Creio que não poderia começar este texto sobre a última edição do Doclisboa sem mencionar a excepcionalidade de dois objectos cinematográficos que por lá passaram. E graças à sua excepcionalidade creio que a sua descoberta merece um texto de maior envergadura sobre os mesmos, até porque parte das minhas escolhas iniciais saíram um pouco goradas. Refiro-me em particular à competição internacional, onde o critério geográfico não foi condição suficiente para despertar o meu interesse, mesmo quando é de salutar ver um filme que vá além da linguagem canónica estabelecida entre o cinema americano e o cinema francês. Contudo, nesta competição, mesmo entre a manta de retalhos de Danse Macabre (2021) de Thunska Pansittivorakul e Phassarawin Kulsomboone o dispositivo gasto de You Are Ceausescu to Me (2021) de Sebastian Mihăilescu, sobressaiu Minamata Mandala (2021), o notável filme de Kazuo Hara, cineasta que à semelhança dos seus anteriores filmes, demonstra a persistência e a determinação de quem não se conforma com o silêncio (em muito semelhante ao cinema de Wang Bing).
Feito o mea culpa, devo ainda acrescentar que a ausência de Winter (2021) de Vadim Kostrov do meu texto de antevisão, se deve a um trailer ambíguo, sobre o qual, e sem o benefício da dúvida, me dei erradamente à inclinação de que seria somente uma réplica da fórmula Chantal Akerman. Houve ainda um outro factor, que em larga medida pesou nesta decisão: a filmografia de Kostrov. O cineasta de Winter, além deste cinema meditativo e de longos travellings [no qual creio que Summer (2021) também se inclua, podendo até ser a eventual outra parte do díptico], realizou 3 documentários sobre bandas de rock locais (mesmo reconhecendo as minhas limitações quanto ao género cinematográfico como musical, a discrepância entre estes modos de fazer cinema, aumentou as minhas reservas quanto à obra e quanto à potencialidade deste filme).
Uma última nota, antes de entrar em concreto nos dois filmes. A valorização da obra de Cecilia Mangini quanto a todos os outros acontecimentos cinematográficos. Não creio que seja justo para com Ulrike Ottinger esta secundarização, secundarização essa em parte graças ao desconhecimento que tinha da sua obra, como (e sobretudo), graças a uma narrativa sobre o novo cinema alemão em que Ulrike é periférica, quanto ao centro estabelecido entre Fassbinder e Schroeter (diga-se de passagem, que o nome Robert van Ackeren é outro que continua por trazer a esse lugar de destaque).
Cecilia Mangini é sem dúvida uma das maiores documentaristas de todos os tempos, a par de Vittorio De Seta
Não quero com isto retirar aquilo que disse no texto de antevisão. De facto Mangini é sem dúvida uma das maiores documentaristas de todos os tempos, a par de Vittorio De Seta. Porém, se a obra inicial de Cecilia Mangini é um marco para todos aqueles que acompanharam a retrospectiva, aqueles que descobriram o período posterior à segunda metade da década de 60, conhecerão uma outra cineasta. Mangini vai gradualmente perdendo o seu fulgor, ao deslocar das imagens para o texto a força revolucionária do filme. A potência de uma poética das imagens, dá lugar a um texto bastante ortodoxo, ao serviço de um discurso exacerbadamente panfletário – que me fez pensar sobre outros cineastas, sobretudo os soviéticos durante o flagelo estalinista, que inquinaram o seu cinema de modo a cumprir um programa “educacional” –, no qual aquilo que vimos é uma mera tradução daquilo que é dito. É certo que o formato reportagem televisiva acentua este aspecto, mas mesmo assim e se pensarmos na diferença que há entre as suas entrevistas em Comizi d’amore ’80 (episodio 1) (1983) e as de Pasolini, percebemos a distância considerável que separa ambos os filmes. No de Pasolini sentimos uma liberdade imensa: são os entrevistados que constroem o filme – encontramos respostas de uma enorme ousadia e inteligência, tal como no célebre momento em que o revisor do comboio, quando questionado sobre “quem faz pior sexo, se os de esquerda, se os de direita?”, este responde que são os de “centro”; ao contrário do filme de Mangini, em que o discurso já está todo ele montado e estruturado e as situações e entrevistas, correspondem unicamente ao programa traçado. E se esta liberdade inicial dá lugar a uma posterior rigidez, os recentes documentários realizados a par com Paolo Pisanelli, são o terceiro vértice na obra de Mangini. São objectos académicos e sem interesse, além das imagens que dão a ver, captadas por uma Mangini de um outro tempo, olhar e forma de fazer cinema.
