Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois (2022), de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, é, até certo ponto, a outra face iconoclasta de Fogo-Fátuo (2022). Neste último, por via da ficção e do trabalho sobre os géneros no cinema (a comédia, o musical, a farsa, o romance, o pastiche), o cinema de João Pedro Rodrigues chegava a uma espécie de exercício pop em jeito de copo misturador, totalmente construído de signos – quase destituídos de drama; sobram os corpos, as cores e os gestos. Onde Fica Esta Rua? chega ao mesmo ponto formalista (em versão frugal), mas para isso dá – literalmente – a volta ao quarteirão e entra pela porta das traseiras (salvo seja) da cinefilia.
Se a “aura” de Os Verdes Anos (1963) pairava já em filmes anteriores de Rodrigues, especialmente pela coincidência geográfica que o levou a filmar o mesmo bairro de Alvalade em filmes como Odete (2005) – aquele quarto subterrâneo com uma pequena janela ao nível da rua não deixa de ser uma citação direta ao filme de Paulo Rocha – O Fantasma (2000) e Manhã de Santo António (2012). No entanto, neste novo filme integralmente dedicado a essoutro, já não se trata tanto de citação, trata-se antes de referência (sem reverência, é importante dizê-lo) no verdadeiro sentido da palavra, porque tudo aqui é “referente”, tudo participa de uma relação indicial com Os Verdes Anos. Porém, vê-lo à luz do cinema português é não compreender a atitude. Há que vê-lo à luz do cinema de vanguarda, em particular o norte-americano e o Austríaco, para aqui encontrar um exemplo nacional daquilo a que P. Adams Sitney chamou de “filme estrutural”.
Refilmar um filme, agora expurgado da sua dimensão narrativa, é um modo de dar a ver o olhar do primeiro realizador, o olhar de Paulo Rocha. É uma forma de sublinhar o modo de filmar de outrem, de trazer para primeiro plano os próprios planos, os enquadramentos e os movimentos de câmara que se fizeram em 1963.
Segundo a definição (muito contestada, há que dizê-lo) do teórico do cinema experimental, o filme estrutural é aquele “para o qual a forma está predeterminada e simplificada, e é essa mesma forma que ressoa aquando do visionamento,” é um cinema que “insiste na sua forma, ficando o conteúdo, por mínimo que seja, subsidiário da estrutura.” Não me recordo, no cinema português (com exceção de alguns títulos dos ditos filmes de artista – os artesanais filmes de Ângelo de Sousa em 8mm, o cinema direto de António Palolo – e de alguns nomes contemporâneos que vêm trabalhando nesta área, como Susana de Sousa Dias, Alexandre Alagôa e, em certa medida, Catarina Botelho), doutro filme onde esta ideia de “forma predefinida” esteja tão patente e de jeito tão explícito. Isto porque, há que frisá-lo, num primeiro impacto Onde Fica Esta Rua? é um remake, plano por plano (ao estilo do Psico de Gus Van Sant), de Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, só que rodado em 2021 durante a pandemia e sem recurso a atores (apenas lhes interessa filmar os mesmos espaços e os mesmos objetos). Assim, fica claro que a estrutura é um elemento definido a priori, e que essa estrutura é a de um outro filme, pré-existente, que os realizadores pretendem homenagear.
Abordagens deste tipo não são novas: o austríaco Georg Tiller realizou uma reconstrução, fotograma a fotograma, de uma cena de Vargtimmen (A Hora do Lobo, 1968), de Ingmar Bergman, num filme apropriadamente intitulado Vargtimmen – Nach einer Szene von Ingmar Bergman (Vargtimmen – After a Scene by Ingmar Bergman, 2010) e, de forma inversa, Martin Arnold apagou todos os atores de um filme clássico de Hollywood de série B no seu Deanimated (2002). E mesmo no contexto do cinema português, João Mário Grilo produziu “remakes fotográficos” de The Searchers (A Desaparecida, 1956), de John Ford, e do filme incompleto de Sergei Eisenstein, ¡Que viva Mexico! (1932) e até certo ponto Nice – À propos de Jean Vigo (1983), de Manoel de Oliveira, participa desse mesmo espírito de apropriação geo-cinéfila. O que estes exercícios têm em comum – e que o filme de Rodrigues e Guerra da Mata cristaliza com alguma melancolia – é o desejo de salientar as formas de filmes que amam, mesmo (ou especialmente) quando essas formas são irregulares. Refilmar um filme, agora expurgado da sua dimensão narrativa, é um modo de dar a ver o olhar do primeiro realizador, neste caso mais recente, o olhar de Paulo Rocha. É uma forma de sublinhar o modo de filmar de outrem, de trazer para primeiro plano os próprios planos, os enquadramentos e os movimentos de câmara que alguém fez, neste caso em 1963.
