Celebramos um dos maiores realizadores da história do cinema. O leitor terá oportunidade de confirmar a grandiosidade desse “anjo exterminador” chamado Luis Buñuel num longo ciclo organizado pela Leopardo Filmes que contará com 25 filmes do mestre espanhol, com especial incidência na sua magnífica “fase mexicana”. Cada walshiano escolheu “o seu Buñuel” deste lote de filmes e o resultado é o seguinte.

Na sua autobiografia, O Meu Último Suspiro, Luis Buñuel descreve como uma das inspirações para Los olvidados (Os Esquecidos, 1950) foi o Sciuscià (1946) de Vittorio de Sica, filme que o realizador espanhol havia particularmente “adorado” e que apresenta algumas semelhanças narrativas com o seu. Mas Buñuel nunca se viu como um neo-realista. De facto, a racionalidade da corrente cinematográfica do pós-guerra pareceu-lhe sempre algo limitante e, por isso, aquele que é o seu filme mais socialmente consciente [a par, talvez, de Las Hurdes (Terra Sem Pão, 1933)] tem também presentes elementos surreais (a sequência do sonho, onde a mãe de Pedro dá ao filho carne crua, símbolo do amor maternal, a qual “El Jaibo” retira selvaticamente) e fetichistas (nem num filme do bas-fond está ausente a sua obsessão por pernas do seu trabalho em torno da burguesia), que não permitem que o filme seja visto a uma luz que não a buñueliana. Ao mesmo tempo, está ausente o sentimentalismo fácil de um realizador como de Sica, o que talvez explique as reacções violentas que o filme à época provocou, onde a sinceridade de Buñuel no retrato bruto da realidade mais desfavorecida do México foi confundida com uma indolência misantrópica. Esqueça o neo-realismo. A única coisa que o espectador deve esperar de Los olvidados é um filme de Buñuel lancinante, zangado, por vezes cáustico, mas principalmente honesto na forma como fala da indigência como algo desumanizador, sem almofadas emotivas, possibilidades de redenção ou transcendências pessoais.
“Olvidados” pela sociedade, que fez das crianças as maiores vítimas da miséria, da ignorância e do obscurantismo, mas também “olvidados” pela família. Cada um destes jovens ou foi abandonado (“Ojitos”) ou ignorado (Pedro), quando não mesmo enjeitado (“El Jaibo”), pelos progenitores, e é a ausência de um sentimento de pertença doméstica que impele a formação deste grupo de marginais, numa necessidade de se sentirem aceites e integrados numa família substituta. Se nas mãos de outro cineasta tal poderia resultar numa intriga comovente e emocionalmente manipulável ao ponto de desafiar os olhos enxutos do espectador mais rígido, aqui nem Buñuel nem estas crianças imploram pela nossa complacência, pela nossa simpatia, ou, pior, pela nossa piedade. Significa que está ausente qualquer sentimento de compaixão por elas? Não. Simplesmente que temos que encontrá-la no meio da brutalidade irremissível, do ódio adquirido e da evidente falta de virtude dos seus protagonistas. Sem reconhecer isto, estamos apenas a olhar para eles numa posição de falsa compreensão que revela mais hipocrisia que benevolência, e por isso merecemos receber os seus gritos de ajuda materializados em gestos de fúria. Como no momento em que Pedro, só e entediado, pega num ovo, abre-o, bebe-o, cospe-o, e atira o resto violentamente contra a câmara, contra o espectador e contra todas as presunções morais que tenha.
