O que é isso de regressar às origens para se reinventar? Esse parece ser o trajeto que James Wan tomou neste seu mais recente tomo, Malignant (Maligno, 2021). O filme marca o retorno do realizador ao cinema de terror, depois de uma desvio pelo cinema de ação popular onde assinou um filme da série Fast and Furious, outro de super-heróis, Aquaman (2018), e produziu inúmeras sequelas doutras franquias, reboots e spin-offs (quase invariavelmente muito desinteressantes). Malignant era, portanto, o filme em que o cineasta voltaria às raízes: novas personagens, novas localizações, novas tramas e novos medos. Foi também o filme em que afirmou a vontade de “experimentar” algo diferente – “não me quero repetir”. Se o filme também é isso, é igualmente muito mais que isso.
James Wan, qual elegante anfitrião de uma pós-moderna feira de horrores, conduz-nos, no seu flutuante carrossel, por uma galeria expositiva onde se apresentam modelos animatrónicos que reconstroem a história do cinema de terror do último meio século. Não é, naturalmente, um percurso didático, nem estamos exatamente no território da (auto-)paródia burlesca à Wes Craven (ainda que ela se faça sentir num apontamento ou noutro). É aí, porventura, que se esconde o maior achado de Wan neste filme: o modo como cavalga alegremente o unicórnio do camp para a nascente do arco-íris do destrambelho sem qualquer forma de sátira gozona meta-referencial (vulgo piscadelas de olho ao espetador). A solenidade (que sempre lhe caiu mal) protege-o da maleita da ironia e do sarcasmo que tudo recobrem da mesma indiferença (e que, como tal, reduzem-nos a meros observadores, já destituídos dessa potência expetante de quem se envolve – espetador é aquele que espeta, mas também se quer que seja aquele que expeta, que anseia com a vista). E é essa seriedade com que encena esta dança macabra que impressiona pela sua jovialidade zombie.
Malignant não é bem um filme, é antes um divertidíssimo monstro de Frankenstein feito dos “restos” doutros três ou quatro (ou cinco, ou seis, ou mais) filmes.
Se, de facto, cada ondear da sua câmara aponta uma qualquer citação, isso nunca esgota o fulgor narrativo que carrega o enredo, nem nunca reduz as suas personagens a meros veículos de uma demonstração cinéfila bacoca. O pós-moderno, em Malignant, não resulta de um jogo de identificações (vê se sabes de onde fui buscar esta – como por vezes acontece no cinema de Quentin Tarantino), é antes um modo de entender as possibilidade contemporâneas de um género cinematográfico (neste caso o terror) como uma combinação mutante e híbrida de fórmulas – algo que ganha ainda maior ressonância quando o monstro que assombra o filme é, ele mesmo, uma criatura que se vai reconfigurando e remodelando.
Ao ver Malignant é impossível não sentir o enorme regozijo no modo como Wan convoca e recombina as ditas “novas” personagens, localizações, tramas e medos. Apetece pensar que Wan filma com um riso no lábios, deliciado. E não é preciso grande esforço para lhe descobrir o despontar, eventual, da ponta da língua num dos cantos da boca, qual puto divertido com as suas maquinações solitárias, “produtos da sua fértil imaginação”. Se é certo que quase tudo o que Wan chama a si é já bastante batido, o seu trabalho passa por apurar esse caldo mal triturado numa sopa de repolho com tudo a boiar (bem gostosa, é certo, coisa de comilão farta-brutos, ídem, mas onde se encontram os ingredientes da canja, do caldo verde, da sopa de cebola e do creme de legumes – uma cozinha de fusão meio tosca, mas cheia de improváveis texturas e inusitados prazeres).
Malignant não é bem um filme, é antes um divertidíssimo monstro de Frankenstein feito dos “restos” doutros três ou quatro (ou cinco, ou seis, ou mais) filmes. Há aqui o filme de espíritos (onde Wan se especializou no últimos anos), o thriller policial (à la David Fincher, que já estava já na génese de Saw (Saw – Enigma Mortal, 2004) – e com o qual este filme parece querer fazer as pazes), o serial killer à 1970, o giallo psicológico (com Argento à cabeça), o filme de monstros (Joe Dante é citado) e o sub-género do home invasion. Mas também o filme de ação [cheio de porrada e tiroteio – com qualquer coisa de The Matrix (1999)] e ainda umas pitadas de body horror dos anos 1980 e um aroma do J-Horror dos anos 2000 [a assombração remete, pelos cabelos negros sobre o rosto, para Samara de Ringu (Ring – A Maldição, 1998) e a importância dada aos VHSs sublinha isso mesmo] e um sci-fi de série b bem rasca (com William Castle a apadrinhar tudo – menos o orçamento…). E em cru, Wan serve o prato fumegante com um fio de gore que já não lhe conhecíamos e polvilha com uma dimensão psicanalítica, na vertigem do pastiche, como só Brian de Palma sabia (e ainda sabe, quando calha) fazer – recorde-se Sisters (1972) e Dressed to Kill (Vestida Para Matar, 1980). E também por aqui paira o espectro de The Shining (1980), de Stanley Kubrick, nomeadamente numa das viagens de carro, ou de Psycho (Psico, 1960), na casa e nos planos god’s eye.
Mas como dizia, a cinefilia não é aqui um fim em si mesmo [como era nos recentes Doctor Sleep (Doutor Sono, 2019), de Mike Flanagan, ou Ready Player One (2018), de Steven Spielberg], é um modo truculento e lúdico de construir uma história, qual cut up à William Burroughs (também David Cronenberg é para aqui chamado). E essa história é uma potente – e mais complexa do que se poderia pensar – metáfora sobre as repercussões da violência doméstica como cancro da consciência. Metáfora onde todo o símbolo se literaliza (por vezes quase como gag cómico): vide o subterrâneo que se revela, afinal, sótão onde se aprisiona a mãe (o Id que emerge e doma o Ego, à superfície). Esse trajeto, linear mas sombrio, entre figuração e interpretação reveste-se de uma particular ambiguidade quando se instaura (desde os primeiros minutos) a confusão entre a malignidade de cariz religioso-moral (diabólica) e a malignidade de cariz terapêutico (cancerígena). Tudo culminando num frente-a-frente que é, afinal, um costas-com-costas do Eu que, na inocência da sua dramaturgia, chega a ser tocante (deslizando já para o cómico).
Esse território de ambiguidade, entre o grito e a gargalhada, entre o susto e o cliché, entre a citação e a apropriação, entre o sublime e o pastelão, faz lembrar o cinema alucinado e semi-aleatório de Takashi Miike [de Chakushin ari (One Missed Call, 2003) aos mais recentes disparates]. O modo como o filme percorre diferentes géneros, metamorfoseando-se de estilo em estilo, parece refletir todo um pensamento conceptual sobre a desmultiplicação identitária da protagonista. Uma transformação violenta (com sangue e pelos e ossos quebrados) que se traduz também nas costuras expostas do próprio filme, cheio de cicatrizes rugosas, infetas, donde pinga pus fétido. Cheira mal e é, por vezes, feio, mas diverte. Diverte muito até.