Entre os percursos traçados pelo visionamento sucessivo de vários filmes em pouco tempo, pela intersecção aleatória de histórias e sobreposição de imagens, surge uma encruzilhada que aponta para dois caminhos distintos: de um lado, os filmes sobre um local, que a partir de pequenos episódios e de várias personagens constroem um retrato de uma comunidade, mas também que levam a uma ou duas personagens que se destacam das outras; do outro lado, os filmes sobre individualidades, que acabam por ser filmes sobre movimentos que representam várias pessoas, várias comunidades. Este é o relato dos primeiros dias do festival.
Hamada (2018) de Eloy Domínguez Serén
Em Hamada, uma rapariga surge, entre outros episódios que intercalam o filme, a tentar aprender a conduzir, mas sem grandes resultados, ora porque não consegue adaptar-se ao carro, ora porque não a sabem ensinar. É uma metáfora perfeita para a sua situação: ela quer aprender porque conduzir representa uma das poucas liberdades a que consegue aceder, mas ao mesmo tempo, naquele território-limbo, não tem nenhum lado para onde ir. É uma imagem também da comunidade que é retratada, os Sahrawis, habitantes de uma povoação no noroeste do deserto Saara, uma espécie de terra de ninguém, que, na separação pós-colonial ficaram sem uma nação própria, entre Marrocos, Mauritânia e Argélia. As implicações políticas deste abandono são evidentes no dia-a-dia e na definição de uma identidade destes nómadas modernos, espécie de refugiados na sua própria casa. O filme apresenta uma série de vinhetas desta comunidade – miúdos a passarem o tempo a atirarem pedras para lado nenhum, alguém a falar por skype com um familiar que emigrou, um evento de protesto político – que reforçam o desamparo e o marasmo sentido por estes habitantes, a tentarem combater as escassas esperanças por um futuro melhor, a pensar em escapar mas sem grandes possibilidades de o fazer.
Há uma forte componente de resistência política, contra o esquecimento e contra a própria extinção lenta da história destas pessoas, nas suas acções e por consequência, no próprio filme, que elevam Hamada a uma chamada de atenção e um gesto importante. O filme acompanha em particular duas personagens, uma rapariga e um rapaz, que parecem perdidos numa nostalgia por um futuro melhor que não conseguem antever. Uma delas é a rapariga que tenta aprender a conduzir, que aparece também numa sucessão de entrevistas de emprego sem grandes resultados, uma outra imagem das exíguas perspectivas para quem acaba por ficar perdido naquele espaço. O rapaz entrega-se também a uma série de pequenas tarefas como pintor ou mecânico (outra vez o carro como peça central de escape), para tentar juntar algumas poupanças para comprar a viagem para outras paragens – a Europa tão perto e tão longe. As conversas giram à volta das histórias dos que partiram à procura de melhor sorte – e dos que falharam – num lamento nostálgico e entristecido pelos que são forçados a partir, mas também pelos que ficam. Perante as ocasionais falhas de eletricidade ficamos apenas com as luzes dos ecrãs dos telemóveis iluminados, a tal janela para outro mundo, que parece aqui inacessível.
Tsukiyonokamagassen (A Guerra do Caldeirão de Kamagasaki, 2018) de Leo Sato
Um filme próximo de Hamada pelo seu retrato melancólico de uma comunidade é também Tsukiyonokamagassen. Este filme do japonês Leo Sato, que demorou cinco anos a ser filmado, acompanha um grupo de desafortunados habitantes de Kamagasaki, uma espécie de subúrbio-gueto da cidade de Osaka, através da recriação encenada de pequenas vinhetas da vida em comunidade. Se o filme recorre a actores não profissionais como os tais habitantes para recriar episódios próximos da realidade e está mais perto da ficção do que do registo documental do anterior Hamada, é igualmente afectuoso para com as suas personagens. Aqui não há um desejo latente de sair deste local ou fugir para longe, mas antes uma vontade em continuar a viver livre, segundo as suas regras de sempre, ou antes, segundo o seu espírito anarquista de liberdade – é o sonho possível. Ou seja, não há tanto um sonho em escapar destas condições, apenas de conseguir sobreviver no dia-a-dia, como sempre fizeram. A amálgama de eventos e mescla de personagens variadas apresentadas ao longo do filme é fiel ao tal espírito de liberdade desordenada que paira no bairro, que é reforçado pela facilidade com que o filme passa do melodrama para o cómico, da tragédia para o humor.
