A premiação da Academia de Hollywood interessa muito mais por nos levar aos filmes do que pela distribuição dos prêmios em si, embora, confesso, tenho lá minhas preferências. A cerimônia terá lugar nas primeiras horas de 13 de março de 2023, em Portugal. No Brasil, começa ainda no dia 12. Nunca a vejo, mas sempre a ouço. Trabalho no notebook enquanto uso a TV majoritariamente como rádio. Herdei esse hábito do meu avô materno. Entre os indicados ao Oscar de melhor ator está Bill Nighy, minha preferência na categoria, protagonista de Living (Viver, 2022) de Oliver Hermanus, longa inglês que também concorre a melhor argumento adaptado. A curiosidade de ver todos os indicados para as principais categorias geralmente me leva a cardápios sem tempero algum, quando não a dissabores terríveis. Neste caso, o prazer de ver um grande ator seria uma espécie de pouso de segurança para que o visionamento ocorresse sem traumas. Foi o que aconteceu.
Living é uma adaptação de um longa de Akira Kurosawa chamado Ikiru (Viver, 1952). Por adaptação normalmente entende-se a mudança de uma linguagem, geralmente a da literatura, para outra, a do cinema. Aqui, não há mudança de linguagem. A adaptação que existe é de ambiência, importante no cinema, mas que não fornece elementos tão distantes a ponto de nos fazer esquecer o filme de Kurosawa como esquecemos temporariamente os livros adaptados em grandes filmes. Saímos da Tóquio do início dos anos 1950 e vamos à Londres da mesma época.
A beleza plástica do filme inglês, surpreendente para o cinema de seu país e também para o cinema contemporâneo, parece desenho de calouro perto do que Kurosawa nos apresenta com um preto e branco exímio.
Só que trabalhar com clássicos que venceram a prova do tempo tem suas armadilhas. Por mais que o filme inglês seja digno, o roteiro do prêmio nobel de literatura Kazuo Ishiguro saiba evitar algumas ciladas e Bill Nighy tenha um carisma enorme, aqui em tom e intensidade perfeitos, merecedores da estatueta, a lembrança do filme de Kurosawa não me deixou em momento algum.
Ikiru é a história de um homem que perdeu todo o tempo de sua vida num trabalho burocrático e, quando se descobre com um câncer em estágio terminal, com cerca de seis meses restantes de vida, passa a adotar uma nova maneira de encarar o seu quotidiano, buscando prazer e afirmando não ter tempo para odiar as pessoas.
É um presente de Kurosawa para seu ator símbolo: Takashi Shimura. E aqui, mais do que em qualquer outra ocasião, o portfolio de interpretações de Shimura se mostra por inteiro, com técnica e emoções controladas, o que envolve também o quase overacting – e o quase é palavra chave aqui, que diferencia o génio do charlatão.
O grande truque acontece com dois terços de filme. Watanabe, o velho personagem de Shimura, morre, e em seu velório os presentes começam a especular se ele sabia ou não da doença. Entram os flashbacks que estruturam toda a terceira parte do filme, numa das primeiras cerimónias marcantes do cinema de Kurosawa, que talvez só perca para a de Warui Yatsu Hodo Yoku Nemuru (O Mau Dorme Bem, 1960).
Pode não ser o melhor filme do diretor – Waga Seishun ni Kuinashi (Não Lamento a Minha Juventude, 1946) será sempre o merecedor de tal distinção – mas é certamente o primeiro, entre todos os que realizou, que não tem gorduras, que é todo estruturalmente magnífico, ainda que lhe faltem (talvez justamente por essa magnificência estrutural) momentos de rara beleza como os de Não Lamento a Minha Juventude.
No mais, há uma curiosidade: Shimura terá mais um momento de brilho com Kurosawa: justamente no filme seguinte, Shichinin no Samurai (Os Sete Samurais, 1954). Depois disso, ele voltará a ser coadjuvante, com cada vez menor participação nos filmes. Talvez o destaque dado a esse ator magnífico em Rashomon (1950), Viver e Os Sete Samurais seja um presente de despedida de Kurosawa, que percebeu em Toshiro Mifune uma força e um atrativo maior para o grande público.
Já Bill Nighy, de tiozinho charmoso e desajeitado em diversos filmes a idoso boa praça nos últimos, ainda não tinha encontrado oportunidade como essa em sua carreira. Seu personagem tem uma liderança que o de Shimura não tinha no filme de Kurosawa. Nighy pode trabalhar uma surpreendente contensão, que a explosão de Kurosawa não permitia. A beleza plástica do filme inglês, surpreendente para o cinema de seu país e também para o cinema contemporâneo, parece desenho de calouro perto do que Kurosawa nos apresenta com um preto e branco exímio. Living, por fim, é levado até o fim por um ator no auge de sua técnica. Mesmo quando não está em cena, a memória de sua expressão é trazida pelos que a comentam.
Não ligo muito para Oscares, mas como torço para tudo nesta vida, e já torcia para Nighy ganhar o seu Oscar antes de ver o filme, agora que o vi posso dizer que vou vestir meu uniforme e balançar minha bandeira para que ele vença tão cobiçado prémio. Minha desgraça sempre foi torcer para os underdogs.