De acordo com Framing Faust: Twentieth-Century Cultural Struggles de Inez Hedges, em 1910 já o mito de Fausto ia em, pelo menos, 18 adaptações. Quando chegamos a este Rapsodia satanica (Rapsódia Satânica, 1917) de Nino Oxilia já o mudo tinha também preocupações de tom, de mal-estar interior, a nuance de um romantismo doentio. Oxilia foi um conhecido dramaturgo, poeta e realizador italiano que morreu muito novo, ainda antes dos 30, numa batalha na 1ª Guerra Mundial. Ele também incorporou, tragicamente, o ideal da eterna juventude que aqui se apresenta como tentação à diva Lyda Borelli.
O filme é também inspirado num poema de Fausto Maria Martini “Rapsodia Satanica: Poema cinema-musicale”. Ao contrário das demonstrações cinéticas do poder do diabo que víamos em George Méliès, por exemplo, aqui, Mephisto, interpretado por Ugo Bazzini, tem uma dimensão lírica e insinuante. Ele sai de um quadro, ganha vida a partir dele. Tema que era recorrente no cinema mudo – lembro, o excelente An Unsullied Shield (1913) de Charles Brabin, no qual os ancestrais de um homem que não honra a sua promessa no leito de morte do pai saem dos seus quadros e voltam à vida para lhe mostrar as dificuldades pelas quais passaram ao longo dos séculos, encorajando-o a perseverar ante as dificuldades. Aqui, o que Mephisto fará ao sair do quadro é pedir à Condessa Alba d’Oltrevita que parta o símbolo do amor se quiser regressar à juventude, isto é, que parta o tempo.
Quer no filme de 1917, quer no de 1911, a preservação das cópias não permitiu iludir as manchas, os cortes, as distorções em vários dos fotogramas. É a morte de um formato aqui ao serviço de uma inadvertida camada extra de terror. Uma assombração de luz, um desfazer de formas que atemoriza as vítimas ou os carrascos.
Se é verdade que o cinema antes do sonoro parece ele próprio provir de um tempo parado, um sem tempo (isto porque a suspensão dos gestos, o fazer as coisas pela primeira vez contra uma serialidade de processos, convida a pensar dessa forma), aqui é precisamente o que está em causa. Uma paragem dos relógios. E para isso é necessário parar o amor, pois este é vivo e quando existe faz avançar o tempo. Mas mais do que isso. Rapsodia vem em todas as histórias do cinema com duas justas etiquetas: a do “cinema de fraque” e do filme de diva italiana. Em ambos os casos, embora por razões diferentes, essa suspensão vinha a propósito. Quanto ao primeiro caso, estava em causa um conjunto de melodramas que retratava os dilemas burgueses das classes superiores e aristocráticas, demorando-se longamente nos interiores bem decorados e nos profundos sentimentos dos seus habitantes. Aliás, os interiores do castelo da condessa são disso um bom exemplo. Por outro lado, Lyda Borelli – tal como Pina Menichelli ou Francesca Bertinni, – com os seus gestos e posturas exageradas eram as divas do cinema italiano, adoradas pela sua beleza e sensualidade. Oxilia está bem ciente disso, quando filma Borelli nos seus longos momentos de êxtase agónico após o trágico suicídio de um dos irmãos.
Mas talvez aquilo que hoje mais encanta ao revisitar os inícios do terror e o decadentismo simbólico de Rapsodia satanica seja a forma como “essas “catástrofes líricas”, como lhe chamou Gabriele d’Annunzio, tenham uma corporização tão visual e sonora. Visualmente, a tintagem feita através da técnica de estêncil – na cópia preservada pela Cinemateca de Bolonha – adensa cromaticamente esta dimensão de exuberância e amor fou, especialmente nos vermelhos de Mephisto e nos rosas de Alba. Um e o outro assombrações quando surgem. Um e outro duplos entre si, duplicidade essa que o realizador italiano vai tantas vezes sublinhar através do reflexo das águas que dá a juventude ou a velhice de volta ou os planos em que Alba surge em duas os três cópias, nos espelhos da sua sumptuosa casa. E sonoramente, o trabalho da muito conhecida banda sonora encomendada ao compositor Pietro Mascagni. A sua subtileza e doçura conseguem contrariar o terror e trazê-lo para uma dimensão da perturbação interior possuindo, contudo, ramificações bucólicas.
É interessante quando olhamos, uns anos antes, para L’Inferno (1911) de Francesco Bertolini, Adolfo Padovan e Giuseppe de Liguoro, conhecido por ser a primeira longa metragem de terror, longa italiana mais antiga preservada e primeiro filme de longa duração a ser exibido integralmente nos Estados-Unidos. Trata-se de uma adaptação da primeira parte de A Divina Comédia de Dante, o Inferno. O que se torna interessante é que, se como dizia acima, já não estamos aqui numa pura forma slapstick de conceber a obra do mal [lembro as acrobacias de Satan en prison (1907) de Geoges Mélies, por exemplo], também é verdade que não entramos na interioridade e efeitos psicológicos de um protagonista como no filme de Oxilia. L’Inferno é algo intermédio. É a condição do espectador do mal.
Por um lado, conserva ainda o espanto e o efeito. Por exemplo, vemos Bertran de Born, condenado como falsificador, carregando a sua própria cabeça, as sobreposições na imagem pela qual observamos os pecadores da luxúria para sempre levados num redemoinho de vento infernal, ou Lúcifer devorando os traidores no último círculo infernal. Esta sequência em particular, mas na realidade todo o filme, surge como uma animação ou corporização da visão deste mesmo Inferno por Gustave Doré. Por outro lado temos, pois, este outro veio do terror que o cinema mudo geriu como ninguém: a construção do quadro e da atmosfera do terror. Quando pensamos nos medianos filmes de terror no qual o pouco que há para ver é a forma como se encenam as mortes de cada vítima, não podemos deixar de pensar nessa tradição do espectador-Dante que, na altura, percorria, impotente, os círculos/quadros demoníacos atractivos ao olhar voyeurista.
Nestes dois filmes há uma espécie de síntese: o cinema como forma de mostrar o gesto e as acções do mal, mas também de as observar nas suas suas consequências. As visões de um mundo onde o terror passaria a ser uma hipótese do fazer e do ver, um dos caudais do realismo e naturalismo.
E depois temos ainda o papel do tempo sobre a irreversibilidade da deterioração da película que conduz à destruição. O cinema como morte a 24 fotogramas por segundo, rezava assim a lenda. Em Rapsodia satanica houve quem visse uma alegoria do cinemático. Alba procura preservar-se no tempo, como uma imagem de cinema que sempre passaria naquele castelo/sala de cinema. Mas podemos ainda ir mais longe. Quer no filme de 1917, quer no de 1911, a preservação das cópias não permitiu iludir as manchas, os cortes, as distorções em vários dos fotogramas. É a morte de um formato aqui ao serviço de uma inadvertida camada extra de terror. Uma assombração de luz, um desfazer de formas que atemoriza as vítimas ou os carrascos. O cinema experimental já apanhou todas essas potencialidades. Também este jogo da passagem do tempo do filme e do tempo do film (película) permitem pensar nesta dupla face ou reversibilidade do inferno e do terror. Por dentro e por fora, acção e efeito, histórias e História.