Duarte Mata

Das mais de trinta longas-metragens que Luis Buñuel filmou, há uma em especial que continua sendo a que mais calafrios na espinha me causa. Ela só pode ser Él (Ele, 1953), melodrama psico-sexual virado do avesso, parábola paranoid contada por um relativista moral. No entanto, o progressivo declínio do estado de saúde mental do seu protagonista, Francisco, é filmado com um rigor quase clínico – razão segundo a qual Jacques Lacan tão famigeradamente transformou o filme em matéria lectiva para um dos seus seminários. A obsessão agravada por Gloria, a donzela recatada e pura fetichizada por esses “homens nobres que odeiam todos os outros”, acarreta em Él um fenómeno de frenesim da razão, própria de todos os ciumentos doentios. Não é como se ela (a razão) cessasse por completo na cavalgada pelos motivos que condenam um relacionamento presente, antes, é por hipertrofia que se pode explicar o seu funcionamento. Portanto, as pistas imprecisas tornam-se certezas indubitáveis, de um real confuso e incerto extraem-se as suas mais negras e secretas mentiras, enfim, é pelo pseudo-acesso eficaz a uma essência por debaixo de todas as aparências que Francisco se acha detentor de um bálsamo: a verdade dos factos (e não das suas crenças). Essa escalada de pretensões febris de saber (até à torre dos sinos, o ideal retorcido do paraíso monogâmico: matar em nome da fidelidade), Buñuel filma-a como se criticasse todos os filósofos que ousaram explicar o mundo através de expressões do tipo: “isto é assim e não de outro modo”, ou baniram o sistema de crenças da nossa racionalidade na esperança de a santificar e depurar de resíduos tóxicos. Essa racionalidade tão coxa e aparentemente tão musculada…
Há muitas outras dimensões psicológicas que uma pequena resenha não conseguirá aprofundar. Na posse de Francisco sobre Gloria existe subsumido o pavor do potencial desejo por outros pretendentes, nomeadamente Raul, o seu rival (projectado) no amor. Se Gloria se entrega a Francisco, um homem, (como pôde ela entregar-se a ele, um mero homem, a despeito da enorme vontade contraditória em que isso justamente aconteça?), ela pode igualmente vir a cair nos braços de um outro qualquer. Esta transumância volátil entre estados morais, virgem e meretriz, consoladora e carrasco, ilustra a vertigem de um erotismo vivido em compartimentos antagónicos – veja-se, no entanto, quão misturados eles estão nas cenas subversivas na igreja, casa do Senhor arraçada de prostíbulo onde se beijam pés e se arrebatam corações de senhoras. Ao projectar essa bidimensionalidade de carácter, Francisco cria, portanto, um ciclo vicioso, altamente humilhante e masoquista, mas ainda assim com recondução ao prazer. O mais excitante aqui é ter razão (em ambos os sentidos do termo) independentemente das consequências, acertando no diagnóstico de potencial infidelidade enquanto se converte, uma outra vez, a prostituta em santa. Se fosse Deus, Francisco não perdoaria nenhum único humano, mas Gloria é a excepção: será sucessivamente condenada e absolvida (até ao dia) pela generosidade nefanda do seu amante, um deus em ponto pequeno (pretenso omnisciente, mas nada omnipotente: pânico característico de uma razão hipertrófica e paranóica). Semelhante compaixão arrevesada serve de exemplo para um mundo visto pelos olhos de um maníaco. E no entanto, Buñuel alastrará o domínio patológico por toda a parte numa dupla-negação final (como tão bem lhe chamou João Bénard da Costa) que baralhará todas as coordenadas – pois o projecto de um verdadeiro surrealista não se deve basear na pesquisa científica, mas no acto de transgredir, mesmo que seja transgredir a transgressão, como aqui sucede. A “traição” que Francisco “sempre soube” terá sido premonição certa (contra tudo e todos, contra a própria câmara ilusionista) ou germinada pela persistência doentia em aprovar os seus delírios? A partir desta radical ambiguidade, passamos a olhar como quem alucina. Quem ziguezagueia não será só Francisco enquanto se dirige para a reclusão total dos seus sentidos num estado de doença que, avisa-nos Buñuel, jamais será superado. Quando, portanto, acabar a última bobina, bradar “Yo soy Francisco” não será só a confissão de uma identificação embaraçosa com um personagem, mas a confirmação que raramente vemos apenas o que se encontra diante de nós.
