As imagens cinematográficas que navegam na fronteira entre o visível e o invisível, o atual e o virtual, o presente e o passado, o figurativo e o abstrato, sempre foram, para mim, convites para ver sob e além das formas reconhecíveis. Acredito que as imagens de cinema mostram sempre qualquer coisa, assim como acredito que qualquer forma impressa por ação da luz sobre a película está condenada a ser imagem por uma fração de segundo, para logo de seguida desaparecer.
A intermitência luminosa do ecrã de projeção não constitui apenas o dispositivo de visibilidade das imagens fílmicas; ela determina também a condição da sua percepção pelos espectadores, num piscar de olhos mecanicamente repetido que permite extrair as imagens da escuridão e salvá-las do esquecimento. Mas, em última instância, cabe ao espectador decidir se quer submeter-se ao que as imagens lhe dão a ver, ou exercer o seu poder de percepção para além dos limites do visível e do dizível… E isto independentemente de qualquer entidade profílmica, cineasta ou narrador omnisciente, poder vir dizer que as imagens de um filme não representam nada, que são meras fabricações ilusórias e passageiras, e que de nada serve tentar atribuir-lhes um sentido. O espectador tem o poder de ver, mesmo quando aparentemente não há nada para ser visto.
“Il n’y a rien à voir“. Estas palavras são proferidas por uma voz off feminina aquando da primeira aparição do longo plano ao qual pertence este fotograma do filme Le navire Night (1979) de Marguerite Duras [1]. A voz diz-nos peremptoriamente que “não há nada a ver” e, contudo, neste fotograma vemos claramente algo: uma túnica vermelha num tecido cintilante, de onde sobressaem a gola e as bainhas das mangas num tom mais escuro. Esta peça de roupa encontra-se estendida sobre uma parede ocre mal iluminada, como que suspensa por fios invisíveis, de braços abertos. A cineasta dá-nos a ver esta imagem em três momentos distintos do filme [2], sendo o plano ao qual pertence o fotograma repetido três vezes na montagem: através de um zoom out da câmara, a imagem passa gradualmente do negro absoluto a uma superfície escarlate, brilhante, com uma textura aparentemente viscosa, que se revela ser o tecido da peça de vestuário presa à parede.
O movimento de afastamento da câmara sublinha a ideia de um poder de revelação do preto, contrapondo-se à ideia comum de que a escuridão é um obstáculo à visão. Neste plano, assistimos à aparição de uma imagem incerta que invade o ecrã e se expande como uma ferida aberta, dilacerante, obrigando-nos a ver o que se apresenta perante os nossos olhos, mesmo que não sejamos imediatamente capazes de identificar do que se trata, ou que as palavras que nos chegam aos ouvidos neguem o que julgamos ver. Esta ambiguidade paradoxal entre o que é visto e o que é ouvido é claramente formulada na primeira ocorrência do plano, sendo que a frase “Então não há nada a ver” é proferida em resposta à questão central do filme: “Sobre o texto do desejo, nenhuma imagem?” [3]. A mesma ideia de uma relação de incompatibilidade entre discurso e imagem será aludida nas duas aparições seguintes do plano, o qual surge acompanhado pela narração em off de alguns episódios de uma história de amor sui generis, apresentada como uma “Historia sem imagens. História de imagens negras” [4]:
Entre 1973 e 1975, em Paris, dois desconhecidos (identificados pelas iniciais J.M., um homem, e F., uma mulher) mantêm uma relação íntima através de telefonemas nocturnos que se prolongam até de madrugada. Tudo começa quando, discando ao acaso números de linhas telefónicas desactivadas após a Segunda Guerra Mundial, ambos interceptam a mesma chamada. No início, J.M. e F. falam de si, descrevem um ao outro a sua aparência, tentando adivinhar o corpo ao qual pertence a voz que ouvem. Do que cremos saber (mas nunca chegamos a ver), o seu aspeto físico pode ser completamente inventado, pois em momento algum os personagens se encontram face a face. À medida que a intimidade das conversas telefónicas aumenta, a mera sugestão da existência de um corpo latente do outro lado da linha torna-se fonte de um prazer desmedido, adiando a necessidade de consumação física da paixão.
