Que a obra de Harold Becker como um todo precisa de ser reavaliada, sobre isso não tenho dúvidas e, aliás, já havia proposto coisa parecida na minha velhinha crónica Civic TV, a propósito da passagem no pequeno ecrã de City Hall (A Sombra da Corrupção, 1996). No entanto, The Black Marble (1980) é, porventura, um dos tesouros mais brilhantes escondidos nessa obra, ora conhecida, mas não reconhecida, ora reconhecida por alguns, mas não devidamente conhecida pelo chamado grande público. Só a terceira longa-metragem da sua filmografia, este aparente buddy cop movie não vive da sua história policial, conscientemente “ridícula” (como é apelidada bem “de dentro” da história e, diga-se, muito sensatamente), nem tão-pouco de momentos espampanantes, cheios de efeitos especiais ou tirando partido de revelações ribombantes… Pelo contrário, alimenta-se, sim e acima de tudo, do carisma particular das suas personagens e do modo como estas se relacionam entre si, mostrando um soft side perfeitamente imprevisível, quase burlesco. Esta ideia de que a comicidade nasce dos sentimentos – ou vai ao encontro do coração – é talvez parte da equação que deixou o público e (parte de) a crítica um pouco confusos com o resultado aquando da sua estreia, mas, pelo menos hoje, parece-me ser esse o segredo do sucesso deste charmoso “filme romântico”. É, no fundo, romântico, porque, afinal, de buddy cop movie tem pouco, e, afinal, de thriller tem ainda menos… Então, sendo assim, o que é isto, no fundo, no fundo? Vou tentar explicar.
Pela parte que me toca, consigo localizar o prazer suscitado pela “descoberta” deste filme na ligação que a minha cabeça imediatamente fez com um personal favourite, também realizado por Harold Becker: Sea of Love (Perigosa Sedução, 1989). Os dois são cop movies e ambos se alimentam, até ao tutano, da química do casal romântico: Al Pacino e Ellen Barkin, no caso de Sea of Love, e Robert Foxworth e Paula Prentiss, no caso deste The Black Marble. Só ganha este segundo na comparação se atentarmos na improbabilidade da junção e na maneira como Becker filma o jogo de sedução: de forma quase invisível, subterrânea, ao mesmo tempo que vamos percebendo que este não é bem o típico buddy cop movie e que há uma história bem mais interessante “a nascer”, juntando os dois buddies. Ele é um polícia de raízes russas com tendência para beber de mais e de coração mole (frondoso como o seu bigode), um verdadeiro “gentle man”, como acaba por o descrever ela, uma mulher vigorosa que tem uma espécie de entrada de leão e saída de sendeiro na função de “sargenta” ao lado desse homem parecido com um louco e, de facto, um alcoólatra enfrentando uma crise de meia-idade. Pegando no título do filme, diria que Becker joga aos berlindes aqui, desde logo, do ponto de vista narrativo: ao mesmo tempo que a tal química se torna o objecto de fascínio número um do filme, outra história, envolvendo o rapto de uma cadela terrier premiada em concursos de beleza para cães, vai rondando e ameaçando tornar a comédia romântica num típico filme detectivesco, de caça ao criminoso. Esta geringonça narrativa também é levada a cabo por Becker no citado Sea of Love, em que a caça a um assassino vai sendo abafada pela história de amor, bem mais tórrida e nocturna do que este amor que junta Foxworth e Prentiss.