Miguel Patrício

Fora os incontornáveis, este será o meu Buñuel favorito. De modo algo inexplicável e até contraditório, esta obra, hoje por descobrir, foi um dos maiores sucessos populares de Buñuel durante a sua fase mexicana. Produção mexicana e americana, Robinson Crusoe (As Aventuras de Robinson Crusoe, 1954) pôs Buñuel no mapa internacional graças à adaptação de uma história clássica de Daniel Defoe que o realizador espanhol não apreciava por aí além. Na sua Folha da Cinemateca, João Bénard da Costa concentra-se no aspecto secretamente sensual – e até sexual – presente nesta leitura realizada por Buñuel de uma história tão popular – a relação homossexual implícita desenrolada entre Crusoe e Friday será a interpretação ousada mais conseguida do grande crítico buñueliano. Com efeito, os elementos estão lá sugeridos, mas, como o próprio Bénard admite, será porventura pouco avisado procurar-se aqui com grande afã o que, com grande facilidade, se encontra nos outros filmes de Buñuel.
Este Robinson Crusoe está um pouco para a obra de Buñuel como The Straight Story (Uma História Simples, 1999) está para a obra – ou o universo – de David Lynch. É o seu filme mais linear, “legível” à superfície, e, ao mesmo tempo, os condimentos de uma grande epopeia humana estão presentes. O protagonista, naufragado numa ilha desabitada, passa por todas as fases da História da civilização humana: saído da sua zona de conforto, socorrendo-se de ferramentas rudimentares, ele contrói o seu reino, torna-se mestre em várias artes, mas, acima de tudo, ele aprende a dominar uma solidão que durará mais de vinte anos. Buñuel captura tudo isto sem inocência (é a tal fina perversidade de que fala Bénard), certo, mas imbuído de um espírito de aventura notável, na senda de uma boa parábola repleta de ups and downs. Esta noção de pequeno divertimento, filme de fácil embarque, é talvez a que mais me fascina – mais, as cores Technicolor e a economia “sem gordura” do storytelling fazem-me viajar até ao espírito dos filmes de piratas de Fritz Lang, Jacques Tourneur ou mesmo de Raoul Walsh. É verdade que o belo The Young One (1960) é o seu filme americano por excelência, mais citado e apreciado, mas este Robinson Crusoe tem notas dos pequenos grandes clássicos de Hollywood, ao mesmo tempo que aparece hoje, aos olhos dos entendidos, salpicado por um irresistível picante buñueliano.
Luís Mendonça

“Tens o demónio metido no corpo.” A deliciosa expressão, tão buñueliana, sai por duas vezes da boca da governanta, que a atira primeiro a Alejandro (o equivalente espanhol de Heathcliff) e depois a Catalina (respectivamente, Cathy). É talvez a frase mais simples e justa para explicar o amor em Abismos de pasión (O Monte dos Vendavais, 1954), a adaptação solta de Luis Buñuel do icónico romance de Emily Brontë. Durante cerca de duas décadas ele arquivou o desejo de o levar à tela, e quando o concretizou, como bom surrealista que era, fez questão de desbastar toda a ideologia romântica geral e academicamente associada à obra literária. Ou seja, aquilo que aqui define o sentimento amoroso nada tem que ver com o rendilhado das emoções humanas, é outra coisa. Catalina, mulher de alma fria tomada por uma paixão ardente, chega a pôr essa outra coisa em palavras: “o que sinto por Alejandro não é deste mundo.” Trata-se de uma paixão que, ao longo do filme, está em permanente diálogo com o abismo da morte, e porém, não é sequer o Paraíso que se almeja para a consumação da flama, é o Inferno. O amor selvagem destes dois afigura-se, pois, um vendaval de Lúcifer.
O que me leva a escolher este Buñuel, de entre outros que posso preferir, e há vários, é a sua predisposição para o excesso (aplicado também ao uso da banda sonora, por acaso, a contragosto do cineasta) e as suas janelas escancaradas, literalmente, para o delírio destrutivo que se faz passar por romantismo… Só se engana quem quer. Desde o momento, no início, em que Alejandro e Catalina se encontram no meio da sala da casa dela, mulher casada, rodeados pelo marido, cunhada e governanta, sem medo de expor diante de todos o amour fou que os liga, até ao emblemático final com a profanação da sepultura, o que Buñuel nos dá a ver é a beleza suja de uma possante maldição que vem da terra e à terra retornará.