O argumento gira à volta do desaparecimento, ou melhor, roubo, de um valioso caldeirão cerimonial necessário a uma passagem de testemunho numa família ligada ao crime. A história envolve também um triângulo amoroso à volta da personagem mais forte do filme, uma prostituta do bordel local que parece a guardiã moral do bairro, e um vigarista de pequenos delitos e o herdeiro da tal família poderosa que tem pouco interesse nesse futuro. Acrescentam ainda uma criança órfã que detém a chave para este imbróglio e um grupo económico que quer apoderar-se dos terrenos para expulsar os moradores e construir apartamentos. Na verdade, o argumento é aqui o menos importante – e menos conseguido -, já que o fica para memória é uma fusão de referências e estilos: um neorealismo de influência italiana mas exagerado, o humor insolente de Ohayô (Bom Dia, 1959) de Ozu, as personagens indomáveis de Bara no sôretsu (O Funeral das Rosas, 1969) de Toshio Matsumoto, o fatalismo de Mizoguchi, o teatro kabuki e kyogen, e que confluem para uma espécie de realismo escapista e poético, acentuado pelo aspecto artesanal da fotografia em película de 16mm. Pode não ser perfeito mas é entusiasmante, e o trabalho deste realizador, um achado.
Hálito Azul (2018) de Rodrigo Areias
Na senda destes retratos de grupo, Hálito Azul assemelha-se a uma carta de amor a um local e à sua comunidade. Rodrigo Areias deslocou-se a Ribeira Quente, pequena vila piscatória na Ilha de São Miguel nos Açores, para retratar os seus habitantes e a sua relação com o mar, inspirado pelas obras “Os Pescadores” e “As Ilhas desconhecidas” de Raul Brandão. Logo no início do filme – a fotografia exemplar está a cargo de Jorge Quintela – observamos o balancear das ondas reflectido no movimento da câmara, que acompanha um barco numa saída para uma pesca que cada vez mais rareia, enquanto ouvimos histórias e mitos que vão sendo contados ao longo dos tempos, de outras alturas mais prósperas. Os textos dos livros de Raul Brandão pontuam o filme, ora entoados e declarados pelos habitantes, ora como parte de uma peça que está a ser encenada pelo teatro local.
Mesmo que de originalidade e ambição modestas, este é um olhar honesto e cativante. Areias faz um uso hábil e engenhoso da forma como usa os locais como não actores de algo que não é realmente um documentário tradicional e algo que não é exactamente uma ficção, para criar uma docuficção onde a luz e a alma residem nestas personagens locais, o verdadeiro achado do filme. Entre pequenos momentos-retrato dos hábitos locais e da forma como estes ocupam os tempos, um professor tenta ensaiar uma peça de teatro, e a presença de uma observadora das pescas alteram a rotina. Este jogo entre os não actores e os momentos encenados, em que estes declaram excertos dos livros, entre a peça que é ensaiada e a realidade que é apresentada, também ela por vezes “orquestrada” para a câmara, cria uma dinâmica enternecedora, principalmente pela forma como o filme cede o espaço principal de encenação e o protagonismo aos habitantes locais, testemunhas principais da passagem do tempo e de resistência.
Obscuro Desejo (2018) de Evangelia Kranioti
Da realizadora grega Evangelia Kranioti, que recebeu uma Menção Honrosa na segunda edição do festival por Exotica Erotica, Etc. (2015), um filme poético que explorava o estranho amor que surgia da relação entre marinheiros e prostitutas, chega-nos Obscuro Desejo. Este filme segue as pisadas da activista dos direitos humanos e ícone trans, Luana Muniz, no Rio de Janeiro, entretanto falecida, e resulta numa experiência sensorial que caminha a linha ténue entre o sonho e o pesadelo, numa alucinação poética presa a detalhes térreos. “Sou obscura para mim mesma”, afirma a personagem principal, e o filme apodera-se dessa ofuscação: numa das sequências iniciais, os movimentos lânguidos da câmara alternam com cortes rápidos de planos aproximados de corpos, e um torso dá lugar a um braço, as costas mudam para ombros, diferentes corpos que dão lugar a um só a partir de todos estes elementos. Na escuridão do dia e na luz da noite, as máscaras surgem aqui também associadas como elemento igualitário, como um agente que torna todos indistintos e unos.
O filme acompanha Luana em momentos de introspecção num percurso pensante e físico pela cidade do Rio, em pequenos retratos em movimento, enquanto esta declara passagens de Água Viva, obra de Clarice Lispector, como se tratasse de um diário pessoal de confissões. Sem apresentar qualquer contexto e dependente da empatia para com a construção de um ambiente sensorial específico, o filme torna-se algo convoluto, fechado sobre si mesmo, de difícil acesso ou leitura. Mas se pensarmos neste retrato individualista como uma metáfora sobre o Brasil actual, passado e futuro, o filme ganha outra dimensão: os momentos de festa, o carnaval, os protestos, a repressão, a inconformidade e a esperança, revelam um país em constante metamorfose.
