
Dois filmes escavam (algo fundo) na história para lançar uma nova luz sobre duas mulheres: Billie Holiday e Alice-Guy Blaché. Dois outros filmes mergulham nas sincronias e assincronias da história, ora reconstituindo o Massacre de Srebrenica, ora fazendo ficção científica (demasiado bem explicadinha?), por via da mente sui generis do duo Justin Benson e Aaron Moorhead. As palas, essas, mantêm a nossa temperatura baixa no que diz respeito a “cinema em sala”, destacando-se, com entusiasmo desigual, Nobody (Ninguém, 2021) do russo Ilya Naishuller, e pouco mais. Má sorte.

Já que é suposto falarmos de sincronias, o último filme da dupla Justin Benson e Aaron Moorhead é um bom exemplo de uma das dessincronias mais enervantes no cinema popular de acção/ficção científica. A tendência para a explicação que acaba por aplainar o território daquilo que se construiu. Neste caso estamos na premissa de prisões no tempo – como se estivéssemos a ver ainda The Endless (O Interminável, 2017), mas do lado de fora do loop. No entanto, ao contrário deste, que nos mantinha “presos” (sincronizados) até aos últimos instantes, aqui, o seu protagonista Steve (Anthony Mackie), quando descobre o que de estranho se está a passar, filma-se explicando-nos muito bem essa ligação entre o presente e uma droga que encalha as pessoas no passado. É como uma anedota que há necessidade de explicar a graça. Uma dessincronia que acontece também, por vezes, ao inverso: não uma complexidade simplificada, mas uma simplicidade complexificada. Uma straight story cheia de detritos narrativos que a tornam falsamente obesa, uma obesidade sem drama. É o método noliano, que não deixa, no entanto, de nos aplicar o golpe de mestre: a verdadeira complexidade está na técnica. Em Synchronic (Sincrónico, 2019) o passado irrompe de forma demasiado conveniente – como sketches retirados de Game of Thrones (A Guerra dos Tronos, 2011-2019) -, restando-nos os diálogos sobre o aproveitamento da vida, a amizade, entre os dois paramédicos, num buddy movie vagamente irónico, vagamente depressivo. Por isso, temos mais ciência da ficção e menos ficção da ciência. No caso de Benson e Moorehead isso significa que meteram uma mudança abaixo.
Carlos Natálio, 11 de Junho

Que se espera de uma obra que chega à lista final de nomeados ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e que se propõe reconstituir o Massacre de Srebrenica que vitimou mais de 8 mil bósnios muçulmanos, às mãos de uma unidade paramilitar sérvia comandada pelo General Ratko Mladić? O filme de Jasmila Zbanic resulta de uma co-produção europeia de larga escala, que envolveu países como a Turquia, a Áustria, a Polónia, a França, a Alemanha, a Noruega, a Bósnia (naturalmente), e a Holanda. Tem o seu principal mérito na solidez da transposição para o terreno desses mesmos valores de produção, algo que é pouco usual de se ver em produções actuais (cada vez mais prontas a aderir ao facilitismo das imagens geradas por computador), até porque serão raros os conflitos armados e as operações de extermínio ocorridas no Velho Continente de que o cinema não tenha dado testemunho. Seguindo esta lógica, devemos reconhecer a importância do testemunho trazido por Quo Vadis, Aida? (2020), e saudar o nível da reconstituição filmada, em termos gerais muito profissional. O reverso da medalha, e aquilo que por certo também contribuiu para os elogios que esta obra obteve em festivais pelo mundo fora, é o seu pendor expositivo que sacrifica a identidade de um ponto de vista ao olhar genérico e abrangente em cima do tema tratado. Quando Jasmila Zbanic introduz apontamentos de cinema artístico, o filme incorre num decorativismo de boa consciência e até na escusada chantagem emocional dirigida ao espectador. Quo Vadis, Aida? visa o maior denominador emocional comum.
Ricardo Gross, 4 de Junho

Be Natural resulta de um trabalho (tão fundamental quanto manipulador) de Pamela B. Green na revisão dos documentos e dos testemunhos sobre a pioneira do cinema que foi, com o passar dos anos, reduzida a uma nota de rodapé incorreta e infinitamente replicada (depois de ter sido um dos nomes mais importantes do início do cinema no final do século XIX e início do século XX e ser autora de filmes inaugurais sobre feminismo, homossexualidade ou mesmo do primeiro filme cujo elenco era composto apenas por pessoas negras). A força do documentário não está certamente na sua contribuição para o género cinematográfico, pelo contrário, está sim no modo como se constrói sobre a própria investigação – processo de prospetor garimpeiro que percorre o mundo em busca de caixotes perdidos no armazém de um qualquer descendente despreocupado. Sendo que essa volta ao mundo em busca de documentos (fotografias, cartas, áudio de entrevistas nunca publicadas, entrevistas em vídeo encarceradas em formatos proscritos e mesmo filmes tidos como perdidos) se faz, nem mais nem menos, através da Internet. B. Green trabalha segundo o modelo do desktop cinema cosendo entrevistas por Skype, clips de som enviados pelo WhatsApp, pesquisas rápidas de moradas e contactos telefónicos no Google, etc. É pois um processo que renova a esperança nas possibilidades do mundo digital em rede e demonstra que o acesso à história do cinema (e à História, e ao Cinema) não se prende, afinal, necessariamente em calabouços mofentos. Alguém comentava, no outro dia, que os cinéfilos eram como os mosquitos que se concentravam em redor de uma luz, só que no nosso caso essa luz era a do projetor de cinema. Filmes como o Pamela B. Green tratam de apontar esse foco luminoso nas partes escuras da história do cinema.
Ricardo Vieira Lisboa, 30 de Maio

De Billie Holiday se poderia dizer que a sua vida dava um filme. Não só um, mas vários, como testemunha a coincidência de estreias de Billie (2019), o documentário de James Erskine, e The United States vs. Billie Holiday (Estados Unidos vs. Billie Holiday, 2021), o biopic de Lee Daniels. Em Billie, James Erskine faz uma escavação de segundo grau, recuperando o material recolhido por Linda Lipnack Kuehl, jornalista que em meados dos anos 70 desenvolveu uma série de entrevistas a várias das pessoas que conheceram de perto Billie Holiday, com vista à publicação de uma biografia que nunca chegou a concretizar-se. Este é o aspecto mais cativante de Billie, esta indagação que se constrói em três épocas distintas. Estamos num clube de jazz do Harlem, numa sala repleta de fumo, a ouvir Lady Day e Prez, mas estamos também num home movie de Linda Lipnack Kuehl ou na sua conversa descontraída com Count Basie e ainda na sala de cinema em que nos sentamos, no tempo de James Erskine. Os testemunhos que vêm daqueles anos remotos, de uma vida feita de excessos, dor, glória e amores destrutivos, vêm sem filtro e resistindo a qualquer exercício de psicologia barata, pecado tão comum noutros documentários biográficos.
Daniela Rôla, 29 de Maio