Luís Mendonça e Carlos Natálio contam o princípio, o meio e o fim da sua relação com Jean-Luc Godard (1930-2022), mas não exactamente nessa ordem. Na realidade, alternamos, produzimos jump-cuts e partimos a história em pedaços. Não quisemos começar pela nossa “primeira vez”, à mercê do choque godardiano, preferimos, antes, destacar a assombrosa última vez em que “estivemos” com ele. Isto se de facto alguma vez o abandonámos, se de facto alguma vez ele nos abandonará. Preenchemos, deste modo, o ecrã em branco dessa ausência-presença com fragmentos alternados e desordenados de um livro sem destino composto de imagens e memórias, e escrito a duas mãos através da Internet, quer dizer, entre o aqui e o alhures – hélas pour nous!

1. Aconteceu esta coisa, para mim, assombrosa de ter estado a assistir, na noite em que Godard morreu, a uma conversa de quase uma hora (dividida em duas partes) de Jean-Luc Godard com Dick Cavett para a televisão americana, aquando da promoção do seu mais recente sopro, Sauve qui peut (la vie) (Salve-se Quem Puder, 1980). Ao contrário de outras entrevistas conhecidas de Godard, achei-o particularmente descontraído e positivo, expressando-se num inglês fluído (lembro-me da sua dificuldade com a língua de Shakespeare na algo embaraçosa conversa com Woody Allen, por exemplo). Retive o ponto da conversa em que defende a responsabilidade do cineasta face ao seu tema, bem como a sua posição de crítico – “ainda o sou”, adverte a dado momento, de maneira discreta mas significativa – em toda a sua história no cinema. Acho que ninguém levou mais longe, ou mais fundo, a ideia um dia avançada pelo filósofo francês Alain de que o movimento da história se faz, simultaneamente, num permanente continuar e começar de tudo. Godard “explica”, sem arrogância, a sua visão do cinema, nomeadamente do cinema americano, elogiando o “cineasta total” Jerry Lewis – diz que este é verdadeiramente mais um pintor do que outra coisa qualquer (foi Marie-Claire Ropars-Wuilleumier quem caracterizou o próprio Godard como um “pintor de letras”), mesmo que (ao contrário de Godard?) não esteja ciente disso – e, acima de tudo, fala da maneira como concebe a mise en scène – mais uma arte da distância, da exploração do espaço entre as personagens, do que propriamente uma estratégia de “colagem” a uma realidade dada ou encontrada, pois isso é, afinal, o que a publicidade faz, suprimindo a nossa distância em relação às coisas, dessrealizando-as e, por isso, precisa de as nomear.

A propósito de Sauve qui peut (la vie), e bem guiado por Dick Cavett, que me parece ter estado à altura do acontecimento, Godard protagoniza um momento delicioso. Face a uma das últimas cenas em slow motion do filme – o ataque algo “violento” do seu alter ego, interpretado por Jacques Dutronc, à mulher com quem mantém uma relação amorosa bastante atribulada, esta interpretada por Nathalie Baye -, diz que talvez não tenha resultado bem, porque devia tê-la filmado num outro ângulo e que, por isso, ficou algo estranha sob o efeito do ralenti. Cavett sorri e elogia a capacidade de Godard de produzir uma auto-crítica tão honesta. Penso ser nesta altura que são suscitados dois apontamentos que considero magníficos e espero estar a recordar-me correctamente deles: o primeiro é a forma como Godard interpreta essa sequência, justificando o uso do slow motion no seu filme como uma forma de, finalmente, vermos uma espécie de trabalho oculto do real contido no gesto (o que é, para mim, a instância de um novo Marey, quer dizer, de um Marey na era do vídeo), em que, nesse caso, o ataque de um homem contra uma mulher tem ou contém, apesar de tudo, alguma forma de ternura (em que uma chapada, extremamente ralentizada, adquire a aparência de uma carícia) e ainda observa que Sauve qui peut (la vie) é o seu “segundo primeiro filme”, uma obra que marca uma espécie de renascimento, algo que me parece estar relacionado com essa descontracção geral aliada à postura crítica e auto-crítica de que nunca abdicou. Diz qualquer coisa como “Já não me angustio tanto”, quer dizer, temos aqui um cineasta que não tem de provar e não quer provar nada a ninguém, e que aceita, como diz, que uma vez ou outra lá acabará por fazer filmes que são shitty (algo que para um crítico, que Godard de facto foi, para os Cahiers du cinéma, é um facto da vida comum e facilmente verificável, ao qual poucos se safam, mesmo que muitos realizadores não entendam isso lá muito bem).
