No meu trabalho, a acção do tempo é mais importante do que encontrar signos ou cores aprazíveis — por outras palavras, observar a estrutura da superfície.
Luigi Ghirri, Catalogo
Com a projecção de Infinito: L’universo di Luigi Ghirri (2002), de Matteo Parisini, a edição de 2023 do Festa do Cinema Italiano propõe celebrar também a fotografia italiana. E é provável, na verdade, que não haja nome mais adequado do que o de Luigi Ghirri para levar a cabo esta celebração. O filme de Parisini surge na programação, aliás, como uma espécie de convite à exposição “Luigi Ghirri, Obra Aberta”, com curadoria de Pedro Alfacinha, patente no Centro Cultural de Belém entre 28 de Março e 4 de Junho. O filme surge entre nós, portanto — culturalmente falando —, como uma via de entrada (dir-se-ia quase um “aperitivo”) para uma exposição que promete (e não vejo como poderia não o cumprir) ser um dos acontecimentos do ano em Portugal.

É que, falecido precocemente em 1992, com 49 anos, Luigi Ghirri tornar-se-ia um dos fotógrafos mais célebres do mundo, sobretudo a partir de 2012, com a reedição, pela editora britânica Mack, do célebre Kodachrome, um livro de fotografia de culto que havia visto a sua primeira edição, de autor, em 1978, e que resgataria Ghirri do esquecimento fora de Itália, contribuindo aliás para o fortalecimento do seu lugar cimeiro no panteão dos fotógrafos da segunda metade do século XX.

Com as suas composições geométricas mas soltas, as suas cores pastel de baixo contraste, uma temporalidade distendida que convida à contemplação, as fotografias de Luigi Ghirri encontraram uma expressão quase mainstream nos últimos anos. À semelhança do que sucede com fotógrafas como Nan Goldin ou Rinko Kawauchi, a obra de Ghirri possui um conjunto de qualidades que permite ao seu autor simultaneamente situar-se entre os grandes fotógrafos da história desta arte e circular com facilidade no mundo digital enquanto produtor de imagens (de cores) aprazíveis. Estes são fotógrafos que hoje podemos apelidar de “instagramáveis”, portanto — o que aqui, devo clarificar, tendo em conta a qualidade e as características da tríade que mencionei, não deve ser entendido de forma alguma como um defeito.

A dado momento de Infinito, Massimo Zamboni, músico da banda CCCP, cujo álbum Epica Etica Etnica Pathos, de 1990, conta com uma capa de Ghirri, diz: “Depois de ver os seus livros ou ir a alguma das suas exposições, ao sair, durante algum tempo, vejo o mundo de uma certa forma”. Passa a ver o mundo à maneira de Ghirri, portanto. Ou, para ser mais preciso, à maneira das fotografias de Ghirri. No contexto do filme, esta passagem procura provavelmente atestar o poder da obra do fotógrafo italiano, que é de tal forma visionária e singular que tem a faculdade de contaminar o aparelho perceptivo daqueles que com ela contactam (curiosamente, Zamboni refere Herzog como um caso semelhante).
Mas o que é, exactamente, ver como (nas fotografias de) Ghirri? Esta é, também, a questão que o filme levanta, ainda que o faça de maneira implícita.

Ghirri é um exemplo particularmente adequado de que um fotógrafo não é como uma câmara, ou um aparelho perceptor transformado em produtor de imagens. O fotógrafo é um ser que pensa e que produz imagens que traduzem uma mundivisão ou uma cosmovisão, as quais constituem uma forma de pensamento em si mesmas justamente porque são alicerçadas em pensamento prévio. É por esta razão que, ainda que considere positiva a fácil circulação das imagens de Ghirri neste mundo saturado de imagens, julgo ser importante, ou, pelo menos, benéfico, conhecer o substrato reflexivo destas imagens, de modo a evitar contribuir para a sua banalização, motivada por uma certa qualidade pictórica que elas possuem.

