Era Jean Renoir quem dizia que “Cada realizador só faz um filme na sua vida, e depois arranja diferentes maneiras de o refazer.” Se assim é, então “o” filme de Paul Schrader é sobre um homem solitário, obsessivo e alienado que, ao deixar o espaço contraditório de dor e conforto em que se isola, parte rumo a uma jornada infernal de impulsos auto-destrutivos onde, após um acto catártico de violência, poderá alcançar a redenção. Apesar de nunca apresentar esta definição tão específica, creio que é este tipo de história do seu cinema que Schrader designa como “um homem num quarto”, aquele de que são feitos (com maiores ou menores variações) Taxi Driver (1976), American Gigolo (1980), Light Sleeper (Perigo Incerto, 1992), The Walker (O Acompanhante, 2007), First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017)… E, agora, também The Card Counter (The Card Counter: O Jogador, 2021).
Como é o quarto de William Tell (Oscar Isaac, enorme), o protagonista do último Schrader? Simples, austero, quase vazio. É a prisão metafórica branca descendente da cela real cinza onde esteve encarcerado durante 8 anos e meio por ser um dos torturadores de Abu Ghraib. Se Tell não responsabiliza os seus superiores hierárquicos que escaparam incólumes, é porque não acredita na “banalidade do mal”, só no “mal”, isto é, na prática voluntária do horror desumano. Mas Tell também acredita na palavra “expiação”. Numa cena na cadeia, rouba provocadoramente parte do almoço a um condenado robusto. Este responde-lhe com um murro vigoroso, que Tell acolhe sem resistências. Volta a provocar e é de novo agredido. É uma cena económica que demonstra como Tell implora pela sua penitência, desesperado por uma punição suficientemente grande para o absolver dos pecados passados e apaziguar a aflição infligida pela sua consciência. Eis um homem que viveu pela espada e não teve a sorte de morrer por ela, escolhendo enfrentar as consequências psicológicas do sangue nas suas mãos por um período de tempo interminável. Não é, portanto, só um quarto o espaço onde vive, é também um purgatório auto-imposto.
É este limbo existencial, feito de culpa e auto-martirização, que o força a adoptar um estilo de vida ascético e espartano, uma não-existência passada diariamente em casinos, não por compulsão ou perspectivas de enriquecimento, mas apenas porque neles o tempo passa mais depressa. Nessa rotina vivida entre a solidão acompanhada das mesas de poker e a reclusão rigorosa dos quartos de motéis que despersonaliza com lençóis alvos, procura extensões espaciais para a sua masmorra mental, aquela a que se refere a primeira frase do filme inteiro: “Nunca me tinha imaginado apto para uma vida de encarceramento”.
Schrader é um cineasta adulto que faz filmes adultos para uma audiência adulta. Como na Nova Hollywood (…), pretende confrontar o espectador com as inseguranças e ansiedades políticas, sociais e culturais do seu país, entrelaçando-as com histórias individuais do seu complexo universo moral, espiritual e psicológico.
Mas, neste quarto, estão também presentes os sábios. Quando conhecemos Tell, ele tem sobre o peito uma cópia das Meditações de Marco Aurélio, um dos livros seminais da escola filosófica estóica, onde Tell tentará obter a consolação possível: uma conduta sóbria, prudente e comedida. Com este guia espiritual, Tell aprendeu a libertar-se de todas as paixões, desejos e vícios, a apostar modestamente porque modestos são os seus objectivos, e a reagir com indiferença a todos os acontecimentos externos. Tornou-se, assim, um moderado no jogo e na vida, obedecendo a uma sabedoria secular onde a razão aniquila qualquer excesso exterior ao seu estrito código monástico. Talvez seja por isso que o seu perfil disciplinado o tenha levado ao jogo. Afinal, não haverá similaridades entre um estóico e um bom profissional de poker? Ambos devem mostrar calma e temperança, não expor qualquer espécie de vulnerabilidade, compreender o que está e não está ao alcance das capacidades pessoais, e, acima de tudo, agir de maneira lógica e ponderada, não se deixando trair pelas emoções.
Mas Tell, como denuncia a tatuagem que acarreta às costas, espera ser colocado nas mãos da Providência e tocado pela Graça. Como tantos protagonistas schraderianos, é um homem à espera de ser redimido. Julga encontrar essa janela para a salvação quando conhece o filho de um ex-colega algoz, cujas sequelas traumáticas conduziram o antigo soldado ao suicídio, despoletando no filho a fome insaciável de vingança. Daí que Tell pretenda demover este rapaz das suas intenções aniquiladoras, pois sabe que um plano radicalmente destrutivo, mesmo que delineado por motivos de justiça poética, só levará o seu urdidor a entrar num mundo negro de contrição corrosiva, aquele onde Tell está cativo. A alternativa que propõe é, por isso, outra: reencaminhar o rapaz para a vida normal de que se desviou e, deste modo, poder, finalmente, perdoar-se a si próprio. É por isso que, julgando a sua missão purificadora prestes a ser cumprida, dirá a Cirk aquela frase importantíssima: “Já cumpri o meu tempo.”