Achei bonito o facto de esta confissão cândida ter ficado registada na televisão, porque assinala exactamente aquilo que se tornou capital no seu trabalho: um comprometimento grande com uma liberdade que conquistou à custa de trabalho, de avanços e recuos, de uma forma assim e de outra forma assado, chamemos-lhe “Godard pop” e “Godard maoísta”. Agora, Godard, “jogando bem ou mal”, para citar o lema do Portugal Campeão Europeu do engenheiro Santos, vem a terreiro assumir-se pronto a começar algo, mas, desta feita, liberto de qualquer angústia, projectando-se num futuro que tem como única meta a construção não tanto de um cinema novo mas de um novo espectador. Godard não está ali para ensinar nada, nem tão-pouco para impor qualquer ideia de cinema – elogia os seus heróis americanos [não só Jerry Lewis como também Howard Hawks, havendo espaço ainda para a manifestação de apreço relativamente a Scorsese e para uma apreciação espinhosa, ainda que divertida, de Apocalypse Now (1979) de Coppola] mas não presta vassalagem a ninguém, nem mesmo a si mesmo (ao “mito Godard”). Apresenta-se pronto a encarar um novo período da sua vida.
É estranho assistir a este renascer comovente (o parto de uma fase da sua vida onde se contam inúmeros grandes filmes e outros menos conseguidos, talvez até “merdosos”), de um dos maiores génios do cinema. E ainda mais assombroso – comovente e perturbante – é eu ter assistido a este second coming de God(ard) na noite em que se despediu do mundo, porque, diz-se, estava farto e já nada nem ninguém o podia salvar. Farto de quê, finalmente? Do espectador que já não existe, que só acredita na realidade que lhe é esfregada na cara, sob a forma de infotainment? Cansado do cinema que perdeu o poder e relevância de outros tempos e passou a ser uma realidade de cinemateca ou de multiplexes ora sem gente, ora tomados por espectadores acríticos para quem os filmes são só mais um acto de consumo (do género “as pipocas são o produto principal, o filme corre para as dessalgar”)? Já não se pode começar nada? Nem mesmo continuar a história ou histórias que nos alimentam o sonho de um cinema vivo, sempiterno, que, para parafrasear a personagem de Jean-Pierre Melville em À bout de souffle (O Acossado, 1959), conquistou a imortalidade morrendo várias vezes? Quem se salva depois de Godard? Quem começa o quê, e para quê, depois da notícia da sua morte? Ocorre-me a célebre tirada de Godard – uma de várias frases assassinas que fizeram escola – em que este dizia aguardar o fim do cinema com optimismo: podemos ser optimistas enquanto aguardamos por um after life do cinema depois de Godard (d.G.)?

