É a puta da pandemia. Anda para aí a arreliar todo mundo (e a matar outro tanto). Foi de complicações associadas à infecção pelo COVID-19 que faleceu o cineasta sul coreano Kim Ki-duk (na Letónia). Tinha 59 anos.
Foi Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom (Primavera, Verão, Outono, Inverno… Primavera, 2003) que o colocou no mapa dos grandes autores do cinema mundial do início do segundo milénio, e no ano seguinte receberia o Urso de Parta para melhor realizador por Samaria (Samaritana, 2014), em Berlim, e o Leão de Parta (pelo mesmo motivo), em Veneza, por Bin-jip (Ferro 3, 2004). O seu nome passaria a ser o primeiro representante do cinema sul-coreano no circuito do cinema de arte ocidental. Mas logo desde o início os seus filmes vinham envoltos por um sururu que se prendia com a violência sobre animais, com a alegada misoginia do realizador e, mais recentemente, com várias acusações de violência e assédio (foi condenado pelas primeiras). Entretanto, os seus filmes deixaram de encontrar espaço no circuito comercial português (com o fecho das salas que o acolheram sucessivamente, o Cinema Quarteto e o Cinema King), mas para vários walshianos o seu nome é sinónimo das descobertas adolescentes do cinema asiático. É com essa memória pubescente que recordamos, e confrontamos, o seu cinema. Porque é isso, sempre, aquilo que mais importa lembrar.
Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom é, porventura, o filme mais conhecido de Kim Ki-duk. Um relativo sucesso de bilheteira internacionalmente (mas não tanto na Coreia do Sul), é menos brutal do que outras obras icónicas do realizador. Escrito, realizado e montado por Kim (que também participa como actor), o filme evoca ideias budistas de diferentes tradições, não só em elementos narrativos como visuais. Ainda assim, é uma obra onde a atenção a outsiders e a violência associadas à sua filmografia estão igualmente presentes.
Toda a acção se desenrola no espaço interior e em redor de um mosteiro budista, acompanhando a vida de um monge desde a sua infância até à idade adulta. Cada estação do ano corresponde a uma fase/idade diferente. A figura do seu velho mestre acompanha a maioria das estações e, na Primavera que fecha o filme, o monge torna-se ele próprio o mentor de outra criança – o tom cíclico indicado pelo título está também evidente no paralelo com o percurso da personagem sugerido na perturbadora cena de crueldade animal que foi cortada na versão internacional do filme. Figuras do “mundo exterior” são poucas e estão sempre ligadas ao sofrimento do monge protagonista, o qual tende a derivar das suas próprias acções.
Filmado num set construído para o filme, no lago Jusanji do Parque Nacional Juwangsan, Primavera, Verão, Outono, Inverno… Primavera é um trabalho onde o natural tem uma importância crucial, não só as magníficas paisagens – certamente um dos factores que tornou o filme objecto de tanto fascínio internacional – como os diferentes animais que surgem em cada estação e que funcionam como elementos essenciais a cada fase. Mas, embora os humanos possam parecer irrelevantes perante a natureza majestosa, o filme é largamente sobre homens e a sua incapacidade de desapego total ao desejo e subsequente sofrimento. Neste dito “filme budista”, as mulheres são raras, e a de maior relevância surge como pouco mais que um objecto de desejo que “desencaminha” o protagonista. Qualquer complexidade psicológica é reservada para as figuras masculinas. Será interessante ver como, no futuro, este e outros filmes de Kim poderão vir a ser interpretados à luz das acusações de assédio sexual de actrizes que haviam trabalhado consigo que marcaram a fase final da sua carreira.
Helena Ferreira
Há filmes que nascem de um conceito simples, um gesto ou movimento, um objecto ou uma paisagem, mas depois esse mesmo conceito acaba praticamente anulado no produto final. E depois há filmes como Bin-jip, de Kim Ki-duk, magistral pela forma como nunca ultrapassa o seu conceito, obedecendo a uma lógica minimal ancorada na convicção de que basta uma ou duas boas ideias para se fazer um filme. É à volta da ideia de “shadowing” que o sul-coreano desenvolve esta história de amor – quase muda (dispensando a palavra, o conceito também sobressai mais) – num mundo onde esse sentimento não abunda. O nosso herói é como um fantasma que entra na casa das pessoas enquanto elas estão ausentes. Trata-se de uma ocupação relativamente benigna, já que este assaltante não está ali para roubar nada, chegando mesmo a consertar objectos avariados e deixando tudo impecavelmente limpo antes de dar de frosques. Faz lembrar, neste sentido, quer o primeiro filme de Christopher Nolan, o intrigante thriller filosófico Following (1998), quer pode ter influenciado uma obra como Gisaengchung (Parasitas, 2019), do compatriota Bong Joon-Ho.