Inês N. Lourenço

Belle de jour (A Bela de Dia , 1967) tem segredos, portas a abrir e a fechar, o corpo em fragmentos. Buñuel enquadra pernas, pés, nucas, costas, sobressalta a narrativa de realidade e de sonho. No ar anda o desejo, anda o “obscuro objecto”, a lançar-se nas aventuras do prazer e da dor. A burguesia também lá está, insatisfeita, a sair da toca, a viver o intrépido fulgor da carne, da pele. Um filme de pele, da pele do desejo, da que se toca, que se agride, a pele da roupagem da burguesia, da vontade fetichista, da cicatriz na pele. Belle de jour tem Deneuve, elegante e glaciar, Catherine e Severine, a encarnação perfeita de um corpo na pele de outro parcialmente exposto e profundamente imaginado.
A expressão fantasmática engrena o ritmo que se sedimenta em sinais, sons, guizos, reais, irreais, caixa sonora e secreta, corpos, gestos, uma carruagem que arranca o filme e o fecha. Belle de jour, também tem o ‘’amor convulsivo’’ de Breton, uma catadupa de sentidos e a sublimação. Um objecto exploratório que se expande e confunde nas dimensões que propõe: apelo mental, sensorial e visceral, um jogo fantasista-fetichista. Filme jardim de delícias, suplícios, máquina sinuosa de mostrar e esconder. “A perversão será a melhor forma de contemplar a normalidade’’, disse o argumentista J.C. Carrière.
Carlota Gonçalves

É hora de jantar, todos têm apetite, mas há sempre algum impedimento para que a comida seja servida. Ora chegam cedo demais, ora se atrasam. Ora o desejo da carne chama mais que o do bife, ora a paranóia toma conta dos sentidos. Numa narrativa que se desfaz em episódios, personagens e sonhos dentro doutros sonhos, Le charme discret de la bourgeoisie (O Charme Discreto da Burguesia, 1972) ridiculariza a burguesia num angustiante labirinto de pesadelos sem fim, qual matriosca de elegantes sadismos. Este é, necessariamente, o território do satírico. E é pois de ironias, por vezes blasfemas, que se forma este filme (e grande parte da obra do realizador). Isto porque Luís Buñuel, o mais ácido dos comentadores do luxo, era ele mesmo um luxuoso burguês sem fé. Desse modo, se não se tem tem fé há que adquiri-la, preferencialmente em doses individuais e com um bonito embrulho, nem que seja através da gurmetização dos hábitos (nos dois sentidos da palavra). Ou como se explica em certo momento do filme, o perfeito dry-martini tem de ser temperado com umas gotas de Noilly-Prat que, antes de entrar em contacto com o gin, deve ser atravessado por um raio de sol, à imagem daquele que, segundo S. Tomás de Aquino, atravessou o hímen da Virgem na forma do Espírito Santo. Álcool e religião, os temperos de uma vida delicada.
Depois de preparado o cocktail, Don Rafael (Fernando Rey) comentará, “Nenhum sistema alguma vez poderá proporcionar ao povo o refinamento social”. Se isto lhe parece snob é certamente porque não possui conta na Suíça nem nunca provou laranja com azeite e vinagre – “Não é preciso ser rico para comer, é preciso ser rico para saborear”. A boca como portal da fé é uma imagem que Buñuel apreciaria, porque a boca é também local do lascivo e do grotesco, é através delas que entra o sexo e sai o vómito (especialmente depois de ingerido muito álcool). Deus, felação e refluxo intestinal, a santa trindade que Buñuel trabalhou nos seus mais ousados filmes. Objectos de filigrana onde o mundano se enleava com a nobreza. Coisa impensável para a contemporaneidade onde o indirecto é sempre mal recebido e a ironia se esvai pelos dedos decepados da velocidade digital. Em tempos de literalidade o dúbio esbate-se ou contrata-se em demasia, daí que ver hoje Buñuel, nas salas comerciais, é um âmbar de incorrecção política e ousadia sociológica.
Ricardo Vieira Lisboa