Os walshianos Carlos Natálio, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa trocaram e-mails em torno de um filme “desenterrado” (morto-vivo?) que nos chega agora, cerca de quatro anos após a morte do seu realizador, o grande George A. Romero. Não deve ser reduzido a filme de encomenda este The Amusement Park (1975), uma vez que não há cedências na visão que o realizador põe em movimento, neste carnaval de horrores, sobre o grande tema, injustamente subrepresentado, da velhice. Podem verificar a razão de ser do espanto destes walshianos no grande ecrã, na próxima sexta-feira, dia 10, às 18h50, no São Jorge, numa exibição a cargo do MOTELX.

Olá, olá,
Vi The Amusement Park (1975) e ainda me está a “comer a cabeça”. Quanto mais penso nele, mais me convenço de que esta foi, de facto, uma importante descoberta. Recebi-o como o Visita ou Memórias e Confissões (1993) do Romero. Isto, claro está, por só agora, após a sua morte, vir à superfície um filme que este rodou no começo da sua carreira, depois de ter realizado alguns dos seus filmes mais fortes [não digo “fortes” como mais “violentos”, “bárbaros”, bem pelo contrário, pois são também os mais políticos, “violenta e barbaramente políticos”, como Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) e o ainda subestimado, mas absolutamente magnífico, Season of the Witch (A Época das Bruxas, 1972)].
A ideia da Sociedade Luterana de encomendar esta produção é das melhores ideias – e castings – da história do cinema da segunda metade do século XX: se pudéssemos escolher um realizador para filmar o lado degradante do envelhecimento, quem faria melhor trabalho, e cavaria mais fundo, se não um Romero, o Romero desta altura, para mais? Acho não só uma boa e corajosa ideia como, na realidade, muito avant la lettre – ainda há poucos anos se lamentava que o terror (como o cinema dramático em geral) evitasse assumir um dos problemas sociais graves que nos toca a todos, a alienação (pelo isolamento e discriminação) de que é alvo a população idosa. Falava-se há pouco tempo de um incipiente found footage que abordava o tema da demência chamado The Taking of Deborah Logan (2014)... e that’s it.
Posto isto, estamos em 1973 e um Romero com trinta e três anos responde à encomenda com uma chapada impressionante, tão impressionante que a dita Sociedade Luterana, revelando-se afinal não tão ciente quanto isso da sua excelente escolha, acabou por recusar o que havia encomendado. Não estava preparada para este “parque de horrores”, este concentracionário carnaval de horrores e tormentos. Para continuar com mais innuendo cinéfilo, diria: para este autêntico “punishment park” da terceira idade.
Gostava de ouvir a vossa opinião, antes de eu próprio esmiuçar um pouco mais a minha, mas só queria sublinhar que se em matéria cinematográfica noto um entusiasmo talvez excessivo em relação a este filme, como objecto político e artefacto histórico considero esta “descoberta” relevantíssima e até inquiridora face à pouca representatividade de tema tão premente, já nem digo no espaço público em geral, mas, em particular, no espaço do cinema.
Até já?
Saudações walshianas,
Luís Mendonça

