A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Clarice Lispector, no conto “Amor”, parte do livro Laços de Família.
Tendo a acreditar em coincidências. Como evitá-lo, se tudo parece ligar-se e acontecer em simultâneo, ora por acaso, ora apesar dele. Acredito em coincidências na exacta proporção em que as encaro como um exercício de montagem subjectiva. Sinto que vivo o mundo num constante trabalho de entalhe, buscando a razão de ser das coisas nas causas e nos efeitos que adivinho encontrar. Sinto as coisas, ao meu redor, como signos de um caos a que só o raccord pode dar sentido. Descobrir coincidências é investir numa espécie de montagem mística da vida, numa ideia de corta-e-cola transcendental, que dá forma ao tosco, que põe ordem no irregular, que justifica o que é fortuito. Foi portanto por coincidência que, há dias, retirei um livro da prateleira, que achava que nunca tinha lido, e o abri com desejo de o descobrir. Cedo dei conta que o livro tinha marcas da minha presença anterior face às suas páginas: as dobrinhas nos cantos, destacando passagens que me haviam impressionado.
O livro em questão era Laços de Família da Clarice Lispector, e uma das dobrinhas remetia para o excerto que deixo em epígrafe. Trago-o aqui porque me tocou, de novo, e agora mais profundamente, esta ideia de beleza putrefacta, de vivacidade nauseabunda, de maravilha repulsiva – era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Tocou-me essa vivência do paradoxo tropical também porque – coincidência das coincidências – havia visto, pouco antes, A Vida Invisível (2019), o novo filme de Karim Aïnouz, adaptação de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão de Martha Batalha (que nunca li). Filme esse que é tanto melhor quando se deixa mergulhar nos aromas da existência, no que têm eles de mais rico e perfurante. E filme esse cuja narrativa se funda – coincidência das coincidências – nas coincidências do azar. E como se já não bastassem as coincidências, recordo-me que a Ana de Clarice não é assim tão diferente da Eurídice de Martha: ambas mulheres nos anos 1950 (o livro de Lispector é de 1960), ambas pequeno-burguesas pacatas e banais, ambas perturbadas pelo acaso e ambas as narrativas geridas a partir de uma interioridade feminina convulsa e tormentosa.
Aïnouz pinta este filme de época com pinceladas de merda, mijo, esporra, sangue e tudo o mais que um corpo produz. Parece ser uma necessidade, para contrariar a patine rósea que costuma cobrir o olhar sobre esses anos “felizes” do pós-guerra.
O primeiro aspecto interessante de A Vida Invisível prende-se com a sua estrutura epistolar – que certamente terá origem no romance de Batalha. Sendo que a graça do género está no modo como cada carta nunca responde à anterior. É, afinal, um romance epistolar surdo: dois solilóquios femininos que, na ausência de notícias da outra banda, constroem realidades fantásticas sobre a vida da endereçada. Aïnouz é particularmente hábil e cândido na gestão entre as expectativas de cada irmã sobre o estado da outra e a concretude do seu dia-a-dia. E mais uma vez, como vem sendo frequente nos últimos filmes do realizador, o grande assunto é a separação (familiar). Depois de A Praia do Futuro (2014), sobre uma paixão de Verão que separa dois irmãos, e do documentário THF: Central Airport (2018), que retrata a vida de um refugiado separado da família por uma retenção administrativa no desactivado aeroporto de Berlim, também A Vida Invisível se centra numa separação familiar (desta feita entre irmãs), que se reveste de uma separação mais profunda, quase conceptual, da própria personalidade.
Aïnouz sublinha, uma e outra vez, a possibilidade de Eurídice e sua irmã, Guida, serem uma e uma só pessoa. Ambas “casam” de seguida, ambas têm o primeiro filho com curto intervalo, ambas perdem a figura materna uma após a outra e ambas usam o mesmo brinco da avó. Mais do que o acaso das coincidências, o que Aïnouz propõe é uma ideia de fragmentação de personalidade, como se independentemente das escolhas tomadas por qualquer mulher (neste caso, seguir o trilho expectável da dona de casa mãe de família, ou, inversamente, rebelar-se contra isso e sofrer as consequências da rejeição familiar), o resultado é sempre uma existência de sofrimento. Daí que o seu reencontro é, necessariamente impossível, porque a existência feminina é necessariamente irreconciliável, após a fragmentação. Como a Ana de Clarice não pode mais voltar a ser a mesma depois da epifania provada pelo cego na paragem de autocarro, também Guida e Eurídice ocuparão eternamente lados opostos da moeda, e como tal estão impossibilitadas de se voltarem e encontrar face-a-face (para sempre costas-com-costas). Esta hipótese, de uma união quebrada em dois retratos do feminino encontra justificativo no posicionamento do brinco que cada uma carrega: Guida traz o pendente no lóbulo da orelha enquanto Eurídice o carrega num fio, junto ao peito. E aí revela-se a complementaridade que as liga e repele: a mais cerebral leva o brinco junto ao peito, a mais emotiva trá-lo junto à cabeça; e aquela que sempre admirou os dotes musicais da irmã tem-no junto ao ouvido, enquanto aquela que sempre se deliciou com as descrições do encontros carnais da outra o traz junto às mamas. É nesse binómio, entre razão e tesão, que o realizador, finalmente, se liberta da extrema contenção que vinha caracterizando os seus últimos filmes, deixando de filmar com aquela distância higiénica de um cinema para festival, meio oco e atmosférico.
E finalmente chego ao perfume. Numa das primeiras cenas do filme Guida diz, antes de se ir encontrar com o novo namorado e depois de descrever à irmã o minete e punhetinha que haviam ocorrido no dia anterior, “estou tão nervosa que só me dá vontade de fazer cocó”. Adiante, Eurídice de vestido de noiva arregaçado até à orelhas e cigarro na mão, mija ansiosa, enquanto a amiga lhe fala de como proceder na noite de núpcias e lhe pede, “não puxes o autoclismo que eu vou já a seguir” – mijo sobre mijo. Segue-se o esperma, o sangue da virgindade rebentada e o sangue escuro do parto, misturado com o líquido amniótico, com ranho, com lágrimas e suor. Aliás, essa cena da noite de núpcias acontece numa casa de banho, contra uma sanita, depois de um vómito alcoolizado – talvez a cena mais perturbadora de todo o filme, pela forma impávida como descreve toda aquela violência, salientando a normalidade de um sexo abusivo e grotesco dentro do seio familiar -; coisa suja, embriagada, descoordenada e insensível (extraordinário Gregório Duvivier, a fazer de inocente besta, entre o trôpego pueril e o javardo tóxico).
Portanto, e se não consegui tornar a descrição gráfica o suficiente, Aïnouz pinta este filme de época, situado nos anos 1950, com pinceladas de merda, mijo, esporra, sangue e tudo o mais que um corpo produz. Parece ser uma necessidade física, de modo a contrariar a patine rósea que costuma cobrir de nostalgia todos os filmes que olham esses anos “felizes” do pós-guerra. Só o asco consegue perturbar a reconstituição, com os seus automóveis e roupas de época. O que entristece é que todo esse ramalhete de cheiros se vai perdendo, numa nota só, à medida que o filme caminha para o seu desenlace (ou à medida que a solenidade asséptica de Fernanda Montenegro vai tomando conta do filme): coisa de puxa-lágrima geriátrica. O filme perde o sujo e com isso vai-se entristecendo, como se só a sujeira, mesmo que repugnante, desse ainda aroma a vida àquelas funestas existências femininas. Com a limpeza só resta a desilusão, o desespero mudo e o vazio.