O leitor já se acostumou à minha paixão por Manoel de Oliveira. Sem exagero, é um dos meus realizadores de cabeceira, desde muito antes de minha primeira ida a Portugal e meu envolvimento mais constante com o país dos meus avós. Lembro que no início da cinefilia, um famoso crítico brasileiro, já falecido, anunciou assim A Divina Comédia quando exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 1991: “Manoel de Oliveira redefine a palavra chatice”. Como já mencionei, no Brasil não há muita paciência para o andamento de seus filmes. Mas há curiosidade. Desde aquela época, os filmes de Oliveira costumam lotar as salas, que terminam com 10% do público ao final. Os que ficam, deixam a sala maravilhados quando o filme acaba. Este texto foi escrito originalmente durante o curso online que ministrei em 2021 sobre a obra do grande mestre.
Non ou a Vã Glória de Mandar (1990) foi o filme mais caro realizado em Portugal até então. Com ele, seu autor passava a limpo a história do país a partir de suas derrotas, sendo a maior delas o glorioso 25 de abril de 1974, quando o filme se encerra (derrota do ponto de vista militar, mas obviamente uma vitória retumbante do ponto de vista humanista).
Com A Divina Comédia (1991), Oliveira ao mesmo tempo retoma a saga farsesca de Meu Caso (1986) e Os Canibais (1988) como também se permite realizar um de seus filmes mais insólitos, com enquadramentos estranhos e desenvolvimento narrativo que lembra mais um cruzamento entre o Pedro Costa inicial e o Edgar Pêra de sempre. Alguns planos em grande angular são particularmente atípicos na carreira do diretor, como os do assassinato-pesadelo de Raskolnikov (o ator Miguel Guilherme, terrivelmente careteiro em Non ou a Vã Glória de Mandar, espetacular aqui), logo no início, ou os de Adão e Eva no Paraíso, envoltos em uma névoa suave. Ou ainda os muitos campos e contracampos que Oliveira, a esta altura, parecia já não temer mais em adotar.
Tudo se passa dentro de um hospício, lugar em que as pessoas vivem seus personagens sem que haja uma história para se adequar a todos. Vão se construindo pequenas histórias com personagens históricos, bíblicos e literários. Há o que pensa ser Jesus, o que pensa ser um profeta, o que pensa ser Raskolnikov, e por aí vai. Nesse “azyllo muito louco” todos querem uma história para si. Não há consenso, só enfrentamentos, dissonâncias. Por vezes, há tentativas de adequação. Leonor Silveira, por exemplo, deixa de ser Eva para se tornar Santa Tereza. Mas com isso deixa de se adequar a uma história na tentativa de se adequar a outra.
A dramaturgia é mais convencional, a mais convencional desde O Passado e o Presente (1972), com o qual este filme se relaciona mais proximamente, como notou João Bénard da Costa no texto sobre o eterno feminino (no filme de 1972, também estamos numa espécie de hospício, ainda que ninguém ali seja diagnosticado como louco). É como se após a imbricação total entre teatro, pintura e cinema e a liberdade total para cair no ridículo ou para fazer um épico português, Oliveira se sentisse à vontade para um retorno, a tentar algo mais direto, com base em conflitos e diálogos mais compreensíveis para o grande público, ainda que planos propositalmente deslocados continuem a aparecer; temporariamente deslocados, como o de uma bíblia numa poltrona que mais tarde será apanhada por Raskolnikov, ou jocosamente deslocados (alguns planos de reação que forçam humor em momentos insólitos). As pequenas histórias se desenrolam sempre com alguns dos outros pacientes como espectadores involuntários, numa espécie de teatro aberto e improvisado. Quando Sonia (Maria de Medeiros) tem um longo e belo diálogo com Raskolnikov, em um momento vemos Luis Miguel Cintra, o profeta, por trás dele falar, com os braços abertos e fora de foco, “Deus é grande”. Esse tipo de humor oliveiriano surge nos momentos menos esperados, fazendo de A Divina Comédia, o filme e a obra de Dante, um drama encenado por loucos, logo, por cômicos, por artistas, por pessoas além do senso ordinário. Numa casa onde, segundo Bénard da Costa, “todos parecem ver tudo sem ver nada, ouvir tudo sem ouvir nada, sentir tudo sem sentir nada”.