A história de amor começa por obedecer a um movimento mais à frente invertido: inadvertidamente, ela começa por ser “a sombra” dele. Ele, o invasor bom, entra numa casa que – não o sabe – está ainda ocupada por ela, que chora na solidão os abusos cometidos pelo seu marido. O movimento final – o “bombom” deste filme – é o da inversão, pois o ladrão passa a ser a sombra dela, vivendo os dois na mesma casa, mas sem excluir a presença do dito marido abusador. O protagonista exercita o corpo e a mente para ocupar os ângulos mortos da percepção de quem partilha a mesma divisão consigo. Tudo começa com uma espectacular fuga da prisão – um Robert Bresson a tender não para a matéria mas para a abstracção – e termina ou culmina nesta história de amor vivida no ângulo morto da percepção. Ele confina-se nesse espaço – os “outros 180º” que a nossa visão não dá conta – e, desse modo, passa a poder tornar-se uma espécie de mito invertido de Orfeu e Eurídice, já que os dois amantes se vêem, olhos nos olhos, e se beijam, lábios contra lábios, mas ninguém os vê a eles. Estão “condenados” ao amor em resultado de uma coreografia do corpo que materializa uma elipse – muito curioso isto num filme que é tão corporal, mais de gestos do que de palavras.
Luís Mendonça
Na minha juventude, Kim Ki-duk encantou-me sobretudo pela sua sensibilidade aguda à potência expressiva e significante do silêncio. Nos seus filmes, o silêncio não é uma ausência, uma suspensão, um vazio que aguarda ser preenchido, mas sim sopro, murmúrio, matéria audível. Esta é uma qualidade admirável, mas, em última instância, insuficiente para compensar aquela que é, a meus olhos, uma rebarbativa e enfadonha tendência para a explosão, a violência, o gore, que mancha a generalidade dos filmes do realizador. É por esta razão que os atenuados Ferro 3 e Shi Gan (Time, 2006) (do qual extraí um fotograma para a primeira crónica que mantive no À Pala de Walsh — Simulacros —, em 2013) subsistem como os meus eleitos, ainda que me agradem, também, a água, as árvores e os animais de Primavera, Verão, Outono, Inverno… Primavera.
Menos célebre, Bi-mong (Dreams, 2008) é, talvez, um objecto mais ilustrativo do desequilíbrio enfático que encontro na obra deste cineasta. O início é excelente, a continuação é cativante, a terceira parte é um festim de mau gosto, e o último minuto cintila. Em suma, trata-se de um filme desconcertante, assente num quadro conceptual vigoroso, o qual começa por ser bem conduzido, mas passa a esboroar, de forma progressiva, até ao momento em que é provisoriamente (até à cena final) destruído pela facilidade de uma caricatura de visceralidade a que Kim Ki-duk, adolescentemente, quase nunca resiste.
Platónico, Kim Ki-duk sempre pareceu ter dificuldade em converter uma ideia instigante numa obra sólida. Os seus filmes são invariavelmente desiguais, não entre si, mas no próprio interior de cada um. Podemos optar por considerar esta característica uma idiossincrasia, um defeito, ou, apenas, uma marca de modernidade. Na verdade, é justamente essa modernidade violenta, mágica, e muito asiática, aquilo que sobressai em qualquer um dos filmes deste realizador, e é por ela, talvez, que ele deverá ser lembrado.Bi-mong regressa a estruturas do cinema clássico, particularmente a uma certa tradição do noir marcada pelo onirismo e pela fantasia, mas transforma-as numa proposta singular, e radicalmente pessoal e própria, embebendo-as num registo simbólico, perfeitamente inverosímil, que procura concretizar na própria forma o substrato psico-sexual. No caso, a forma variável — como a dos sonhos, que dão o título e o tema ao filme — de uma borboleta.
José Bértolo
O conceito de um documentário introspectivo e semi-autobiográfico, de e protagonizado por Kim Ki-duk (cineasta que, em vida e na morte, reuniu pouco consenso), seria sempre algo de, no mínimo, intrigante. Arirang (2011) é, portanto, obra confessional, olhos nos olhos com a objectiva, do realizador a braços com o dilema do bloqueio criativo, os pés calejados por frieiras e a viver numa cabana no campo em regime de auto-subsistência, como resultado do trauma de um incidente, durante a rodagem de Bi-mong, que quase custou a vida de uma das suas actrizes.
