Nadar [o fotógrafo] recordava que Balzac tinha uma teoria do eu, segundo a qual a essência de uma pessoa era formada por uma série quase infinita de camadas espectrais sobrepostas, umas sobre as outras. O romancista acreditava ainda que, durante “a operação Daguerre”, uma dessas camadas era retirada e fixada pelo instrumento mágico. Nadar não se lembrava se, supostamente, essa camada se perderia para sempre ou se poderia haver regeneração (…).
Julian Barnes in Os Níveis da Vida (Trad. Helena Cardoso), Quetzal, 2013: 28.
Não acredito em coincidência, mas como com as bruxas, que elas existem, lá isso é certinho e direitinho. Ontem abri um livro que tinha há anos na prateleira, por ler. Peguei nele e fui-me deixando levar para fragmentação das histórias, empoleirado no trepidante autocarro que teimava em não chegar a casa (minha casinha, meu lar, meu potinho de cagar). Tem na capa, em grandes letras brancas, Julian Barnes Os Níveis da Vida, e é o segundo livro do escritor que me passa pelas ventas. Por entre as desventuras do balonismo, no século XIX, Barnes fala também do prodígio mágico da fotografia (outra nova invenção da época) e da combinação improvável destes dois meios de percepcionar o mundo (a fotografia aerográfica): o primeiro, permite ver do ponto de vista dos pássaros a paisagem e tudo o que nela se deposita; o segundo, permite ver do ponto de vista do outro, fixá-lo e transmiti-lo. Se esta dupla consciência do olhar como espaço de constante modelação tecnológica não trouxesse já luzes suficientes para iluminar Bostofrio, où le ciel rejoint la terre (2018), de Paulo Carneiro, esta passagem que coloquei em epígrafe cristaliza muito do que é a empresa do realizador em redor do poder memorial (e logo fictício) da imagem por oposição à ontologia da própria fotografia.

A primeira característica que me toca, diante de Bostofrio, é a sua forma de enquadrar as figuras na paisagem (pensei, várias vezes, nesse título do filme de Joseph Losey e nos “encontros paisagísticos” de Salomé Lamas). Como que tomado pela escala da visão aérea (o balão de ar quente), Carneiro filma tudo a uma enorme distância, dando novas dimensões ao plano aberto. Ele próprio passeia pelos trilhos transmontanos como formiga no seu carreiro, desaparecendo do outro lado de um muro ou por detrás de uma árvore longínqua. A câmara preserva uma distância ética sobre os entrevistados: primeiro a introdução, só depois a aproximação. Cada sequência (e são doze os capítulos do filme, cada qual uma conversa, ou a sua tentativa) segue, quase sempre, este modelo, entre o plano abertíssimo e o plano aberto. Mas, claro, há as excepções – porque todo o formalismo só é de facto interessante quando quebra a rigidez da estrutura e encontra, nos interstícios, as fissuras do imponderável. Disso é exemplo o grande plano dos pés em cima da salamandra, rimando com aquele, do início, das socas percorrendo o ecrã, em procissão fúnebre (ou ainda a forma como a última das entrevistas foge, completamente, ao modelo que se havia instalado de montagem, partindo para um off que anuncia já um fim aberto – outra das aberturas do filme). Carneiro tem a ousadia do formalismo e a coragem de quebrar o esquema que instala quando isso se torna necessário.
Outro aspecto que se prende com o primeiro, passa pelo modo como o realizador encara o trabalho. Quase sempre, antes ou durante cada entrevista, a câmara descobre e acompanha uma pessoa que trabalha: uma senhora que cava um regueiro, um casal que colhe vides, outro que passeia o cão, uma senhora que alimenta as galinhas, um homem que roça as ervas. Esta forma de aproximação, pelo trabalho, a cada uma das personagens, revela outra das formas como o olhar de Paulo Carneiro enquadra a realidade (aquela realidade, que conhece desde infância). Cada capítulo é uma conversa, mas também, e especialmente, um retrato – onde o trabalho é factor essencial na série quase infinita de camadas espectrais que compõem uma identidade.
Gestos de cinema tão simples que encantariam Méliès e tão poderosos que desacertam o naturalismo daquele território.
A terceira característica (profundamente perturbadora) do filme passa pela visão assombrada que propõe sobre a relação do homem com a natureza. Em Bostofrio os efeitos de prestidigitação são vários e surpreendentes: o cantar ao revés que se parece com evocação mística, feita num cemitério, como que chamando a presença (sempre ausente) do morto que centra toda a “trama”; o vulto que se evapora – fantasmaticamente – no prado; a vaca em chamas que pasta calmamente. O menos evidente destes “truques” passa pela introdução dos cartões com reticências – […] – que escondem, na máxima simplicidade, a inteligentíssima construção narrativa que a montagem subtilmente propõe. Veja-se como cada conto acrescenta sempre um – e um só – ponto à tapeçaria memorial que é esta investigação familiar sobre um – afinal não tão desconhecido – avô incógnito. Primeiro, o silêncio, depois, as diferenças sociais, mais tarde, as questões de heranças, ainda, a via litigiosa para a parentalidade, e por fim, a questão do mafarrico que decorre da pretensa doença.
A complexidade desta novela familiar transmontana é decomposta e recomposta à nossa frente, de forma profundamente lúdica, com uma elegância de quem sabe perfeitamente o que está a fazer e o faz com uma gingar de ancas espevitado. O que isso revela é um domínio dos tempos fílmicos e da construção narrativa – sem um pingo de fanfarronice ou hipocrisia (ou ironia, já agora – coisa típica do olhar sobre aquela região do país). São, portanto, gestos de cinema tão simples que encantariam Méliès (e aquele plano das vacas atravessando a praça da igreja, olhando a câmara, é digno da colecção Lumière) e, no entanto, tão poderosos que desacertam o naturalismo daquele território, reforçando a dimensão espectral da história.
Espectralidade essa que resulta do próprio real – a tal teoria essencialista de Balzac sobre as multi-camadas identitárias – e da forma como esse real é fixado, ora pela memória, ora pela fotografia – o mecanismo de fixação dos espectros, vulgo fantasmas. O gancho narrativo da fotografia do avó é aqui, não uma “fotografia rasgada”, antes uma fotografia negada e – paradoxo – retalhada. Porque, como dizia, tudo aqui é decomposto e recomposto debaixo do nosso nariz (num delicado jogo de rapa-tira-deixa-e-põe, jogo esse que tento aqui praticar, de modo a não dar ao leitor mais do que aquilo que ele poderá ter o prazer de descobrir). O que Paulo Carneiro esconde, acaba por dar, e o que nos dá, cedo tira. Ficam, no final, as questões fundamentais, questões sobre a ausência e o que ela pode revelar: é possível conhecer o passado? Mesmo sabendo os factos, é possível compreender o real? Para que serve uma imagem nesse processo de investigação? O que pode ela iluminar? E o que pode ela esconder? O filme dá as suas respostas, mas deixa, acima de tudo, inquietações.