De facto, os realizadores elevam – pela abordagem conceptual – tudo aquilo que carateriza a feitura incipiente de Os Verdes Anos a uma espécie de homenagem pós-maneirista do erro. As panorâmicas falhadas, a instabilidade da câmara nos travelings, os tropeções e que mais “defeitos” do filme de estreia de Rocha (que fazem parte do seu charme e que, em grande medida foram “atenuados” por Pedro Costa que coordenou, sob indicação de Rocha, a produção na atual cópia digital que circula do filme) tornam-se aqui numa sucessão de formas toscas, encontrando-se beleza em tudo o que não era intencional (uma abordagem que partilha o mesmo pathos das apropriações do ready made, isto é, muda-se o contexto e o banal vira monumento). Por isso, Onde Fica Esta Rua? é um filme sobre o ofício do cinema em Portugal: as suas dificuldades, as suas conquistas e a sua tendência para o artesanal (palavra de que Rocha muito gostava). E tê-lo feito, em contexto pandémico, é também uma afirmação política sobre a necessidade de contínua a rodar (mesmo que em seco – literalmente).
Onde Fica Esta Rua? é um filme sobre o ofício do cinema em Portugal: as suas dificuldades, as suas conquistas e a sua tendência para o artesanal. E tê-lo feito, em contexto pandémico, é também uma afirmação política sobre a necessidade de contínua a rodar (mesmo que em seco – literalmente).
É verdade que a primeira impressão que Onde Fica Esta Rua? provoca é que se trata de um filme de uma perturbadora aridez, isto porque joga com um conhecimento cultural comum e com a iconografia de um filme que – sendo português – não foi nunca suficientemente visto (especialmente em Portugal), e quando o foi, talvez não o tenha sido da melhor maneira. A questão que se impõe é perceber até que ponto o filme dos Joãos revela algo além do seu universo cinéfilo. E a resposta é, naturalmente, sim: há muito mais que cinefilia. No entanto, sendo a forma tão dominante (tudo é subsidiário da planificação original de Os Verdes Verdes – não por acaso o filme começa, exatamente, com uma evocação desse documento, que reaparece esporadicamente), o que realmente surpreende é o modo como os realizadores participam de forma irónica desse jogo mimético que eles próprios decidiram jogar. Ou, dito doutro modo, se o filme é capaz de sobreviver além das suas referências, é só através delas que revela a força perfurante do seu gesto. Por exemplo, se há uma graça inerente aos gags dos transeuntes que tentam abrir as portas dos prédios sem as mãos (Jacques Tati teria delirado com a pandemia, e aqui está a prova), por terem receio do contágio por Coronavírus, essas cenas têm tanto mais graça quando no filme de Rocha há um diálogo de Ilda em que esta pergunta a Júlio se “já não tem medo das portas?”.
Pois bem, a primeira piscadela de olho acontece logo quando o riacho que aparece num dos primeiro planos do filme de Paulo Rocha, é aqui uma verdinha ciclovia, e onde antes se viam carroças e burros a puxá-las, agora passam velozes segways e praticantes de jogging. Este jogo de oposições, “antes e depois”, poderia cair facilmente num certo discurso conservador, onde tudo o que era bonito se perdeu (a mobília dos restaurantes agora é do IKEA, o café Vává ficou irreconhecível, etc.), onde a cidade se descaraterizou à luz do multiculturalismo e onde o desejo da contemporaneidade deu lugar ao império das modernices. O filme não está isento disso (sendo nesse aspeto bem ambíguo), mas a verdade é que essa era já, em certa medida, uma das reflexões que Os Verdes Anos propunha. Por exemplo, recorde-se o primeiro encontro de Júlio, ao chegar a Lisboa, onde conhece um homem mais velho que o leva de metro até às Avenidas Novas e lhe conta que “quando vim para Lisboa não havia todo este movimentos de autocarros e metros…”. E mais que isso, a própria história de inadaptação de Júlio à vida na capital é um comentário sobre uma certa violência citadina, incompatível com o modus vivendi rural que definiu o país até essas décadas de migração forçada para o litoral.