Boas tardes, meu comparsa Luís,
Folgo em ler-te.
Também vi o The Amusement Park há um par de dias e ficou a ruminar-me a moleirinha como a incessante sirene de um carrossel de feira popular como os que se multiplicam, como cogumelos, pelos parques e jardins da cidade do Porto, na altura do São João. E partilho, naturalmente, da tua surpresa para com o objecto, que embora tenha, como dizes, falta de “matéria cinematográfica”, tem certamente um enorme fator de curiosidade e de raridade histórica (pelas desventuras materiais da cópia, da produção e da não-exibição do filme), assim como pela raridade do tema e da abordagem.
E é aí que me deparo com uma certa perplexidade diante do filme. Aliás, duas: a surpresa que resulta do choque entre a idade do realizador (então bastante jovem) e o “assunto” do filme; outro, a própria estrutura do filme, construída em loop que, paradoxalmente, contraria o fim inevitável dos corpos e a própria velhice. Os temas da velhice costumam ser abordados por cineastas mayores (para usar o castelhanismo que se adequa à idade e à dimensão), como o referido Oliveira, ou, por exemplo, a própria Agnès Varda que no século XXI praticamente não fez outra coisa senão refletir, por diversas e travessas maneiras, sobre a decadência (das batatas à memória).
Quando um realizador começa a duvidar se voltará a filmar sempre que termina uma rodagem, é natural que comece a olhar as coisas através de um filtro funéreo. Mas não é nada disso que se passa em The Amusement Park, pelo contrário. Sente-se uma vivacidade divertida (cartoonish, auto-paródica) no filme de Romero, que se constrói como uma sucessão de sketchs mais ou menos divertidos. Há um gozo na forma como se perverte a instituição do entretenimento salutar das feiras populares e se transforma esse (não-)lugar num muito literal limbo de perpétuas torturas.
Pancada após pancada, jorro de sangue após jorros de sangue, humilhação após humilhação, sente-se o riso malvado de Romero por detrás da câmara e imagino (caso este filme tenha exibição numa sala bem recheada de um Motelx desta vida) os risos adolescentes em escalada. Há uma dimensão camp neste aspecto “institucional” e o filme surge-me (e sugere-me) uma comédia que é tão consciente como desprevenida.
Quanto à segunda perplexidade, resulta do cruzamento entre o princípio e o desenlace do filme, como se The Amusement Park fosse uma longa viagem em torno de um espelho, de modo a que nos possamos olhar a nós próprios no final, surpresos com o nosso reflexo. Essa sala branca que marca o início e o fim do filme (com apenas uma porta por onde se sai e se retorna) apresenta-se com uma função (auto-)reflexiva – como todo o filme, sempre muito ironicamente didático (a começar pelo delicioso intróito) – e com um propósito simbólico. A saber, a espiral de decadência que caracteriza a velhice e o modo como os outros encaram aqueles que deixam de ser membros “produtivos” da sociedade.
Ainda assim, não deixa de ser perturbador que essa mesma sala branca (algures entre a galeria de museu, a sala de espera do médico e um além-mundo burocrático no balcão de atendimento do São Pedro) marque um recomeço. Como se aquele personagem se mantivesse num constante tormento, a ver-se reenviado para um terrível mundo de massacres a idosos – nem a morte é já forma de libertação… E nesse aspeto, a ligação ao Visita e Memórias e Confissões (que não me tinha ocorrido) tem ainda mais razão de ser. Não fosse esse um filme que se enrola sobre a sua própria materialidade, prolongando e fechando (numa anacrónica pescadinha de rabo na boca) a filmografia de Oliveira. E também ele o realizou mais de 30 anos antes do dia da sua morte.
E tu Carlos? Quais foram as tuas impressões?
Abracinhos,
Ricardo Vieira Lisboa

Olá irmãos walshianos,
Escrevi as linhas abaixo antes de ler as vossas impressões, logo após ter visto o filme. Pensei, entretanto, em refazer algumas partes para dialogar com as vossas impressões, mas acho que faz sentido começar assim abrindo caminhos, encontrando coincidências, e talvez depois fechar ideias numa segunda ronda.
Assim sendo…
Que excitação encontrar um Romero perdido! São aqueles episódios cinéfilos que dão vida ao passado do cinema, ainda por cima um filme contra a “morte precoce” pelo envelhecimento. O cinema não morreu envelheceu. O dispositivo de entrada é hitchcokiano (aquele da série televisiva) e tem um lado creepy pois sabemos que iremos estar na pele do protagonista, mais tarde ou mais cedo. O loop final apenas nos mete ainda mais dentro dessa inevitabilidade, depois de um vem outro, todos iguais na decadência. Que ideia tão perversamente lúcida para Romero ter na juventude…
O filme fez-me lembrar uma expressão de um dos últimos livros do Boaventura Sousa Santos (O Futuro Começa Agora – Da Pandemia à Utopia), no qual ele se refere – no contexto de discriminação capitalista de acordo com a idade (como apelida, o “senexismo”) – à discrepância dos lares para idosos que, dependendo das posses, podem ir de “cofres de luxo para jóias” até “depósitos de lixo humano”. “Depósitos de lixo humano” era a expressão forte que me evoca o filme.
O filme é bastante inesgotável. Algumas coisas que me ficarem na mente, de forma aleatória: 1) o fazer o filme com idosos-voluntários faz com que o filme transcenda a mera alegoria activista; talvez fosse isso o que falta a filmes como I, Daniel Blake (2016) que se instalavam também neste choque entre o humanismo e a perversa máquina produtiva do presente; 2) Já repararam como a horda de adultos activos são os zombies de Romero?; isto é, o “segredo” do seu terror está na Massa… 3) Uma coisa que gosto do filme é que a ideia de assistirmos a este choque entre a aceleração da vida como parque de diversões e as capacidades em queda na terceira idade deixa-me a pensar no seguinte. E se… envelhecer for apenas a instalação progressiva na nossa vida de uma certa lógica do cinema experimental, com as suas disrupções sonoras e visuais? Talvez seja a montagem (inclusive sonora) do filme que convida a esta conjectura; 4) Lembrei-me dos Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957), do Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957), mas também dos Monty Python: por outras palavras, uma paródia que sabe a amargo.
O esquema do filme é o de um grande sketch em que se vão sucedendo os problemas da idade avançada – por exemplo, a discriminação, a solidão, a violência, a perda de capacidades, etc. Mas depois acho que o Romero contraria isso com esta ideia de voragem visual e auditiva – os relógios, as sirenes, as grandes angulares, as sucessivas metáforas de velocidade.
E, para terminar, que me dizem daquele plano da perna de frango meio comida, já perto do final? Voracidade e grotesca solidão. Que realizador louco, saudavelmente louco, era Romero!
Abraços,
Carlos Natálio

