Há quanto tempo não visita a Angela White no Pornhub, caro leitor? Talvez prefira a Kylie Page no Xhamster? A Molly Stewart no Redtube? A Joana Amaral Dias no Instagram? Ah! Já sei, caro leitor. Tal como eu, simplesmente só “ouviu falar” nestas personalidades (se tanto), não estando familiarizado (de maneira nenhuma!) com os respectivos trabalhos foto-cinematográficos. Somos dois que nos mantemos sempre virtuosos e afastados de qualquer conteúdo nocivo que apele aos instintos mais primários e lúbricos do ser humano. Excepto, claro, quando nos cruzamos com este tipo de entretenimento audiovisual por mera e exclusiva curiosidade intelectual. E é com essa mera e exclusiva curiosidade intelectual que vemos os primeiros 5 minutos que antecedem as 3 partes e 3 epílogos do novo filme de Radu Jude, Babardeala cu bucluc sau porno balamuc (Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental, 2021).
Parte 1
O que Jude faz é contar a história por trás de um vídeo pornográfico doméstico que, inadvertidamente, passa a estar ao dispor do mundo à distância de um clique, assim como das consequências individuais que trará para um dos seus “actores”. Após o prólogo (cru e explícito), seguimos a protagonista, uma professora escolar cuja vida íntima ficou mais exposta do que alguma vez desejou, enquanto esta caminha por várias ruas da Bucareste urbana. Nesta longa sequência, a câmara desvia-se frequentemente da sua figura em constante andamento para filmar o ambiente ao redor, feito de cartazes publicitários, produtos em vitrines e anúncios fixados, como se o espaço físico fosse um reflexo daquilo em que a professora se tornou com a divulgação do vídeo: mais um produto descartável na longa pornografia do consumismo.
Começa como um Sá Leão caseiro, parte para um Antonioni mal-educado, segue para um Godard mordaz e acaba num Buñuel audacioso. A inventidade insólita da mistura de registos individuais do filme é só equiparável ao entusiasmo eufórico que o seu todo suscita.
É, portanto, o segmento mais antonioniano do filme, servindo identicamente de comentário às circunstâncias pandémicas que globalmente atravessamos, com a arquitectura degradada a espelhar também o estado cansado de uma nação e as dificuldades nas relações sociais que se impuseram. Os edifícios da cidade surgem, então, como uma espécie de ruínas modernas, seja pela sua condição delapidada, seja por estarem simplesmente encerrados, enquanto, aos seus pés, o buzinar dos carros é incessante, os transeuntes entram com facilidade em conflitos verbais e a total falta de respeito cívico está omnipresente. É nesta cacofonia citadina e pequenas guerras aleatórias quotidianas que Jude começa a sugerir algo maior: a de que a paisagem sociológica em que nos encontramos (e não me refiro só a estes tempos pandémicos) evidencia, sistematicamente, gestos muito mais grosseiros e indecentes do que a gravação de um vídeo de sexo.
Parte 2
Chega o segundo segmento, uma colecção de pensamentos escritos e imagéticos que percorrem algumas palavras-chave de teor político, histórico, artístico e sexual. São meditações rápidas e concisas que não estão muito longe de um Godard provocador, incisivo e até um pouco sardónico, ilustradas por excertos de vídeos (originais ou não), quadros e fotografias, pretendendo, com a montagem que leva à união entre uns e outros, que o espectador chegue a uma conclusão cómica, perturbante ou apenas pertinente sobre os vários tópicos levantados que, em maior ou menor grau, expressam, criticam, confrontam uma série de obscenidades ainda presentes no séc. XXI.
Referi Godard e não foi por acaso, já que este intermezzo ensaístico traz igualmente à cabeça a observação do poeta Pierre Reverdy que o cineasta franco-suíço citou em diversos momentos da sua obra: “A imagem é uma pura criação da mente. Não pode nascer de uma comparação, mas de uma justaposição de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais distante e verdadeira a relação entre as duas realidades justapostas, mais forte será a imagem – maior será o seu poder emocional e realidade poética.” Reverdy referia-se ao uso de figuras de estilo como metáforas ou metonímias. Para Godard, é a definição de montagem no modo como a união de diferentes imagens cria um novo significado que, individualmente, elas não acarretam. E é essa mesma definição que parece moldar estruturalmente a parte intermédia do filme de Jude. Exemplo: na palavra “Revolução”, o cineasta liga a “revolução francesa” a uma marca verídica de éclairs (quando na imagem anterior mostrava uma decapitação) e “revolução romena” a uma de vinhos (quando antes mostrava um tiroteio), insinuando, por esta associação imagética, a forma como o capitalismo sujeita as palavras de peso histórico a uma banalização mercantil.
Parte 3
Voltemos à pornografia. Parte do prazer do filme advém da seguinte premissa atrevida: “vamos mostrar o vídeo sem o espectador saber mais nada acerca dos envolvidos. Depois, mostraremos a história de um deles”. A 1ª vez que vemos o porno não temos qualquer informação sobre o casal, enquanto, na seguinte, já estamos familiarizados com a vida pessoal da protagonista. O resultado é que, quando este retorna na 3ª parte, a nossa relação com os seus intérpretes mudou radicalmente, tendo sido aniquilada a visão de objectos fungíveis de consumo (que está na base de toda a mecânica pornográfica) para dar lugar a uma empatia genuína pela situação de exposição difícil a que foram sujeitos. E é essa mesma empatia que Jude sugere estar em falta a um nível global, algo que atinge o seu ponto paroxístico neste segmento.
É, portanto, aqui que o filme revela a sua maior petulância, transformando-se num manifesto feminista relativamente à emancipação sexual feminina, mas também num estudo humorístico – dada num registo absurdista e satírico, quase buñueliano – denunciante da hipocrisia da sociedade contemporânea com as suas dissertações moralistas. E esta 3ª parte nada mais é do que uma simples reunião na escola com os pais dos alunos da docente a fim de decidirem o destino profissional desta. Uma reunião que se vai revelando um tribunal canguru intenso, com a retórica de cada progenitor a poder conter non sequiturs, falácias, sofismas, ataques ad hominem ou “apenas” preconceitos e puritanismos, os quais servem de alicerce a um discurso demagogo, irascível e intolerante que a protagonista tenta, advogando em causa própria, refutar e desconstruir articuladamente.
É um momento de grande courtroom drama (ou courtroom comedy) onde a inteligência do argumento é acompanhada, de modo preciso, pela ferocidade da montagem com o seu turbilhão de rostos paternos zangados que, com os discursos virulentos que ostentam, apelam ao “cancelamento” da professora. Uma assembleia de pessoas normais que se julgam perfeitamente educadas transforma-se, assim, numa tentativa de linchamento profissional histérico, uma autêntica cena de inquisição moderna que diariamente ocorre em caixas de comentários perto de si (no mínimo), uma obscenidade infinitamente mais grave, nefasta e censurável do que o porno mais gráfico existente.
3 finais possíveis (para este texto)
- Em suma, começa como um Sá Leão caseiro, parte para um Antonioni mal-educado, segue para um Godard mordaz e acaba num Buñuel audacioso. A inventidade insólita da mistura de registos individuais do filme é só equiparável ao entusiasmo eufórico que o seu todo suscita.
- Uma fresca ousadia formal desconstrutivista, uma hilariante sátira actual, um dos grandes filmes do ano.
- Dado o conteúdo abordado e a imagem memorável do freeze frame com que encerra, talvez a melhor e mais sucinta maneira de fazer um remate sobre este filme seja recorrendo à Agência Publicitária de Chelas: “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental: é do ca**lho!”