Prentiss, importa lembrar, foi Abigail Page em Man’s Favorite Sport? (O Desporto Favorito dos Homens, 1964) de Howard Hawks. A “importação” hawskiana não é uma mera curiosidade, já que Becker filma esta história sempre on the move, tirando partido de um magnífico formato largo e desenhado planos que englobam a acção de uma penada apenas. Enfim, não é a câmara mas os actores (e os corpos que eles “animam”) que se mexem, muito e desajeitadamente, produzindo uma cinética burlesca, diria, pós-hawksiana. Prentiss é um verdadeiro achado, não se imaginando simultaneamente melhor e pior companhia para o desgraçado tenente a braços com traumas antigos, uma relação passada desastrosa e um horrível hábito (muito russo) de resolver tudo com uns quantos copos de Vodka (sempre demasiados, na realidade). A verdade é que os dois “dançam” maravilhosamente bem aqui – a história da cadela raptada vai transferindo para esta história de encontro amoroso a possibilidade de uma afectuosa adopção sentimental. De facto, apetece dizer que se trata tanto da história de dois adultos, polícias de profissão – os dois à procura do amor, não se sabe bem aonde -, que se encontram e apaixonam, quanto se trata da história de um homem e de uma mulher que – usando um termo mais animalesco – se domesticam mutuamente, por via de uma irresistível atracção, quero sublinhar, menos sexual do que afectiva (ou sexual e afectiva em igual dose, para ser mais preciso, isto se precisamos da precisão para alguma coisa neste caso).
Não é tanto a dupla de protagonistas a tomar conta das operações, mas a graça do amor que une estes buddies a fazer isso. É ela que faz Becker ziguezaguear, mas também é por ela que o filme aterra, enfim, no calor de um gentil e ternurento namoro.
As metáforas animais não se ficam por aqui – os flashes do trauma da personagem de Foxworth (envolvendo um coelho) parecem, numa primeira instância, ter algo que ver com o tal sequestro da pobre terrier (the bitch), ainda que mais tarde percebamos não ser bem assim. As histórias correm livremente, cruzando-se, implicando-se, ainda que a relação amorosa acabe por abafar todas as outras possibilidades narrativas. A interpretar o sequestrador da pobre cadela está Harry Dean Stanton, encarnando uma personagem igualmente temperamental, inconstante e, pois claro, vulnerável. Na apresentação ao filme, num Blu-ray editado há pouco tempo em França, Jean-Baptiste Thoret diz algo que retive: este é um filme que, a dado momento, arranca e se torna imparável, progredindo a uma velocidade algo incerta – ainda assim, se já estivermos in, iremos aceitar, com um sorriso nos lábios, o que esta “maluqueira” nos for oferecendo. Tudo flui despreocupadamente, livre de quaisquer amarras de género que são ditadas pelo enredo “que espreita” e se intromete, aqui e ali (a história detectivesca, os clichés do buddy cop movie, etc.). É o tempo do romance que vai tomando conta de tudo, passando o resto – a investigação, digamos assim, “canina” e a “vida de cão” na polícia e todo o discurso “life is a bitch from hell”… – para segundo ou até terceiro planos.
Era Truffaut quem dizia que os filmes ou reflectem o prazer ou a angústia de se fazer cinema. Ora, The Black Marble é um filme pleno de gaieté e, neste particular, as pequenas participações de Christopher Lloyd e, acima de tudo, de James Woods são talvez indiciadoras de que tudo isto não passou, no fundo, no fundo, de uma grande festa entre amigos. Woods terá aprendido de propósito a tocar violino para as duas pequenas cenas em que entra – o actor já havia entrado no brutal The Onion Field (Crime em Campo de Cebolas, 1979), obra de estreia de Becker, e teria uma das mais emblemáticas interpretações da sua carreira no também subestimado The Boost (Ambição de Glória, 1988), do mesmo realizador.
Há qualquer coisa neste filme que lembra, para fazermos a conversão ao cinema mais contemporâneo, Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) de Paul Thomas Anderson ou, antes disso, que vai beber ao espírito mais airoso da Nova Hollywood, por exemplo de um Hal Ashby. O lado “todo-o-terreno”, em matéria de flirt entre géneros narrativos (o cómico e o thriller policial), é conseguido, pois obedece a uma espécie de vontade emancipatória das personagens. É um pouco isso: em The Black Marble, dá-se o caso, raro na história do cinema, de a dupla de protagonistas tomar completamente as rédeas dos acontecimentos. Na realidade, não é tanto a dupla a tomar conta das operações, mas a graça do amor que une estes buddies a fazer isso. É ela que faz Becker ziguezaguear, mas também é por ela que o filme aterra, enfim, no calor de um gentil e ternurento namoro. E é fun e refrescantemente solto, se não livre, para um “Hollywood picture”. Bora?