Em suma, uma das preocupações deste filme é mostrar que Ghirri é muito mais do que um fotógrafo que cria imagens bonitas, que é, enfim, um artista (é isto, julgo, que quer dizer um entrevistado quando diz que ele é “mais do que um fotógrafo”) cujas imagens dizem mudamente uma visão do mundo. Mas esta visão, tal como noutros fotógrafos (lembro-me de Takuma Nakahira, objecto, aliás, de um belíssimo filme realizado pelo “mais que fotógrafo” Takashi Homma), é fortemente alicerçada na linguagem. É que, para Ghirri, as palavras parecem ser quase tão importantes quanto as imagens. Tendo escrito profusamente (os que não lêem em italiano podem contactar com os seus artigos em The Complete Essays, 1973-1991, publicado pela Mack), e praticado uma escrita vincadamente (e descomplexadamente) teórica, reflexiva, com um certo grau de ousadia, Ghirri é, em definitivo, um fotógrafo da escrita.

Conhecer esta natureza dupla de Ghirri — que, na verdade, não é dupla: possui, sim, uma unidade que comporta simultaneamente palavras e imagens — é fundamental para o conhecer enquanto artista. E é sobre esta duplicidade que o filme de Matteo Parisini se constrói, procurando dar acesso a essas duas dimensões, beneficiando para tal da especificidade do cinema enquanto medium audio-visual. No campo visível, desfilam fotografias de Ghirri — muitas referidas explicitamente pelos entrevistados, outras descontextualizadas, como portas para o onírico —; e no campo sonoro, uma voz masculina lê fragmentos-chave dos escritos de Ghirri. Numa tensão gerada entre imagem e texto, visualidade e som, fotografia e literatura, Infinito constrói-se enquanto retrato de Ghirri mas também, inevitavelmente, enquanto reflexão sobre o próprio cinema como meio singular — único, na verdade — de representar e de comunicar o mundo, as pessoas, a História.


Esta reflexão nunca é levada a consequências que tornem o filme inesquecível enquanto obra autónoma — ao contrário do que sucede, por exemplo, em Traces of a Landscape (2020), o filme que Petr Záruba fez sobre Jan Jedlička, e sobre o qual escrevi aqui a propósito da sua exibição noutro festival. Infinito: L’Universo di Luigi Ghirri é, como o título aliás indica, primariamente uma obra de divulgação, uma very short introduction ao universo de Ghirri, com algumas das suas imagens e alguns dos seus textos fundamentais, o contexto biográfico mínimo e um ou outro fait-divers. O filme desenha-se, em suma, como um convite para ingressar no universo de Ghirri, para o conhecer melhor, descobri-lo ou redescobri-lo — o que faz especial sentido no momento presente, em que a sua projecção coincide com o início da primeira grande exposição da obra fotográfica de Ghirri em Lisboa.


Mas este filme que acabo de descrever é o filme que um não iniciado em Ghirri vê. Na verdade, outra das qualidades do filme de Parisini é funcionar num duplo nível. O que um espectador que conheça o trabalho de Ghirri vê neste filme é ligeiramente diferente da “introdução” que os outros vêem. Para estes espectadores, nos quais me incluo, Infinito não é tanto um filme informativo, um filme sobre Ghirri, mas mais um filme com Ghirri. Com a matéria dos sonhos de quem habita, há mais ou menos anos, o universo de Ghirri: as fotografias que já conhecemos (muitas vezes organizadas em “split screen”, um recurso técnico cinematográfico que, percebemos aqui, tem algo de livro de fotografia), os lugares que já conhecemos das fotografias, e, acima de tudo, o próprio Ghirri, o seu rosto, as suas mãos, o movimento do seu corpo, as suas máquinas. Ghirri a olhar o mundo através do visor da máquina fotográfica. Ghirri, nos seus home movies, a olhar o mundo através do visor da sua máquina de filmar. Ghirri a sorrir (belíssimo corte no final do filme). Ghirri a falar. A voz de Ghirri.



Ghirri, enfim, enquanto fantasma, agente de assombração, preservado em película ou em dados, que nos visita para nos lembrar, na primeira pessoa, na evidência da sua presença, que é muito mais do que um dos grandes fotógrafos do século XX: é um universo.
Infinito: L’universo di Luigi Ghirri é exibido no próximo dia 30 de Março, quinta-feira, incluído na Festa do Cinema Italiano, na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge, às 21h30. Com a presença de Adele Ghirri e Pedro Alfacinha.