E assim continuam ao longo de quase três anos, sobrevivendo ao desejo que sentem pelo outro tanto quanto ao prazer de se sentirem desejados, esquivando-se aos vários encontros que vão marcando, até ao dia em que F. confessa a J.M. ter uma leucemia. A notícia provoca o afastamento gradual entre eles, pois J.M. teme que a doença seja apenas um pretexto para não se verem. As duas últimas chamadas datam do final de 1975: na primeira, F. avisa que vai morrer em breve e que vai se casar; no segundo, é o próprio futuro marido que exige que J.M. termine o relacionamento de uma vez por todas, alegando que F. terá enlouquecido por sua causa. A história termina assim, como um telefonema repentinamente interrompido que deixa J.M. pendurado do outro lado da linha, sem saber se a razão do silêncio definitivo de F. é a morte ou a loucura.
Esta história terá acontecido realmente; foi contada pelo próprio J.M. a Duras. Receando que a história fosse esquecida, esta fez um registo áudio do relato, passando-o depois para o papel. Contudo, nem a gravação nem o texto escrito em fevereiro de 1978 foram suficientes para cristalizar a história vivida por J.M. e F., levando Duras a decidir adaptar o seu texto sob a forma de um argumento para uma longa-metragem, que seria filmada em julho do mesmo ano.
Esse filme é Le navire Night. Ou teria sido. Pois entre os eventos vividos por J.M. e por F., o texto escrito por Duras e o filme realizado instala-se um abismo intransponível. A história de um amor não consumado vivido por intermédio do telefone é-nos relatada na terceira pessoa pelas vozes de Benoît Jacquot e da própria cineasta, aquando de um suposto encontro entre ambos em Atenas, cidade deserta, quente e dormente, que vemos nos primeiros planos do filme; mas as imagens que se sucedem não dão matéria figurativa suficiente para tornar verosímeis ou meramente tangíveis os eventos que os narradores pretendem reconstituir.
Ao invés, vemos o que parecem ser os bastidores das rodagens: planos fixos do interior de uma casa iluminada por projetores de cinema, intercalados com sequências onde figuram, imóveis e imperturbáveis como estátuas de cera, três atores a serem maquilhados (Dominique Sanda, Bulle Ogier e Mathieu Carrière) [5]. A estas imagens que evocam um filme-dentro-do-filme juntam-se ainda vários planos-sequência filmados de madrugada nas ruas de Paris e nos arredores, os quais revelam a paisagem envolvente com a deliciosa lentidão prolixa típica dos travelogues de Duras [6], percorrendo os locais onde a história terá supostamente acontecido: as margens do Sena, os trilhos dos cemitérios, os jardins desertos.
Embora a história vivida e relatada por J. M. a Duras tenha todos os ingredientes de um verdadeiro melodrama, o filme realizado não nos mostra nada, não nos leva a lugar algum, parecendo prolongar-se no tempo, numa deriva cansada guiada pelo que resta do desejo outrora sentido por aquele homem e aquela mulher incógnitos. Efectivamente, foi a ideia de deriva de um barco que deu a ideia do título à cineasta :
Este território de Paris, à noite, insone, é o mar por onde passa o Night. Este filme. Esta deriva a que chamámos: Navire Night. Nada durante o dia pode ser visto desta passagem na noite. [7]
Le navire Night nasce da urgência de contar uma história de amor ameaçada pelo esquecimento. Para Duras, não basta tornar o relato audível, é preciso que seja visível, palpável, cristalizado na própria matéria fílmica, nas imagens bem como nos sons. Como na maioria das suas obras, a narrativa do filme não segue a linha horizontal da cronologia dos eventos, mas apresenta-se através da articulação e modulação, em profundidade, de camadas de tempo e de espaço distintas, aproximando-se da concepção do cinema poético defendida pela cineasta Maya Deren [8], ou daquilo a que Gilles Deleuze chamará mais tarde regime cristalino do cinema moderno, onde as “pontas de presente” e os “lençóis de passado” podem coexistir numa ordem não-cronológica. O filme de Duras propõe-se assim a abolir as fronteiras entre os espaços-tempos múltiplos que tecem e envolvem, simultaneamente, a história vivida pelas personagens, a história contada pelas vozes e a história evocada pelas imagens.
Importa talvez lembrar que Le navire Night integra um corpus literário e fílmico caraterizado por um questionamento constante sobre a possibilidade de contar uma história, de transformar em narração a vivência de determinados eventos, de dizer o indizível e de mostrar o imostrável. Estes temas percorrem a obra de Duras, desde o argumento de Hiroshima mon amour (1959) às múltiplas tentativas de autoficção que culminariam com a escrita de L’Amant (1984). Para além da atenção particular que a autora dá ao trabalho do texto, da palavra e da narração, o segredo de Le Navire Night encontra-se ancorado na dissociação que o filme opera entre o visual e o sonoro: as componentes sonora e visual da imagem (sonsignos e opsignos, na terminologia deleuziana), atraem-se e repelem-se de maneira recíproca, indissolúvel e inevitavelmente.