Becoming Animal (Ser Animal, 2018) de Emma Davie, Peter Mettler
As expectativas para o novo filme de Peter Mettler eram elevadas, depois de na edição anterior ter descoberto, na retrospectiva dedicada ao cineasta, filmes como Picture of Light (1994) e The End of Time (2012), obras que expandiam a possibilidade do documentário como filme-meditação, como formas de filmar algo intangível, fugidio.
Porém, Becoming Animal, co-realizado com Emma Davie, desilude pela maneira como nega algumas das possibilidades apresentadas nos filmes anteriores. O filme parte do livro homónimo do filósofo David Abram para acompanhar o autor e os realizadores na exploração da ideia de uma maior ligação entre o mundo humano e o animal, numa perspectiva individual. O filme apresenta um conjunto de imagens impressionantes, de paisagens arrebatadoras e de pormenores admiráveis, e a capacidade de Mettler em registar a natureza de forma notável não está em causa. Mas se nos outros filmes, Mettler parecia partir à procura da (auto)descoberta, aberto a novas possibilidades durante a recolha das filmagens – Picture of Light (1994) começa mesmo com a afirmação “we were answering a question which we didn’t know yet what it was” – aqui fica a sensação de que a dupla de realizadores chega ao início do filme já com uma “tese” definida à priori (o texto do tal livro), e que o processo de recolha de imagens apenas serve para ilustrar as ideias que estes querem afirmar, e a narração torna-se assim mais santimonial e por isso desinteressante – salvam-se ainda assim alguns momentos que parecem espontâneos, como o registo improvisado de uma banal viagem de carro.
João Araújo
THF: Central Airport (2018) de Karim Aïnouz
No título temos o nome de um edifício e nos primeiros planos do filme somos levados numa visita turística a esse mesmo espaço: enquadramentos distantes, olhar arquitectónico, pessoas reduzidas a formigas, simetria e monumentalidade de uma construção fascista (o aeroporto de Tempelhof construindo pelo regime nazi). Estas parecem ser as marcas autorais do cinema de Aïnouz, cineasta brasileiro a viver e trabalhar em Berlim. Releio o que escrevi sobre o seu filme anterior a estrear em Portugal, Praia do Futuro (2014), e parece que estou descrevendo THF: “contenção é coisa que não lhe falta”; “filma quase sempre com uma distância higiénica todo o drama que põe em cena”; “cinema (…) à medida dos festivais, meio oco e ultra atmosférico” e “ainda assim ficou comigo uma certa sinceridade no retrato das relações, no desenvolvimento das personagens e na ideia do estrangeiro”. Se autor é aquele que faz sempre o mesmo filme, aqui está a prova disso (ou de que o meu olhar sobre o cinema de Aïnouz não se alterou…).
O realizador parece procurar um meio termo entre esse olhar de betão e uma aproximação íntima, dando protagonismo a um jovem refugiado sírio que passa quase dois anos num hangar desse aeroporto à espera de receber o estatuto legal que lhe permita residir no país (personagem cuja presença não suporta de todo o propósito dramático do filme). Esse protagonismo passa por uma presença em campo muito regular e pela introdução de uma narração quase diarística que descreve as vivências e as memórias, ao longo de doze meses. Claro que a frieza do olhar procura reflectir a própria frieza burocrática do processo do personagem, mas acaba por se tornar também ferramenta narrativa tão clássica que roça o esquematismo (um perfeito arco aristotélico construído com o ciclo das estações – Verão, Inverno, Primavera). No entanto, no seu registo observacional, o documentário de Aïnouz acaba por demonstrar um olhar dedicado e exaustivo. Capaz de se demorar sobre as coisas até que estas se revelem perante a câmara (vide a aparição da raposa). Técnica wisemaniana que o realizador parece citar directamente quando descobre uma colmeia dentro do terreno do aeroporto e vê nela uma metáfora das migrações humanas – como fazia o documentarista norte-americano em La Danse (2009).
Ricardo Vieira Lisboa
Obscuro Desejo (2018) é exibido novamente hoje, dia 29 pelas 14h30, tal como Hálito Azul dia 29 pelas 16h e Central Airport é exibido dia 29 pelas 18h; Tsukiyonokamagassen (A Guerra do Caldeirão de Kamagasaki, 2018) é exibido dia 30 pelas 18h e Hamada é exibido dia 1 pelas 16h. A programação completa do festival está disponível neste link.