Com The Lost City of Z (A Cidade Perdida de Z, 2016), James Gray havia iniciado uma aventura que só agora, com Ad Astra (2019), se afigura clara: transportar as suas obsessões para um redimensionado cinema de género. Da floresta simultaneamente mágica e tenebrosa, passamos para a paisagem sideral. Há um ponto de partida e um ponto de chegada. A procura é guiada por um projecto tão universal quanto pessoal: a conquista do território do íntimo. Seja no filme de selva ou na ficção científica, a linguagem é do íntimo e os heróis de Gray apenas têm como bússola as inquebráveis ligações afectivas, de sangue, que fazem o mundo girar. Duas histórias sobre uma ligação profunda entre pai e filho. Dois pontos no espaço – pai e filho – que ingressam em paisagens hostis, puxados por sonhos destrutivos “maiores que a vida”. Gray é um romântico, continua a sê-lo. Por isso, a grande pergunta é: o que acrescenta Ad Astra ao seu repertório?
Desde já, por força dessa paisagem que tem uma vida – ou mesmo uma linguagem – própria, este é o filme da solidão de Gray. Trata-se da história do homem mais sozinho do mundo e do seu pai, também ele um astronauta que viu nas viagens espaciais duas oportunidades: a de mudar o rumo da História, descobrindo o tesouro mais desejado, provas de vida extraterrestre; e a da fuga das suas responsabilidades na Terra, como marido, como pai, como cidadão. Portanto, se há alguma coisa que Ad Astra traz ao universo de Gray é este retrato compósito de homens consumidos por um isolamento auto-prescrito. Talvez por isso, desde os primeiros segundos, a “voz interior” da personagem de Brad Pitt pareça estar quase sempre a mais, porque não permite que nós, espectadores, sintamos, de verdade, um pouco desse gosto a solidão.
Se tematicamente Gray procura qualquer coisa outra quando muda de paisagem, não consegue mudar de pele – adaptar-se ao novo habitat – do ponto de vista formal: em Ad Astra, para lá da dimensão ilustrativa/rebarbativa dessa narração over, a própria acção atropela a possibilidade de uma imersão completa no espaço, não o sideral, mas aquele que se apresenta árido como um deserto: o mundo interior de Pitt. Provavelmente o realizador queria mergulhar mais profundamente nessa exploração interior, mas não podia desmerecer tudo o que rodeia o protagonista – a câmara nunca deixa respirar esse todo-poderoso espaço exterior, o do universo sem fim, que teima em não nos devolver o eco e, com isso, que insiste em estragar os altos sonhos dos mais intrépidos cosmonautas. A fraca existência dessa paisagem exterior retira força – retira mundo – a essa interioridade deprimida.
Ad Astra é um The Lost City of Z lost in space. O problema é que a transferência foi feita com papel vegetal, decalcomania realizada sem convicção e de fraca imaginação.
O que resta então da geografia humana que reconhecemos nos filmes anteriores de Gray, quase todos excelentes? Resta pouco, mas há uma tentativa – tímida, mas minimamente conseguida – de encontrar tudo isto no rosto prostrado, envelhecido, sulcado pela dor, de Pitt, que vai produzindo uma rima inusitada – e pungente muito pontualmente, quase só em tese – com o rosto do pai perdido no espaço, interpretado pelo space cowboy Tommy Lee Jones. Na viagem para Neptuno, sem nunca ceder à grandiloquência operática e metafísica do inevitável 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968), Gray trabalha plasticamente essa mistura de máscaras: o filho, quanto mais se aproxima do destino, mais se parece – mais efectivamente é – o seu pai. Estamos no espaço, mas ainda não saímos de uma das casas da cinefilia de Gray: Francis Ford Coppola e os seus “corações das trevas”.
Portanto, se o trailer já deixava adivinhar importantes rimas internas no âmbito da filmografia de Gray, sim, podemos confirmar: Ad Astra é mesmo um The Lost City of Z lost in space. O problema é que a transferência foi feita com papel vegetal, decalcomania realizada sem convicção e de fraca imaginação – deve ser o mais desinspirado filme de Gray do ponto de vista formal e também deve ser, ao mesmo tempo, a história mais caída, exausta, desolada no fundo e na forma… Filme sem brilho, pouco sentido e aprimorado? Sim, Gray, quiçá na tentativa de realizar o primeiro grande sci-fi deprimido, acabou contagiado – mormente na realização – pelo “nada” afectivo que liga a solidão das suas personagens a este nosso planeta se não ecologicamente, pelo menos sentimentalmente exaurido.
Vou ser franco: a desilusão é grande, porque Gray acaba por se desleixar estruturalmente na auto-imitação, por um lado, e por estragar a possibilidade de se elevar aqui e ali (o tal silêncio dos rostos de dois sonhadores já sem grande ânimo para a aventura), por outro. De rumo perdido, nem à evidência da interpretação contida, muito subtil e esforçada de Pitt o realizador se quis agarrar ou soube enaltecer devidamente. Parece que Gray se deslumbrou com a possibilidade da migração para um mais ambicioso cinema de género. A montanha pariu um rato.