É Duras quem afirma que escrever Le navire Night foi algo inevitável; já realizar o filme revelar-se-ia um enorme fracasso. Mais tarde, a autora falará da rodagem como o momento em que aceitou o desastre do filme-navio, o seu naufrágio, e em que decidiu apenas procurar as imagens que viessem ocupar o ecrã enquanto a história era contada [9].
Gilles Deleuze evoca explicitamente um navio quando define o conceito de imagem-cristal em L’image-temps. Para o filósofo, a essência da imagem-cristal reside na sua natureza dupla, simultaneamente virtual e actual, que dá acesso a uma experiência directa do tempo onde o passado e o presente coalescem. Além de sublinhar a semelhança entre a estrutura dupla do navio, dividido entre uma parte à superfície e uma parte submersa, e a constituição de um cristal, formado por uma face límpida e uma face opaca [10], Deleuze refere-se aos quadros do pintor britânico William Turner para ilustrar a ideia de que “cindir-se em dois não é um acidente, mas uma força própria ao navio” [11].
É verdade que no filme de Duras o navio é apenas alegórico, estabelecendo uma analogia entre o movimento de deriva de um barco sobre a água e o desenrolar flutuante, errante, do filme no ecrã. No entanto, parece-me que podemos encontrar em Le navire Night essa mesma força disjuntiva que Deleuze atribui às embarcações pintadas por Turner: é que o filme também se cinde em dois, o filme das vozes que são como ecos dos náufragos, e o filme das imagens que trazem à tona da água os destroços da história interrompida sem chegar a “bom porto”.
Deleuze explica que a experiência directa do tempo subjacente à imagem-cristal opera com “descrições ópticas e sonoras puras, cristalinas, e narrações falsificantes, puramente crónicas” [12]. No filme de Duras, o carácter cristalino do que nos chega através do som é constantemente posto em causa pela opacidade das imagens, e vice-versa: a autonomia dada ao som faz-nos duvidar do que vemos. Não é por acaso que Deleuze cita a cineasta a propósito de La femme du Gange (1974) :
São dois filmes, o filme da imagem e o filme da voz. (…) Os dois filmes estão ali, com total autonomia (…). [As vozes] também já não são vozes off, na acepção habitual da palavra: elas não facilitam o desenrolar do filme, pelo contrário, entravam-no, atrapalham-no. Não se deveria fixá-las ao filme da image. [13]
Para além de conceber Le navire Night como um filme-navio cindido em dois, Duras associa o movimento de deriva do filme à evolução do desejo das personagens: da mesma maneira que eles adiam a concretização do desejo, a cineasta prolonga a experiência temporal do filme, desdobrando-a entre o passado da história vivida e o presente da história narrada. O que me leva a dizer que as imagens que acompanham as vozes procuram menos representar o objecto do desejo do que mostrar como o puro desejo subsiste no presente, sem se fixar a nenhum objecto.
Quem diz desejo, diz falta, ausência, espera: desejo do que não se possui, enquanto não se possui. O paradoxo em que se encontra o sujeito desejante reside no facto de que o desejo, sendo uma força que chama por um objecto ausente, se esgota quando é concretizado. É como se o desejo só pudesse existir num estado de insatisfação e de incompletude e que, por essa mesma razão, a coexistência do sujeito e do objecto de desejo fossem por definição incompatíveis. O mesmo se aplica à ideia de imagem desejante: uma imagem que dá a ver o desejo não poderia dar a ver o objecto do desejo, pois a imagem virtual e o objeto concreto anular-se-iam mutuamente.
Numa história como Le navire Night, a única imagem que não ameaça acabar com o desejo é a da escuridão que envolveu as personagens durante os longos telefonemas noturnos, naqueles momentos de lassidão e de entrega sensual ao poder sugestivo das vozes (estas evocam, mais do que um vez, a ocorrência de “um orgasmo negro”). E é na sua passagem da escuridão à luz que o desejo ganha uma forma sensível, sem contudo nunca se concretizar: esta é a forma da imagem desejante. O ecrã preto é, em Le navire Night, a imagem desejante primordial, na origem de todas as outras imagens, elas também desejantes, pois ao invés de representarem ou ilustrarem um determinado evento narrativo, oferecem-se na sua incompletude ao olhar do espectador, convidando-o a preenchê-las com os sentidos (na dupla acepção de significados e de sensações) que nele suscitam. Desde modo, a imagem da túnica vermelha-rubi revelada pelo zoom out da câmara dá a ver precisamente o devir de uma imagem desejante, que emerge da escuridão e se fixa no ecrã apenas por um curto espaço de tempo, porém cravando-se de forma duradoura na matéria fílmica e na memória do espectador.