0. Não foi o primeiro encontro com Godard mas – muito mais importante – foi o primeiro grande choque – o grande “chilique” cinéfilo – que tive por causa de um filme seu. Recordo-me de ter visto À bout de souffle dentro do espírito estóico do cinéfilo que sabe que lhe assistem certas obrigações face ao cânone ou à história do cinema. E que só entrará no “clube da cinefilia” se tiver visto uns quantos desses chamados “títulos fundamentais”. A minha reacção ao filme foi de absoluto desconcerto: lembro-me de o achar rápido de mais quando devia ser mais lento e lento de mais quando devia ser mais rápido; que devia cuidar da imagem quando, na realidade, descuidava e vice-versa; e assim sucessivamente… Todo o filme parecia estar out of place, até à última célula. Ao mesmo tempo, não posso dizer que não tenha gostado; simplesmente não era uma questão de “gostar/não gostar”, mas de ser profundamente baralhado por um filme, de me sentir intrigado mais com a cabeça do que com o coração, logo, tratava-se de me sentir implicado mas ao mesmo tempo de permanecer à distância. Mais do que um filme, constituiu para mim uma experiência que considerava diferente ou nova – não posso dizer isto em relação a tantos outros filmes fundamentais que, uma vez vistos e apreciados, tornam o mero espectador num cinéfilo digno desse nome. Digo “experiência nova” e o filme era de 1959! Estava já nesta altura embriagado com o cinema de Truffaut, em que o arrebatamento acontecia sem quaisquer “mas”, em que raramente “ficava à porta” do filme, muito menos me sentia “baralhado”. Com Godard, tinha lugar um braço-de-ferro qualquer, era puxado por uma força que me derrotava e que lentamente fui percebendo tratar-se da manifestação de um cinema radicalmente livre, qual animal selvagem à solta no meu pobre imaginário (como os animais nos sets das comédias de Hawks).
É engraçado estar a pensar sobre isto, porque o filme em questão não era nenhum desses ditos “Godards difíceis” dos anos 80, 90 ou tão-pouco o Godard digital do século XXI, pelo contrário, tratava-se talvez da sua obra pop mais celebrada e “consensual”. Confesso que a versão americana de Jim McBride não me deixou à porta, revelando-se um objecto mais controlado e harmonioso aos meus olhos, e ainda um belo naco de pop art (fruto quiçá do espírito da música rock e da estética de banda desenhada). De qualquer modo, chego aqui para dizer que os meus Godards favoritos, aqueles de que gosto muitíssimo (mesmo que nem sempre goste propriamente, por não ser uma questão de mero gosto), não passam propriamente por aqui, mas por experiências ou reflexões que vieram depois de À bout de souffle, tais como Une femme est une femme (Uma Mulher é Uma Mulher, 1961), Vivre sa vie (Viver a sua Vida, 1962), Bande à part (Bando à Parte, 1964), Une femme mariée (A Mulher Casada, 1964), Masculin, féminin (Masculino Feminino, 1966), Numéro deux (Número Dois, 1975), Comment ça va (1976) e, depois, o monumento Histoire(s) du cinéma (História(s) do Cinema, 1989-1999) e ainda um favorito “muito cá de casa”, Scénario du film ‘Passion’ (1982). Não posso dizer que simplesmente amei e amo estes filmes, mas, mais importante, quero dizer que aprendi – e ainda hoje vou aprendendo – a amá-los também à custa de experiências como a que tive em À bout de souffle, o verdadeiro autor do meu primeiro choque godardiano.
O que é que eu retirei, afinal, desse choque? Desde logo, a lição de que o cinema, esse “robô intelectual”, para citar Epstein, também se cumpre na dificuldade e que, de facto, tantas vezes “a poesia se faz na dificuldade”, como escrevia Jean-Luc Nancy no seu Resistência da Poesia. Godard não é um realizador para se amar incondicionalmente ou pelo menos à maneira de um coup de foudre. A dado momento na minha vida, apercebi-me de que nenhum outro cineasta moldou tão decisivamente a minha maneira de pensar. Não um pensamento disciplinado, bem pelo contrário, instilou em mim a possibilidade de fuga ou uma maneira de pensar criticamente que me permitisse resistir ao congelamento de categorias históricas e estéticas, quais verdades “encaixotadas”. Aprendi a desencaixotar as ideias-feitas, os lugares-comuns e a dar a volta ao problema ou à dificuldade maior que se coloca a qualquer cinéfilo tomado pelo afã do “próximo prato”: o tantas vezes infértil “gostar/não gostar”, que faz de nós meros provadores de filmes. É o cinema – o que ele pode face ao mundo – que nos deve comer, ao passo que os filmes são o seu mais eficaz engodo. Não quero elitizar o discurso em torno de Godard, mas também não posso negar o prazer gourmet em ser abalado pelo seu cinema. Oh, a falta que nos fazem – e nos vão fazer no futuro – esses “abananços” bem dados a esta nossa “certa tendência” para a estagnação!