Sem descurar o estilo formal que compôs uma parte substancial da sua filmografia, o “meta-documentarismo” (como ele mesmo nos diz, este tanto pode ser um documentário, um drama ou uma fantasia) de Arirang vive da figura e do quotidiano eremita de Kim Ki-duk, mas, sobretudo, de uma sequência, extensa e central, onde os seus estados de espírito assumem diversas personalidades, e todas encarnadas na fisionomia do próprio realizador. Através de um simples e metódico jogo de campo – contracampo, flutuando entre o factual e o imaginado, o filme é, também, um estudo sobre as obsessões, o combustível criador e as hesitações de qualquer autor de cinema. No momento da morte de Kim Ki-duk, (re)ver o experimentalismo biográfico encerrado em Arirang revelar-se-à experiência catártica, emocional e – dependendo do grau de envolvimento do espectador – inteiramente devastadora.
Samuel Andrade
Como outros (neste texto colectivo e bem além dele), Kim Ki-duk foi um realizador de grande fascínio nesses primeiros anos da descoberta do cinema. Ainda adolescente, foram títulos como Ferro 3 e Primavera, Verão... (visto na televisão, que a minha puberdade deu-se na província, sem acesso fácil ao Quarteto e ao King) que me deram a conhecer este autor, uma certo cinema de festival europeu e, além disso, me trouxeram imagens singulares do que era o cinema dessa país distante (e ainda nada pop), a Coreia do Sul. Depois disso, confesso, nunca mais acompanhei a sua produção que, percebo agora, foi extremamente prolífica. Ontem abri a minha conta da Filmin de olho nos dois títulos mais recentes do realizador que lá se encontram (com o propósito de satisfazer essa grave falha da minha cinefilia): Pieta (Pietá, 2012) e Moebiuseu (Moebius, 2013). Comecei pelo segundo e ao fim de dez minutos tive que parar. Que filme intragável. Procurando evitar todo e qualquer diálogo, cada situação e cada personagem parecem caricaturas de caricaturas, a câmara sempre aos tremeliques dá-lhe um cheirinho a porno amador, com essências de snuff, e a violência parece coisa de farsa, um grand guignol de robertos trauliteiros. Tentei a minha sorte com o outro, mas talvez já tocado pelo choque, não consegui passar da primeira violação seguida de amputação (aos oito minutos – de notar que o filme começa com o suicídio, por enforcamento, de uma pessoa em cadeira de rodas…).
Estas imagens contrastam enormemente com as minhas memórias de um cinema lento e profundamente atento aos pequenos gestos. Aqui tudo é excessivo, de uma forma em que esse excesso se basta, em que nada se produz. Há uma fúria, é certo, que parece desembocar apenas num desejo de produção. E um gosto pelo choque, de enfant terrible, que se fica pelo gozo da provocação. Certo é que estas imagens me desarmaram. Procuro compreendê-las no contexto da filmografia do realizador, em articulação com a sua própria biografia, envolta em escândalos, acusações e bloqueios criativos. A isto junta-se um factor importante para deslindar este caso: o festival de Veneza, que serviu de porto de abrigo aos filmes de Kim Ki-duk e de expositor público para as convulsões de uma carreira atípica (e que lhe daria o grande prémio, o Leão de Ouro, exactamente por Pieta). E aqui surge My Mother (2013), curta de apenas um minuto, produzida a convite desse mesmo certame no ano em que completou a 70.ª edição (Venice 70 Future Reloaded – compilação destes vários curtos filmes, que inclui um tocante retrato funerário de João Pedro Rodrigues). Nele o estilo desses dois filmes é o mesmo: uma imagem deslavada, uma montagem aceleradíssima, uma câmara trepidante e uma certa violência gratuita em modo farsa (desta feita, uma velhinha com imensas dificuldades motoras procura atravessar, apressadamente, uma longa passadeira, carregando com dificuldade as compras escadas acima). Só que essa velhinha é a mãe do realizador, e a pressa tem que ver com a visita inesperada do filho, que a lança numa agitada epopeia junto da mercearia da esquina onde adquirirá os ingredientes para aquele que é o prato favorito do seu rebentinho. Há, por isso, uma ternura muito franca (e até naïf) em toda esta encenação familiar (que eleva, afinal, a mãe a figura heróica, e retrata o realizador como “filhinho da mamã” mimado). E neste minuto redescubro aquilo que me havia tocado nos primeiros filmes que vi de Kim Ki-duk: a doçura.
Ricardo Vieira Lisboa