Concluída esta já longa introdução, cabe-me justificar o porquê de destacar dois filmes e sobretudo tornar visível aquilo que os une. Se inicialmente podemos considerar Winter (2021) de Vadim Kostrov e Countdown (1990) de Ulrike Ottinger dois filmes aparentemente distantes, há algo que os une intimamente. É certo que quem pensa sobre cinema, constrói o próprio axioma cinematográfico, esse modo preestabelecido que nos permite olhar e pensar o cinema, levando a que certos filmes e cineastas distantes por vezes estabeleçam ligações. O meu axioma é somente este: a importância do olhar sobre os acontecimentos. Olhar o acontecimento é uma minuciosa tarefa de resgatá-lo da sua indiferença, é o acto que permite separar o indistinguível do distinguível e moldá-lo segundo a particularidade de um olhar. Para esta operação é necessário ainda um outro elemento, o tempo do acontecimento. O acontecimento apenas ganha forma se o tempo dado ao acontecimento for o certo, sem que haja tempo em falta ou excesso. Ambas as situações condicionam a potência do acontecimento, porque ao truncar o acontecimento, quer porque este foi captado antes de tempo, quer porque este foi distendido para além da sua força, descaracteriza-o e leva a que o mesmo se torne novamente parte da substância homogénea que constituí o presente da acção. Cineastas como Akerman ou Straub, mas também Melville ou Bresson, foram exímios nesta difícil operação que é captar a plenitude do acontecimento. São cineastas, que à semelhança de Bach ou Proust, moldaram a substância do tempo de modo que o simples gesto de comer uma madalena, de um tropeçar nas escadas ou na repetição de um acorde, seja uma outra coisa, que revele uma outra potência, que convoque um outro lugar, um outro tempo, uma outra sensação.
O meu axioma é somente este: a importância do olhar sobre os acontecimentos. Olhar o acontecimento é uma minuciosa tarefa de resgatá-lo da sua indiferença, é o acto que permite separar o indistinguível do distinguível e moldá-lo segundo a particularidade de um olhar.
Entre todos os nomes aqui mencionados, há uma consciência aguda do tempo, uma capacidade milimétrica de dividir aquilo que é o acontecimento do resto. Esse “resto” é a vida acumulada e esquecida, é tudo aquilo que está fora da arte, da memória. É certo que este processo não é um processo linear, porque tanto a memória, como a arte, não exclui o acaso, o acontecimento involuntário, mas mesmo esse acaso, esse acontecimento involuntário, apenas ganha expressão quando há uma potência diferenciadora (que é capaz de quebrar a cadência das imagens). E é sobre esta operação que Winter (2021) e Countdown (1990) se reúnem, sobre essa complexidade de arrancar imagens a um presente uniforme. Tanto Kostrov como Ottinger, procuram olhar a sua realidade (a realidade provincial russa e a realidade da Berlim pós queda do muro) e encontrar matéria para construir um filme.
Winter (2021) segue um jovem rapaz graffiter por entre uma paisagem de neve e ruínas, de uma zona outrora industrial, onde os edifícios celebram em simultâneo o passado soviético do progresso e o futuro sans espoir de um país que ficou por cumprir. É sobre esta malha que o graffiter deixa a sua presença, quer pelo tag (o marco que melhor traduz a presença de um graffiter, é a sua assinatura pessoal e intransmissível), quer pela pintura mural que realiza. O momento da pintura mural é particularmente extraordinário porque, quase sem nos apercebermos, Kostrov vai diluindo discretamente o tempo real da acção, tempo esse que só tomamos consciência do seu acelerar ao observarmos a realização da pintura mural ou através da luminosidade do céu. O filme amplia os pequenos gestos do quotidiano, constrói o espaço onde o graffiter se move, resgatando assim a acção da sua mecanicidade, a paisagem da sua monotonia. Objectos como este, fazem transcender a dimensão do representado e é neste diferimento entre o sujeito real e o sujeito representado do filme, que o filme supera a trivialidade dos gestos para assim os reconverter em gestos cinematográfico.
Inicialmente, mencionei o nome de Akerman graças à tipologia do plano usado, contudo fi-lo unicamente por cliché, porque o filme de Kostrov pertence a uma outra constelação de autores e filmes. Talvez o parente mais próximo de Winter (2021) seja La Vallée Close (1995) de Jean-Claude Rousseau, um filme absolutamente excepcional e um dos maiores e mais belos momentos cinematográficos a que assisti em toda a minha vida (de louvar a Cinemateca Portuguesa ao dedicar-lhe uma discreta retrospectiva na Sala Luís de Pina há alguns anos atrás). Tal como Rousseau transforma a paisagem veranil daquelas montanhas, Kostrov transforma a paisagem invernosa russa, desterritorializando o lugar para o (re)territorilizar através do cinema (a cartografia que o cinema instaura, nunca corresponde à cartografia real).