– Luís Mendonça

Jean-Luc Godard deixou-nos. E agora? Como saberemos nós estar à altura do cinema, das imagens que nos deixou? Como seremos capazes de compreender a direcção do(s) Future(s) du Cinèma?
A propósito deste texto, é-me impossível responder. Não sei qual foi o primeiro encontro com Godard, porque todos os encontros me pareceram os primeiros. Saltitando nas ruas da Paris, debitando slogans maoistas, deformando a história do cinema (que era, é, a nova história, a do século XX e adiante), deformando a terceira dimensão, constatando o fim da linguagem, não tanto tempo assim depois de colorir as nádegas de Bardot, de profanar o Louvre, ou de prometer, no universo infindável de um café, escutar e ver à sua volta esse mundo seu semelhante, seu irmão.
Impossível ainda falar do último encontro com Godard, pois tudo no realizador francês é vaga que se renova. Godard não morreu. Decidiu meter-se num falso raccord. A partir daqui, é tempo de o irmos apanhando – a sua voz, os seus actores, as suas citações – ao longo do nosso caminho. E nesse trajecto iremos perceber, creio, como é contraditória a visão de que pertencia a um passado do cinema, que hora é de dar espaço ao presente. Não apenas porque não faz sentido falar de cinema sem Godard, mas sobretudo porque nele nunca nada foi passado, nunca nele nada parou no dogma, no antigamente. Godard era, é um cineasta jovem, acabado de começar a filmar, ansioso de profanar a máquina, de destruir as preces, de queimar as igrejas do assim-é-que-deve-ser.
O primeiro insert que Godard martelou no meu cérebro foi as linhas cantadas por Anna Karina, à beira de água: “Qu’est-ce que je peux faire? / J’sais pas quoi faire…” Nunca ninguém descreveu o meu tédio de jovem adolescente tão certeiramente. Mal sabia como ainda o haveria de desejar. Entretanto, surgiram as conversas de cama, os livros às dezenas, as citações que exasperavam pois iam mais rápido do que as podia processar, as lágrimas (também de Karina) em Vivre sa vie (Viver a Sua Vida, 1962), o fascínio pelo cinema americano, o gozo pop das marcas, a destruição do naturalismo, o Fritz Lang nas ruínas da Cinecittá num filme que acabava a começar (no silenzio) e que começava numa espécie de fim de filme, naquele gigantesco olho-câmara apontado ao nosso olhar. Um mundo de acordo com os nossos desejos, ou talvez nem tanto: Godard sabia que o cinema ia acabar em fragmentos, sabia que ia acabar como uma fábrica portátil, no espaço do individual e da partilha [como no universo de Numéro deux (Número Dois, 1975)]. No seu caso, um ensaísmo comprometido e profético, na incessante procura da imagem e da “contra-imagem”, do som e do “contra-som” na dialética da contradição auto-imposta. Como dizia Daney, existe na pedagogia godardiana uma capacidade de “falar sem olhar a quem”, de fazer compreender o que se passa sem dizer o que é.

O meu mais recente encontro com Godard foi através de um texto que escreveu em 52 sob o pseudónimo Hans Lucas, «Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica». Nele, contrariando a ideia de um certo realismo estático, escreve a dada altura: “Essa é a condição da dialética cinematográfica: é preciso viver ao invés de durar. De nada adianta matar seus sentimentos para viver de velhice. Se o surgimento da comédia americana é tão importante quanto o do cinema falado é porque ela restaurou a rapidez da acção e permitiu entregar-se ao pleno gozo do momento.”
Godard nunca deixou de acreditar nessa rugosidade do salto, numa visceralidade da escrita, nessa rapidez da ação. Compreende-se bem agora como Godard nunca poderia sair da vida. Está do seu lado. Não tanto como uma apologia da festa e da alegria, mas como uma forma de compreender as nuances do mundo, como forma de apanhar a palavra dita, o olhar, o silêncio, o que acontece enquanto está a acontecer. E é a partir daqui, sobre essa ruga da imagem que procura descentrar-se, ao mesmo tempo que já é parte da história do mundo, que temos de trabalhar. Au travail.
– Carlos Natálio