No prefácio da antologia de textos que redigiu enquanto crítico, intitulada Os Filmes da Minha Vida, François Truffaut escreveu: “(…) quando vejo um filme, peço-lhe que expresse ora a alegria de fazer cinema, ora a angústia de fazer cinema, e desinteresso-me de tudo aquilo que estiver entre os dois, isto é, de todos os filmes que não vibram.” Apostamos que Truffaut haveria de ter gostado de Ford v Ferrari (Le Mans ’66: O Duelo, 2019). Pois, apesar do título original ilusório, o verdadeiro antagonismo do novo filme de James Mangold não é entre as duas companhias automobilísticas, mas sim entre arte e comércio, os operários e os executivos, os artesãos e os burocratas, o individualismo perfeccionista e o corporativismo cínico. Um filme, portanto, sobre a colisão hierárquica dos vários temperamentos, egos e personalidades no trabalho de equipa atribulado que conduz à construção de algo belo. Resumidamente, Ford v Ferrari é também um filme sobre a angústia de fazer cinema.

Olhemos para o CEO Henry Ford II, de fato formal, porte grave e solene, afligido pelas preocupações financeiras que a sua companhia à beira da falência atravessa. É o homem que precisa de uma ideia inovadora para manter o seu estúdio à tona de água. Um produtor. Olhemos para o designer Carroll Shelby, o chefe da equipa a coordenar os vários elementos e variáveis que tem em mão, por vezes disposto às cedências que o seu patrão lhe ordena, mas lutando sempre e sempre pela máxima integridade do seu trabalho e as condições apropriadas para fazê-lo. É o homem que tem uma visão e de manter o sangue frio se a quer ver cumprida. Um realizador. E olhemos para o piloto Ken Milles, temperamental, instintivo, petulante, com um pouco daquela arrogância de quem sabe que é bom naquilo que faz. É o homem sobre o qual recaem as esperanças da equipa devota, as objectivas das câmaras impacientes e os olhos da audiência entusiasmada. Um actor. Na construção e condução do Ford GT40 para vencer Le Mans, é então a concretização de um cinema artesanal, de matizes clássicas, desalinhado com o actualmente feito de forma despersonalizada na indústria, que Mangold celebra.
Falámos em “clássico”, e não foi por acaso. O cineasta de que mais nos lembramos com Ford v Ferrari é Howard Hawks, assim como dos seus filmes de corridas: The Crowd Roars (Heróis da Pista, 1932) e Red Line 7000 (Traço Vermelho 7000, 1964) (e as 7000 RPM, o ponto onde é ultrapassada a margem de segurança num veículo, ocupam aqui várias vezes destaque dramático). É um dos heróis assumidos de Mangold, e é evidente a forma como as suas carreiras ricas em termos de géneros cinematográficos se aproximam, mas nunca nenhum dos seus outros filmes se havia inspirado tanto em elementos do canonizado realizador: a camaradagem dos homens com uma profissão arriscada a ocupar o centro do filme, uma amizade (Shellby-Milles) feita de respeito mútuo e lealdade que é o alicerce de “a love story between two men” (Hawks dixit a propósito das relações masculinas que percorrem a sua obra), os dramas fora da pista a serem tão importantes como os que se passam no seu interior, os riscos de um ofício a serem enfrentados de maneira estoica, os gracejos soltos com uma virilidade imbatível… nem falta uma cena de pancadaria entre os dois protagonistas, enquanto a mulher de um deles (a de Milles, por si só com algo de hawksiano, seja na forma sensual em que é apresentada na soleira de uma porta, qual Lauren Bacall que no lugar dos fósforos pede informações de carros, seja naquela discussão com o marido enquanto o conduz a alta velocidade pela estrada fora – ela sabe jogar pelas regras dos homens e vencer com elas) e outros transeuntes observam pacientemente, algo reminiscente do duelo final de Red River (Rio Vermelho, 1948).
O cinema passa também por isto, por esta capacidade de transmitir a força da chuva num pára-brisas, do vento criado pela velocidade a 300 km/hora, do rodopio periclitante das jantes à beira da combustão, dos embates dos corpos automobilísticos contra a areia ou entre si.
São as cenas de corrida que mais entusiasmam. Primeiro, graças ao cuidadoso design de som, dominado pelo realismo febril dos assobios motorizados, do girar dos pneus aguerridos, do contacto colérico entre o metal e o ar em célere perfuração. Segundo, e acima de tudo, graças à sua découpage. Seja dentro do carro ou fora dele, em plano fechado ou em plano geral, rente à estrada ou aos rostos, no pára-choques lateral ou na frente do veículo, não há limite para as possibilidades da câmara de Mangold e na forma como este explora a montagem, numa infinidade de combinações que tornam a experiência o mais imersiva possível, determinado em transmitir a intensidade dos elementos, da adrenalina, da imprevisibilidade decorrida em asfalto quente, e da proximidade do perigo sobre quatro rodas. O cinema passa também por isto, por esta capacidade de transmitir a força da chuva num pára-brisas, do vento criado pela velocidade a 300 km/hora, do rodopio periclitante das jantes à beira da combustão, dos embates dos corpos automobilísticos contra a areia ou entre si. É a realidade mais somática e mortífera do automóvel que nos surge, a contraposição violenta à mais espiritual e libertadora que Tarantino havia filmado com Brad Pitt nos magníficos passeios por Los Angeles em Once upon a time… in Hollywood (Era Uma Vez em Hollywood, 2019).
No entanto, e pondo aqui um freio ao entusiasmo, se na pista Ford v Ferrari revela-se verdadeiramente extraordinário, é fora dela que se denuncia mais problemático, onde o argumento roça por vezes uma simplicidade abusiva na caracterização de algumas personagens (um executivo em particular que se opõe ao protagonismo de Milles) e com aquela aura enaltecedora do espírito inspirador americano, típica dos biopics, que é motivo para uma ligeira crispação (os contra-luzes elegíacos não ajudam). O que não impede a Mangold de encontrar espaço para ideias visuais com ele, como aquele momento onde as sombras dos carros na oficina passam pelo rosto de Milles, enquanto este ouve o relato radiofónico de uma corrida, ou de revelar a capacidade do cineasta em criar densidade atmosférica, caso daquele crepúsculo azulado belíssimo que rodeia Milles e o filho quando olham para o horizonte – a questão do legado, da admiração e do respeito filial pela figura paterna, seja por conquistar ou já adquirido, está-se a tornar um motivo recorrente no cinema de Mangold [vide 3:10 to Yuma (O Comboio das 3 e 10, 2007) ou Logan (2017)].
A parcial infantilização de Ford v Ferrari deixa-o, portanto, abaixo do melhor Mangold, faltando-lhe (com excepção dos comovedores últimos minutos) a dor, a melancolia, o pathos e a sede de redenção que fazem o esqueleto dos seus maiores e mais adultos filmes, como Cop Land (Copland – Zona Exclusiva, 1997), 3:10 to Yuma ou Logan. Mas tudo aquilo que demonstra, a vontade contra-corrente em fazer um cinema de acção onde o lado humano seja tão relevante como o do espectáculo, a forma cinéfila como mergulha nas dinâmicas entre as personagens, o labor minucioso colocado ao nível técnico, tudo isto são méritos mais do que suficientes para nos recordar quem continua a ser, na actual indústria cinematográfica norte-americana, o nosso tarefeiro favorito. Dito de maneira simples e sem mais demoras: o artesão voltou a vencer.