O festival DocLisboa arranca hoje, dia 21 de Outubro, para a sua 19.ª edição. Ao longo de 10 dias, este festival, mais do que um simples festival em torno de um género raro de se ver nas habituais salas de cinema, é sobretudo um compromisso político, tão manifesto na sua linha editorial, onde o género que aparentemente se relaciona mais com o real, deve ser por isso um objecto politicamente comprometido e atento. Este lema não é novo, assim como a sua determinação, no entanto é de salientar este aspecto quando pensamos no DocLisboa.

Nesta medida, as escolhas que irei sugerir, para estes 10 dias, não propõem somente ser um olhar sobre o cinema e a sua história, mas de igual modo um olhar sobre o mundo e o modo como determinados filmes e cineastas procuram uma singularidade sobre o mesmo.
Por isso, será inevitável que comece com duas sugestões que me são particularmente queridas: a primeira sugestão recai, acima de qualquer outra opção, sobre a retrospectiva consagrada à obra de Cecilia Mangini, e em segundo lugar, uma outra retrospectiva, não menos importante, ao cinema particular de Ulrike Ottinger. Numa época em que discutimos e reabilitamos o papel e o lugar da mulher na história do cinema, estas são duas cineastas maiores, que, sem necessitarem de qualquer muleta do género, são absolutamente incontornáveis. No caso de Mangini, arriscar-me-ia mesmo a dizer que, a par de Vittorio De Seta, é a maior documentarista de todos os tempos.
Infelizmente, a obra de Mangini, assim como de Ulrike Ottinger, é pouco conhecida em Portugal, e por isso, cabe-me assinalar esta ocasião como uma ocasião imperdível para ver filmes que certamente serão, na sua maioria, difíceis de voltar a encontrar no grande ecrã. Dos filmes de Mangini, gostaria de destacar Stendalì – Suonano Ancora (1960) e La Canta Delle Marane (1961), dois filmes que fará em colaboração com Pasolini, e que traduzem em pleno o conceito do cinema enquanto poesia. Um filme sobre a morte e outro sobre a vida, é assim que o cinema de Mangini se joga, através de uma vitalidade e de uma inteligência que olhou o mundo do trabalho (Brindisi 65, 1966), das mulheres (Esser Donne, 1965), dos esquecidos (Tommaso, 1965), das crianças (La Briglia sul Collo, 1974) ou da Itália ancestral (Divino Amore, 1961 ou La Passione del Grano, 1963), com o respeito de quem confere uma dignidade àqueles que filma que raramente encontramos no cinema.

Quanto a Ottinger, apesar de conhecer parcialmente a sua obra, é inevitável assinalar a passagem de Blidnis einer Trinkerin (1979), obra magna da cineasta e ainda o excêntrico Freak Orlando (1981) e o magnífico Dorian Gray im Spiegel der Boulevardpresse (1984), com a igualmente magnífica Delphine Seyrig. Ambas as retrospectivas irão decorrer na Cinemateca Portuguesa.
Quanto à Competição Internacional, a minha escolha prende-se sobretudo a razões de ordem geográfica. Quando os nomes ou os filmes em causa não me suscitam qualquer tipo de familiaridade, o meu critério recai sobre se o filme provém da Tailândia, da Roménia ou ainda da China, latitudes cinematograficamente relevantes e que habitualmente nos trazem belas supresas. Por esse motivo, deixo a sugestão de Morana Sati (Dance Macabre, 2021), proveniente da Tailândia, Zi Hua Xiang: 47 Gong Li Tong Hua (Self-Portrait: Fairy Tale in 47KM, 2021), originário da China, e Pentru mine tu esti Ceausescu (You Are Ceausescu to Me, 2021), vindo da Roménia.
Na secção Da Terra à Lua, no dia 23 de Outubro, irá realizar-se uma homenagem à Cinemateca Brasileira, esforço esse que, tal como a Cinemateca Portuguesa tem demonstrado, manifesta o seu apoio quanto à situação absolutamente precária vivida pela Cinemateca Brasileira, após um incêndio que destruiu parte do acervo. Esta secção conta com a curadoria de Sérgio Silva, ex-programador da Cinemateca Brasileira. Destaco ainda o mais recente filme do japonês Kazuo Hara, Minamata Mandala (2020), nome que certamente muitos deverão ter gravado na memória graças ao seu extraordinário filme, Yuki Yukite Shingun (The Emperor’s Naked Army Marches On, 1987).

Gostaria ainda de assinalar algumas sessões na secção Riscos. Em primeiro lugar, uma sessão de tributo a Luis Ospina, cineasta a quem o DocLisboa já dedicou uma retrospectiva em 2018. Nesta sessão de homenagem, poderemos ver o filme mais recente de Ospina, assim como a de outros dois cineastas colombianos. Três sessões dedicadas às mulheres egípcias no cinema, intitulada: Mulheres Egípcias no Cinema: Perspectivas de 1970 até hoje. Estas sessões irão ocorrer entre o dia 23 de Outubro e o dia 25 de Outubro, na sala de cinema do São Jorge. Uma sessão dedicada ao Mar no Cinema, graças ao recente restauro do filme fundamental de Leitão de Barros na história do documentário português: Nazaré, Praia de Pescadores (1929). E ainda uma última sessão, que irá pensar sobre os Lugares da Resistência no cinema, na qual eu destacaria a passagem de duas raridades, a curta-metragem de António de Macedo e a de Noronha da Costa.
Por fim, deixo, como nota final, uma referência ao filme de encerramento do DocLisboa deste ano, Re Granchio (2021) de Alessio Rigo de Righi e Matteo Zopis.