Ou assim ele pensa. Após uma dramática viragem narrativa, Tell olha directamente para a câmara e para os espelhos da casa-de-banho onde se encontra. “Os melhores jogadores conseguem olhar para as almas uns dos outros”, disse ele a dada altura. Neste momento, Tell está a olhar profundamente para a sua, permitindo a identidade reprimida de torturador e assassino vir de novo ao de cima, removendo a máscara identitária que até ali carregava nesse poderoso solilóquio cinematográfico mudo, assumindo, por fim, a impossibilidade total de procurar uma vida reabilitada após a prática de crimes irremissíveis.
Schrader é um cineasta adulto que faz filmes adultos para uma audiência adulta. Como na Nova Hollywood onde foi uma das figuras cimeiras, pretende confrontar o espectador com as inseguranças e ansiedades políticas, sociais e culturais do seu país, entrelaçando-as com histórias individuais do seu complexo universo moral, espiritual e psicológico. Neste caso, com a guerra do Iraque e o calvário de William Tell, lança as seguintes questões: quais as consequências, no presente, de não ter ocorrido uma reintegração pós-guerra completa dos militares americanos? Qual é o dano psíquico provocado nos soldados pelas decisões políticas do conflito iraquiano? Qual é o trauma silencioso que o poder governamental criou na própria nação? E qual é a maneira de expurgá-lo inteiramente (se possível)? Schrader, não sendo um pregador, não está interessado em propiciar respostas, confiando na audiência para chegar até elas.
“Só há um modo de filmar as pessoas quando queremos saber o que está a acontecer dentro delas: perto e de frente.”, dizia Robert Bresson. O realizador americano parece ter sabido seguir a máxima do mestre francês, já que cada plano fechado sobre o rosto inexpressivo e olhar misterioso de Tell deixa adivinhar um tormento agudo a efervescer lentamente. Mas não é discutir tudo sobre a mise en scène precisa do cineasta. A visão monocular do mundo que Schrader tão firmemente se preocupa em transmitir fá-lo dar uma atenção extrema ao uso da profundidade de campo nos planos gerais e de conjunto, com a personagem e ambiente igualmente nítidos, transmitindo a solidão sentida pela personagem no meio de todos os adereços, máquinas, equipamentos, jogadores e trabalhadores dos casinos, despojados totalmente do glamour, entusiasmo e sedução a que o cinema nos habituou. E há também espaço para a experimentação, como nos sonhos e flashbacks expressionistas decorridos em Abu Ghraib, filmados com uma abertura de lente tão grande que o conceito “olho de peixe” passa a ser renovado para “peixe de olho”, uma intrigante expansão do vocabulário cinematográfico que traduz, vertiginosamente, a visão demencial das memórias que o protagonista guarda do passado deletério.
O final, onde está, uma vez mais, corporalizada essa ideia bressoniana que tanto apaixona Schrader: a da chegada de um pouco de liberdade atrás das grades por um pequeno gesto de amor.
Toda esta frieza estética e narrativa poderá sugerir uma ligação embrionária com o seu anterior First Reformed. No entanto, o antecessor espiritual de The Card Counter aparenta ser o mais reservado e humanista Light Sleeper, um dos seus trabalhos que Schrader mais gosta e o seu mais pessoal. Daí que não se estranhem os vários elementos em comum: o protagonista preso ao passado, a agente que lhe poderá trazer um pouco de paz e compreensão (Susan Saradon em Sleeper, Tiffany Haddish em Counter), e a opção formal de ter 3 vozes no filme relacionadas com o seu anti-herói: 1) a voz dos diálogos; 2) a voz do diário (o confessionário schraderiano por excelência); 3) a voz das canções da banda sonora não-diegética (compostas por Michael Been em Sleeper, pelo seu filho, Robert Levon Been, em Counter), as quais ilustram o estado interior e transformações do protagonista. (Mais uma ligação curiosa: as frases tatuadas nas costas de Tell são dois versos da canção World’s on Fire de… exacto, Light Sleeper.)
E há que mencionar a eficácia, a intensidade, a manifesta habilidade no uso do fora-de-campo no clímax, onde, como ocorre recorrentemente no cinema de Schrader, o protagonista sai do seu quarto para enfrentar suicidariamente o mal que sente precisar de corrigir no mundo. Sem querer revelar demasiado, perguntaram uma vez a Fritz Lang o porquê de não ter mostrado o que acontecia às crianças em M (Matou, 1931). Respondeu, “Porque, desta forma, faço o espectador meu cúmplice. Cada um imagina o pior que aconteceu àquelas crianças e sente um arrepio pela coluna abaixo, algo que não aconteceria se me tivesse limitado a uma possibilidade. Ao sugerir algo, consigo uma impressão maior, um envolvimento maior do que se o mostrasse.” Digamos, simplesmente, que cumplicidade e imaginação é o que Schrader mais nos pede nesse momento de grande cinema sugestivo.
Resta referir o final, onde está, uma vez mais, corporalizada essa ideia bressoniana que tanto apaixona o cineasta: a da chegada de um pouco de liberdade atrás das grades por um pequeno gesto de amor. Sim, é mais uma citação a Pickpocket (O Carteirista, 1959) e um dos momentos mais belos na obra do realizador, onde olhares, posturas, uma canção e duas mãos que lentamente se aproximam são capazes de dizer tudo, explicitando algo que tanto tardou a chegar a Tell. Talvez não a redenção, talvez não o absolvimento, talvez não a Graça, mas, pelo menos, uma certeza: a de que já não se encontra sozinho no seu quarto. Ao fim e ao cabo, não há consolo mais importante para os homens de Paul Schrader.