Olá aos dois,
Queria falar da organização em sketchs e da estética crua próxima, de facto, da tradição do cinema experimental [ocorre-me Dreams That Money Can Buy (1947), por exemplo, mas também por força da estrutura rapsódica, em sketchs]. De facto, parece-me que tudo no filme, o conteúdo e o invólucro formal, participam dessa ideia de não “bater no ceguinho” mas “bater no velhinho”. Um pouco como aquela “imagem” grotesca que ficou célebre no meio político da autoria do inconfundível Santana Lopes: o bebé que está na incubadora e aparece a “massa” de familiares e conhecidos para lhe darem chapadas e pontapés.
Quando o Carlos fala de Bergman face a este Romero, ocorre-me sempre a ideia do esqueleto, não sei bem porquê, talvez sob influência daquele magnífico pesadelo de Os Morangos Silvestres. Sinto neste filme de Romero – sinto na pele, entenda-se – o lado quebradiço de tudo, não só do ponto de vista físico, corpóreo, mas acima de tudo do ponto de vista moral. O assédio é sobretudo violento quando não sabemos bem descrever o que se passa, quando a coisa é mais da ordem de uma surrealidade que trabalha no subcutâneo da sociedade-como-punishment–park.
A solidão do velho, o desprezo a que este é votado num parque de diversões onde, como dizem, tudo gira, onde os rostos e corpos se desfiguram grotescamente na vertigem da gargalhada vã, diabólica, é talvez aquilo que me leva a compreender o choque que o filme representa ainda hoje. E depois há o loop, dispositivo engenhoso que me agradou bastante, porque também é um convite a vermos de novo, agora cientes em absoluto de que não há salvação.
Vou confidenciar-vos: não devo conhecer muitos finais mais traumáticos que The Night of The Living Dead. Sempre que revejo o filme, alimento no meu espírito, de modo muito pateta, a esperança que o herói tenha outro desfecho. O desfecho que ele merece. O desfecho que a humanidade, apesar de tudo, merece. Mas em Romero, por muitas revisões que façamos, não há abébias: para usar palavras do Carlos, a humanidade é mesmo, por vezes, um depósito de lixo amoral.
Saio dos seus filmes se não aterrorizado ou assustado, algo envergonhado até, com a minha espécie. É essa vergonha fonte possível de acção ou reacção? Acho que em muitos assuntos não podemos ser dóceis. E o tema da maneira como tratamos os idosos nas sociedades ditas civilizadas merece este tratamento de choque, à maneira do “tratamento Ludovico” de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971).
Abraços,
Luís Mendonça

Bom dia,
Ainda no seguimento das palavras do Luís, duas ideias que as suas reflexões me suscitaram agora já passados uns dias depois do visionamento do filme que também eu, em telefone com o Ricardo, mencionei muito freudianamente como The Punishment Park (1971). Aliás, é esse o jogo do filme, uma diversão que castiga, um castigo que diverte.
Mas, dizia, há algo intrigante do ponto de vista temporal em ver este filme de 73, hoje, quase cinquenta anos depois. E não é tanto pela aura do filme perdido ou póstumo, nessa romantização do après coup. Para mim, tem mais que ver com as estratégias de consciencialização, o método Ludovico, como bem observou o Luís, que funciona de forma algo contraditória. Vejo o filme como contemporâneo e dos-nossos-dias (isto além do tema actual e da descoberta recente da obra) sobretudo porque se inscreve no cinema-como-ferramenta-de transformação, o cinema como instrumento de perfuração das injustiças sociais. Nesse sentido, The Amusement Park é um filme que pertence a 2021. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixa de vir de outro tempo, um tempo onde Romero quis conciliar esse “political address” com uma dimensão criativa e performativa, onde um equilibra o outro. E, por isso, The Amusement Park é um filme que pertence muito mais a 1973 do que a 2021.
A segunda ideia tem que ver com aquilo que referi sobre a ideia de “massa” ou “multidão”. Romero trabalhou bastante, parece-me, essa oposição cinemática: como é que o indivíduo percepciona (e reage) diante da massa? Se o zombie é lento e desajeitado, aqui os adultos são irrequietos e agitados. Estão em modo de permanente update produtivo do seu feed mental que resulta, aos olhos do “velho herói”, numa mesma zombificação. O feed muda, mas no contexto de uma inércia geral. Embora com estratégias de percepção diferentes, Romero parece estar a declinar o mesmo problema: o indivíduo, diante da massa, recorta uma forma de viver em ruptura com o grupo, que aquele vê ora mais lento, ora mais rápido, mas sempre oco.
Era isto.
Abraços,
Carlos Natálio
