hitchcock – numa deslumbrante sessão em que a juntar à cópia de época VistaVision-Technicolor houve a hipótese de exibir o filme através do sistema de som óptico dimensional (Perpecta Sound), num evento raro e provavelmente irrepetível – e o já referido Safari. Perguntar-se-á o leitor que aproximação existirá entre os dois filmes, a resposta é, de novo, um acaso (ou melhor, e para citar a folha de sala de João Bénard da Costa, um acaso): a hilariante e desesperante sequência do taxidermista Ambrose Chappell no filme do realizador britânico. E ao ver essa cena encontrei a metáfora perfeita para descrever o cinema de Ulrich Seidl, a taxidermia.
Se dizia que o seu modus operandi se fazia de fora para dentro, é porque pensava já no exercício do empalhamento que está mais preocupado com a aparência exterior do couro que molda, do que do interior, que preenche com diversos materiais de enchimento amorfo. O próprio olhar de Seidl é de taxidermista, ele congela as poses, procura na postura de estátua dos seus personagens uma narrativa que é, muitas vezes, a narrativa do caçador e não do caçado. O seu cinema é feito do extirpar (que Safari literaliza) da naturalidade, não lhe interessa filmar o achado porque esse dá-se antes do “acção”. A sua câmara filma apenas a captura e nesse sentido este mais recente filme é paradoxalmente revelador do seu cinema. E digo paradoxalmente porque é simultaneamente um filme que traduz cristalinamente o estilo seidliano (magnificamente, através da apropriação dos enquadramentos dos próprios caçadores e dos seus troféus, convertendo-os em dioramas de si mesmos) e porque, igualmente, é aquele que formalmente é mais disruptivo. Safari é um filme a dois tempos: por um lado o mecanismo de “desnaturalização” que o realizador aplica a tudo o que (não) mexe; por outro, um filme de câmara à mão, nervoso, que acompanha os caçadores que viajam para a Namíbia e para a África do Sul para caçar big game. Pela primeira (?) vez Seidl procura traduzir uma experiência pela proximidade da câmara, e sentimos a angústia dos minutos antes do disparo, a incerteza de ter acertado no alvo (e a incerteza do próprio alvo). Nesse sentido Safari é um filme que, de forma muito consciente, parece contradizer alguns dos filmes do realizador, em particular aqueles programados neste programa retrospectivo.
Muito do cinema de Seidl traduz os “modos do divertimento” para uma sociedade desenvolvida de primeiro mundo, modos esses que são reflexo do próprio batimento da sociedade. Por exemplo, Der ball (The Prom, 1982) é uma desconstrução – de fora para dentro, já se sabe – de uma instituição escolar onde se reforçam os estereótipos do masculino e do feminino através de um discurso conservador e patriarcal; já Spass ohne grenzen (Fun Without Limits, 1998) – que é talvez o seu melhor filme – é uma visita a um parque de diversões onde o ready made do entretenimento se revê no desconcertante ou na simples indiferença (ou no modo de lidar com o trauma), assim como Der bunsenfreund (The Bosom Friend, 1997) é uma paródia sobre a relação obsessiva com o cinema, em particular as estrelas (uma fixação com a actriz Senta Berger), e do modo como o machismo infecta corpos e rituais sexuais (a partir de um falso princípio de autoridade intelectual, que mais uma vez Seidl desmonta – de fora para dentro). E também Im Keller era sobre os divertimentos que os austríacos preferiam esconder na cave e a trilogia Paradies sobre o turismo sexual imbuído de pós-colonialismo [tal como, Die latzten männer (Last Men, 1994)]. Portanto, olhares sobre o entretenimento, mas olhares que expressavam uma desconfiança, uma crítica (umas vezes mais implícita do que noutras) sobre essas formas de comportamento – parecendo que o julgamento de Seidl (ou talvez o meu?) se vire para o capitalismo e para forma de proselitismo que identifica o consumo (de entretenimento) com a “realização pessoal”, como diz Sontag, “A ideologia do capitalismo transforma-nos a todos em conhecedores da liberdade”. Não será por acaso que os personagens de Safari descrevam a experiência da caça como uma acto de realização, de demonstração de capacidade, de felicidade por superar um desafio.
Mas Seidl, ao filmar metade de Safari a partir de um dispositivo que coloca o espectador no interior da experiência da caça só provoca mal-estar nos opositores (várias foram as pessoas que abandonaram a sessão) e só reforça o ponto de vista dos convertidos ao “desporto” da morte (como explicou o realizador, quando o filme foi apresentado na Áustria, vários dos espectadores que eram caçadores reconheceram-se no retrato e gostaram da imagem). Esta ambivalência, que se escuda num discurso contra os preconceitos, coloca Seidl em água movediças: porquê optar por um estilo fly in the wall num filme destes (onde as consequências do entretenimento de uns é a matança de animais de grande porte, o enriquecimento de um conjunto de proprietários ocidentais e a manutenção na miséria das populações locais), quando noutros casos (em que as consequências desse entretimento eram muito menos significativas) o seu olhar taxidérmico bastava? A reposta só poderá ser: (1) condicionantes de produção, ou (2) desleixo, mas nenhuma justifica essa cambiante formal (que traduz, naturalmente, uma cambiante ética). Mas como respondeu o realizador a uma pergunta do uma espectadora, sobre o seu posicionamento moral quanto ao fenómeno do turismo de caça, “o que é que acha?”