Mas o jogo das diferenças “sem antes nem depois” tem variações mais profundas (e jocosas): logo no início, emparelhado com os planos do tio, quando este faz a barba e se prepara para ir buscar o sobrinho ao Rossio, os realizadores, deparando-se com a destruição dessas casas “que vão a baixo com um coice de burro”, oferecem planos do lugar (uma berma de estrada sem graça) e fazem coincidir com o plano da navalha um mão decepada e com a “forca da gravata” uma perna cortada. São as mutilações da rotina? Talvez. O certo é que a personagem do tio é particularmente importante em Onde Fica Esta Rua?, uma vez que é a única que figura no filme, no único momento em que aparecem imagens e sons de Os Verdes Anos: uma cena de trabalho – de novo! – em que este assenta azulejos numa parede e se ouve a sua narração explicando que “Quando a gente se faz homem o romance é outro. É o romance de levantar a nossa vida, de a por bem alto para que não a pisem”. Revisto hoje, Os Verdes Anos é também um filme sobre a precariedade (Júlio é forçado a trabalhar aos domingos e pensa emigrar, Ilda sonha em deixar a lida doméstica interna – sem folgas – e poder trabalhar do seu ofício, a costura), mais ainda quando a Lisboa de 2021 que Rodrigues e Guerra da Mata nos oferecem é uma onde impera a gig economy das aplicações de telemóvel.
João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata não se limitam a prestar a suas exéquias ao “primeiro” filme do Novo Cinema Português, antes, partem dele para fazerem uma reflexão sobre Lisboa.
Outra gracinha vinda deste vai-e-vem temporal prende-se com a utilização dos arrabaldes de Lisboa. Se é certo que no filme de Rocha há namoradinhos escondidos entre as ervas e dois caçadores andam à procura de “rôlas” (que os tradutores ingleses legendaram, e bem, como “love-birds”), os Joãos, enquanto cineastas queer, inventam (ou reinventam) o Parque da Bela Vista como zona de cruising gay, povoando os arbustos com olhares furtivos e o característico som das notificações do Grindr. E, nem de propósito, na correspondente cena de Os Verdes Anos ouve-se Ilda afirmar “as pessoas não se deviam meter nas vidas dos outros”. Curioso é que a sequência da saída do Texas Bar com o americano onde se houve, no filme de Rocha, “lets be gay”, não tenha provocado na dupla qualquer intumescimento.
De qualquer modo, Onde Fica Esta Rua? solta-se das suas auto-impostas amarras em alguns momentos e, exatamente por serem poucos, são particularmente tocantes. Em dois deles é a figura de Isabel Ruth (a atriz que interpretava Ilda), duplamente ressuscitada, que quebra o sistema matemático que domina o filme. A sua presença, a sua velhice e a sua voz (canta nos dois momentos – esta também é uma “fantasia musical”) deitam por terra a estrutura do filme e fazem-no levitar (como um balão). Outro momento que “destoa” da planificação de Paulo Rocha é menos evidente, uma vez que a diferença se faz por omissão. Tem que ver com a sequência de Os Verdes Anos em que a patroa avisa Ilda para ter cuidado com os “rapazes de Lisboa” e logo depois a criada apercebe-se que o patrão anda envolvido com a sobrinha. Essa cena, que é aquela que revela a tacanhez da patroa, mas também a propensão para a coscuvilhice de Ilda, é subtraída deste filme esvaziado. É, portanto, uma dupla ausência (como no final há uma dupla presença de Isabel Ruth), que não deixa de ter a força de um comentário. Outro exemplo, na sequência no Campo Grande, quando Júlio “pede” em casamento Ilda, a dupla oferece um plano com um cogumelo e outro com o cadáver de uma ave. Nada mais há a acrescentar.
Tudo isto para dizer que João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata não se limitam a prestar a suas exéquias ao “primeiro” filme do Novo Cinema Português, antes, partem dele para fazerem uma reflexão sobre Lisboa (e a sua evolução ao longo dos últimos 60 anos), acabando por oferecer, de forma lateral, uma nova forma de encarar o filme de Rocha (por exemplo, soam atualíssimos aqueles dizeres do tio sobre as pessoas que vivem na cidade, “sai-lhes mais caro o dormir que o comer” ou sobre os restaurantes “para turista”). E talvez isso seja aquilo que de mais belo se pode encontrar em Onde Fica Esta Rua?, afirmar a história do cinema como uma ferramenta essencial para compreender o presente.
Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois será exibido no festival Doclisboa, na secção Riscos, no próximo dia 12 de outubro, pelas 21h20, na Culturgest.