Veremos essa peça de vestuário noutros momentos do filme, então vestida pela personagem de Dominique Sanda, o que nos leva a imaginar que a atriz iria desempenhar o papel de F. e que a túnica seria um adereço importante na caracterização da personagem. Mas a confirmação dessa hipótese não é verdadeiramente relevante para a experiência e a compreensão do filme. O que importa é como a história de J.M. e de F. sobrevive e se revive através das imagens e das vozes. A cada repetição do plano ao qual pertence o fotograma, a revelação gradual do tecido, encarnado de cor mas descarnado de vida, fixado como uma tela sobre o ecrã bidimensional, despoleta a leve lembrança do corpo que em tempos teria tocado e penetrado esse mesmo tecido. Sabemos por fim que a tela não está desabitada. Na ausência que a fecunda pode ser vista a própria matéria do desejo.
Bárbara Janicas
Doutoranda e Professora de Cinema na Université Paris 8 Vincennes Saint-Denis.
[1] O texto de Le Navire Night conheceu uma primeira versão publicada na revista Minuit, em fevereiro de 1978. O argumento definitivo a partir do qual é realizado o filme foi publicado em 1979, nas edições Gallimard. Neste ensaio, referir-me-ei a Le navire Night, texto e filme, como sendo uma única e mesma obra.
[2] Aos 15, aos 28 e aos 76 minutos.
[3] “Sur le texte du désir, aucune image ?” (Duras, 1979: 28).
[4] “Histoire sans images. Histoire d’images noires” (Duras, 1979: 21).
[5] Há apenas dois planos do filme em que os atores-personagens falam diretamente, interrogando-se sobre a veracidade dos acontecimentos narrados pelas vozes em off.
[6] Por exemplo, a curta-metragem Les mains négatives (1979), cujas imagens foram filmadas na mesma altura.
[7] “Ce territoire de Paris, la nuit, insomniaque, c’est la mer sur laquelle passe le Night. Ce film. Cette dérive qu’on a appelée ainsi : le Navire Night. Rien dans le jour ne se voit de la nuit ce passage” (Dulac, 1979: 32-33).
[8] Maya Deren estabelece uma distinção entre o modelo horizontal do cinema narrativo e o paradigma vertical do cinema poético: “The poetic construct […] is a ‘vertical’ investigation of a situation, in that it probes the ramifications of the moment, and is concerned with its qualities and its depth, so that you have poetry concerned, in a sense, not with what is occurring but with what it feels like or what it means” (Deren, 1953).
[9] “J’ai dit à mes amis qu’on allait abandonner le découpage et tourner le désastre du film. (…) J’ai trouvé le matériau de quoi recouvrir l’écran tandis que s’écoulerait le son, l’histoire” (Dulac, 1979: 13).
[10] “Germe ensemençant la mer, le navire est pris entre ses deux faces cristallines : une face limpide qui est le navire d’en haut, où tout doit être visible, selon l’ordre ; une face opaque qui est le navire d’en bas, et qui se passes sous l’eau, la face noire des soutiers” (Deleuze, 1985: 98).
[11] “[S]e fendre en deux n’est pas un accident, mais une puissance propre au navire” (Deleuze, 1985: 118).
[12] “[L’image-temps directe] opère avec des descriptions optiques et sonores pures, cristallines, et des narrations falsifiantes, purement chroniques” (Deleuze, 1985: 176).
[13] “C’est deux films, le film de l’image et le film des voix. […] Les deux films sont là, d’une totale autonomie […]. [Les voix] ne sont pas non plus des voix off, dans l’acception habituelle du mot : elles ne facilitent pas le déroulement du film, au contraire, elles l’entravent, le troublent. On ne devrait pas les raccrocher au film de l’image” (Duras, 1973: 103-104).
Referências bibliográficas:
DEREN Maya et al., « Poetry and the Film: A Symposium with Maya Deren, Arthur Miller, Dylan Thomas, Parker Tyler, Willard Maas. Organized by Amos Vogel », October 28, 1953, in SITNEY P. Adams (dir.), The Film Culture Reader. New York: Praeger, 1970, p. 174
DURAS Marguerite, Nathalie Granger, suivi de La femme du Gange. Paris: Gallimard, 1973.
DURAS Marguerite, Le Navire Night et autres textes. Paris: Gallimard, 1979.
DELEUZE Gilles, Cinéma 2 : L’image-temps, Paris: Éditions de Minuit, 1985.