Quando Bénard da Costa observa que é provavelmente o filme mais decupado de Manoel de Oliveira está certíssimo. Pelo menos de O Passado e o Presente em diante, nunca houve tantos cortes no cinema de Oliveira quanto em A Divina Comédia. Porque Oliveira resolveu decupar tanto, comparativamente a seus longas anteriores, como neste filme? Seria uma questão prática ou apenas uma coincidência? Procurava o realizador se adequar ao sem-número de histórias, recitadas ou encenadas, dos mais diversos autores e aos personagens da casa ou queria driblar a ideia de que seus filmes são lentos, com planos enormes em que pouco acontece? Não me parece ser essa segunda hipótese, pois aqueles que o consideram um diretor enfadonho continuarão assim considerando.
Bénard comenta também sobre a imobilidade dos personagens, que, ao contrário dos de O Passado e o Presente, não têm para onde fugir. Isto se reflete na imobilidade da câmera. São muitos planos, lembra o autor, mas a câmera nunca se mexe, exceto pela chegada, de moto, de Ivan Karamazov, interpretado por um soberbo Diogo Dória, que já chega se apresentando como o personagem de Dostoiévski, querendo falar com seu irmão Aliosha e pedindo uma vaga no manicômio para o diretor (Ruy Furtado), que na outra sala vira outro ator, aliás, o próprio Manoel de Oliveira com uma terrível peruca (foi necessário substituir Ruy Furtado, que faleceu durante as filmagens). Talvez esteja aí a chave para entendermos por que é o filme mais decupado de Oliveira. Muitos personagens, muitas histórias, muitas bifurcações, muitas farsas, duplicações de atores e personalidades e, consequentemente, muitos planos. No mais, adotando uma decupagem mais intensa, Oliveira pode brincar à vontade com a regra do eixo e inúmeros falsos raccords, de movimento, mas principalmente de olhar. O que acaba sendo nada convencional, pois esses raccords não são como os da nouvelle vague francesa, mas como os da parte mais inventiva do cinema americano dos anos 1930, em que se experimentava com maneiras de expandir a linguagem para além do estabelecido por Griffith, Chaplin e outros. E com isso, A Divina Comédia, apesar de ser um dos filmes atípicos de Oliveira, carrega em suas cenas e planos elementos de uma força de estilo que só encontramos nesse cineasta. Além disso, o abandono parcial da encenação com quadros vivos e fuga do naturalismo produz trocas de olhares como nenhum outro filme de Oliveira havia demonstrado até então. A culminação disso será Vale Abraão (1993), um filme que faz jus à ideia do cinema como a melodia do olhar. Mas olhares fortes podem ser vistos também em filmes futuros como O Convento (1995), Party (1996) ou Viagem ao Princípio do Mundo (1997). Ao deixar sua encenação mais simples, Oliveira apura sua representação do olhar como janelas para o mundo, e as trocas de olhares passam a contar mais do que nunca em seu cinema.
Mas há uma característica ainda mais inusitada: o caráter de filme pot-pourri, uma antologia de momentos bíblicos e literários vividos pelos pacientes do manicômio, em que trechos inúmeros da Bíblia e de obras de José Régio, Nietzsche e Dostoievski são encenados ou lidos com maior ou menor fidelidade. É como se levantássemos e andássemos por uma estante de livros pegando alguns deles e lendo alguns trechos grifados previamente, alterando-os livremente conforme nossos desejos de readaptações. Diz-se que Godard lia assim, nunca um livro inteiro, mas sempre trechos de livros ao mesmo tempo, compondo um mosaico mental de sabedoria e pensamento. E se assim considerarmos, A Divina Comédia está para a literatura como O Sapato de Cetim (1985) e Benilde ou a Virgem Mãe (1975) estavam para o teatro, e diferentemente do que Amor e Perdição (1979) e Francisca (1981) estavam para as adaptações literárias. Porque nos outros havia fidelidade, à peça, aos livros. Aqui, há simultaneidade e liberdade para passarmos de um ao outro, juntarmos um ao outro, misturarmos personagens e situações. E num último plano, o congelamento de imagem em uma claquete de ponta cabeça na frente da pianista estafada. É estruturalmente que se dá a revolução do cinema, mais uma vez. O que o faz um filme tão essencial quanto os acima citados.