A construção da cartografia em Winter (2021) começa e termina com dois planos singulares, planos esses que possibilitam a entrada e a posterior disrupção desse lugar. O primeiro plano é constituído somente pela silhueta do graffiter e o ecrã do computador, tudo o resto está envolto na escuridão da noite, tornando por isso impossível ao espectador descodificar o que está para além da janela. É sempre assim que se entra num território novo (a história de Alice no país das maravilhas é particularmente inteligente neste ponto, é preciso sempre atravessar a toca escura antes de acedermos ao outro lugar), sem coordenadas. Tudo o que se segue é construção de câmara, através de travellings consecutivos que procuram cartografar a neve, os gestos do graffiter, as ruínas ou a floresta que atravessa. E é particularmente interessante o modo como Kostrov constrói o plano, porque o grafitter surge sempre como o seu centro gravitacional (mesmo nos raros planos em que ele atravessa a multidão, há sempre uma aura que o afasta e o singulariza da multidão).
Depois de cartografada as paisagens cobertas de neve (o território por excelência da inscrição, a página sempre em branco), regressamos novamente à noite, primeiro a uma fogueira e posteriormente acabamos no quarto (o modo como Kostrov aqui combina os planos é absolutamente notável, são sucessivos planos que se encaixam em outros planos). Um verdadeiro jogo de espelhos, algo sobre o qual Kostrov está particularmente ciente, na medida em que há um espelho no quarto do grafitter que só a custo percebemos ser um espelho e não um outro personagem). Por fim, um zoom que termina numa misteriosa luz (a única marca exterior de vida além do quarto) e somos lançados para um plano do céu azul atravessado por um avião. É este plano que nos devolve ao real, é a cesura entre tudo aquilo que está para trás (o filme) e a nossa presente realidade.
Quanto ao filme de Ottinger, há um processo análogo. Não só, Ottinger procede ao mapeamento do território (da nova Berlim que emergia após o derrube do muro), como procura resgatar todos os gestos desse tempo. Confesso que enquanto assistia a Countdown (1990) diversas pensei em D’Est (Do Leste, 1993) de Chantal Akerman, julgando mesmo que este filme era um derivado daquele. Contudo (e graças ao reparo de um amigo), o filme de Ottinger é anterior (!) ao filme de Akerman em três anos. Sem querer retirar força ao filme de Akerman (e a força é imensa), deve ser feita a justiça a Ottinger pelo modo inaugural como esta filmou Berlim (e que três mais tarde Akerman, de forma idêntica, filmará o colapso do bloco oriental).
Quer à escala micro (a acção quotidiana do graffiter), quer à escala macro (o desaparecimento de duas cidades, de duas culturas profundamente diferentes), Ottinger, tal como Kostrov, procuram agarrar o lado irrepetível do acontecimento. Sobretudo no filme de Ottinger sentimos essa urgência em filmar o irrepetível desse momento histórico, porque assim que o segundo derrube (o mental) acontecer entre os berlinenses de este e leste, as fronteiras de Berlim diluir-se-ão para sempre. Talvez por isso, e ciente das dinâmicas da cidade, Ottinger percorra freneticamente Berlim e a sua periferia de modo a constituir uma cartografia completa desse território que só ela poderia salvar. E é particularmente inteligente o modo como Ottinger articula o filme às citações de Walter Benjamin, extraídas do livro Imagens de Pensamento, porque tal como Ottinger, também Benjamin quis resgatar (através da escrita) a Berlim que desaparecia (a cidade de Berlim pré nazi).
Quer à escala micro (a acção quotidiana do graffiter), quer à escala macro (o desaparecimento de duas cidades, de duas culturas profundamente diferentes), Ottinger, tal como Kostrov, procuram agarrar o lado irrepetível do acontecimento.
Ottinger filma inumeráveis cenas do mercado (mercados povoados de cidadãos de Leste, os limites da franja social que tentava sobreviver diariamente numa cidade imersa num pacífico caos), assim como Akerman vai filmar as filas para os bens alimentares. São os momentos de maior tensão em ambos os filmes, porque é aí que os corpos reclamam pelo sustento, pelo direito à vida e em que se misturam e se mostram. E Ottinger vai mais longe, ao filmar a primeira parada LGBT (na parte leste, é claro). Nesse raro momento histórico, encontramos o espírito sempre militante de Ottinger, de uma homossexualidade que em nada é semelhante à homossexualidade de hoje (esta homossexualidade era transgressora, desviante e sobretudo galvanizadora frente à norma estabelecida).
Gostaria de deixar uma última nota sobre os planos de Ottinger filmados ao longo dos canais em Berlim, imagens certamente captadas entre a Primavera e o Verão. O muro de Berlim cai poucos meses antes, a 9 de Novembro de 1989, factor que apazigua a violência surda que atravessa a cidade e as suas gentes. É certo que sentimos a tensão, mas tal como a neve de Kostrov, o elemento meteorológico de Countdown (1990) transfigura a cidade. Um elemento profundamente poético nesses canais e no modo como Ulrike percorre a cidade, um jeito em muito semelhante à lição de Benjamin sobre a importância de «perdemo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta».