Se em Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) Hitchcock nos deu os olhos, a câmara fotográfica e os binóculos de James Stewart para espreitarmos para as casas dos vizinhos situadas à volta do pátio interior, em Tab (Lá em Cima, 2022), Hong Sang-soo faz-nos subir e descer a escada de um prédio incontáveis vezes para espiar o que se passa nos diferentes andares. Com a diferença de que as pessoas que vivem nesses andares são sempre as mesmas, apenas diferentes versões (ou mais rigorosamente, diferentes estádios) dessas pessoas. Como se o entrar / conhecer de uma pessoa implicasse também percorrer diferentes andares que correspondem a diferentes níveis de intimidade, de revelação da personalidade (embora o filme deixe indicação de que nunca será atingida uma revelação completa, porque não existem andares suficientes para tal ou é inevitável o regresso ao piso de entrada). Mas há quem compre um edifício inteiro? – pergunta Byungsoo (Hae-hyo Kwon) quase no final.
As mesas e as conversas, a comida e o álcool, já os conhecemos, ainda que nem sempre de ambientes tão domésticos. Entre as muitas garrafas de vinho que vão sendo bebidas em Tab, e cujo número permite medir a duração e intensidade da conversa, fala-se de casas e de decoração de interiores, mas também de outras coisas comezinhas que constituem o lar de cada um – dinheiro, hábitos alimentares, doenças, carros, tabaco. Muitos cigarros são fumados, acompanhados de muitas tentativas frustradas de dissuasão, a tal ponto que apetece, em jeito contestatário, convocar o Vittorio Gassman de Il Sorpasso (A Ultrapassagem, 1962), quando recomenda a Jean-Louis Trintignant que se deixe disso de não fumar, porque não é bom para ele. E assim vamos subindo e descendo as escadas do edifício, numa confusão de passado e presente, que não se resume, mas que é bem ilustrada, pelos dois Mini que chegam e partem, um deles o modelo clássico e o outro o modelo moderno.
Estas coisas conversadas são um ir e vir e voltar ao mesmo ponto da conversa, feita de informações que se complementam e se contradizem. Jeongsu (Mi-so Park) começou por estudar arte, mas, entretanto, pretende dedicar-se à decoração de interiores. A arte não dá dinheiro (uma ideia que perpassa várias das conversas) e iria condená-la a uma existência demasiado isolada, por isso ela procura uma profissão que lhe permita relacionar-se com um maior número de pessoas. A decoração de interiores afigura-se como uma escolha caricata para esse objectivo, mas que corresponde ao ar um pouco perdido e inseguro de Jeongsu, titubeante na relação com o pai e desconfortável no papel de alguém que tem de pedir ajuda profissional a uma desconhecida, por intercepção de um pai também ele quase desconhecido. Ficamos, entretanto, a saber que o inquilino do piso de cima, ausente, é pintor e confirma os receios de Jeongsu, já que não consegue ganhar o suficiente para pagar a renda. O seu insucesso parece ficar a dever-se ao facto de se ter lançado na arte demasiado tarde. Por sua vez, Sunhee (Song Seon-mi), a dona do restaurante, confessa ter-se dedicado brevemente à arte quando era mais nova, tendo vindo a concluir que o seu insucesso se deveu a tê-lo feito numa altura em que ainda era demasiado jovem. Isto são coisas que vão sendo descobertas nos consecutivos subir e descer de escadas, com a Sra. Kim (Lee Hye-yeong) a dizer que o nível de familiaridade dos moradores do prédio permite deixar as portas de entrada abertas, sem outros cuidados, e autorizá-la a entrar em casas alheias, para logo a seguir não conseguir abrir uma porta porque não acerta no código de acesso. Byungsoo, enquanto realizador de cinema, dedica também a sua vida à arte, inicialmente aparentando ser um realizador já consagrado, menos permeável a considerações financeiras. Mas veremos que essas preocupações se tornam reais nas existências dos andares superiores, desembocando numa fuga para a ilha de Jeju que, segundo ele, foi ditada por uma orientação divina.
No piso das águas-furtadas, Byungsoo manifesta receio pelo varandim demasiado baixo, que lhe parece perigoso, uma constatação que rima com a solidez da varanda do primeiro piso, que ele testa, abanando a estrutura vigorosamente. Mas será no piso das águas-furtadas que, contraditoriamente, ele encontra uma estrutura segura, que lhe permita uma existência fluída: é aí que ele veste as suas roupas mais informais, mais “de trazer por casa”, uma evolução progressiva que se vai fazendo notar à medida que subimos as escadas e que progredimos de narrativa em narrativa – de um conjunto smart casual de gola alta e casaco, passando para uma camisa e casaco, seguidamente uma camisa de flanela aos quadrados, para terminar numa simples t-shirt. É a intimidade que vai sendo conquistada, uma abertura ao outro em pleno contraste com a traje severo da Sra. Kim – as calças de corte clássico, algo masculinas, e os sapatos de tacão não muito alto – que não sofre qualquer alteração ao longo de todo o filme. É também ela quem nunca permite verdadeiramente que se penetre no seu espaço privado, já que ela confessa que a cave, que deveria ser o seu ateliê, não é verdadeiramente usada como espaço de trabalho, apenas como local de relaxamento, ainda que este espaço seja claramente resultado de uma construção artificial – as revistas de moda e os livros devidamente alinhados no seu local próprio, os sofás cobertos de branco. É um espaço bem decorado, mas sem alma, que serve apenas de fachada. Na verdade, um óbice à intimidade.
Sunhee confessa-se uma fã devota do trabalho de Byungsoo, admitindo ter visto todos os seus filmes, rindo com eles, vendo-os entre goles de vinho. Degustando-os, portanto. A relação com a pessoa que mais próxima está do seu cinema, é a relação que aparentemente coloca em perigo essa mesma arte.
Se bem que… a abertura à intimidade nem sempre será bonita. Estamos no segundo andar, no apartamento de Byungsoo e Sunhee, onde ocorre um gesto breve, mas revelador de um à-vontade que pode tornar-se cruel. Sunhee preocupa-se cada vez mais com o futuro do seu restaurante, e entre cálculos e busca de soluções, pede a Byungsoo para se juntar a ela para mais um copo. Ele responde que não quer beber mais, limitando-se a deitar no copo dela o resto de cerveja que ainda lá tinha. A solidão dela a terminar a bebida acaba por rimar com a solidão dele um pouco mais tarde, deitado na cama, abraçado a uma almofada. “Life, every now and then, behaves as though it had seen too many bad movies” – ouvia-se da boca de Humphrey Bogart em The Barefoot Contessa (A Condeça Descalça, 1954). E, por vezes, uma relação amorosa é tão easy listening quanto o disco de Fausto Papetti que espreita, pousado no parapeito da janela, com uma das capas de estilo “calendário de oficina de automóveis” que notabilizaram o músico (ainda que umas lamparinas bem localizadas disfarcem os seios da modelo que figura na capa do álbum).
Ironicamente é neste andar, na possibilidade da relação com Sunhee, que justamente a carreira de Byungsoo parece mais precária. Ironicamente porque Sunhee, na conversa que teve lugar no piso de baixo, se confessava uma fã devota do trabalho de Byungsoo, tendo visto todos os seus filmes, rindo com eles, vendo-os entre goles de vinho. Degustando-os, portanto. A relação com a pessoa que mais próxima está do seu cinema, da sua arte, é a relação que aparentemente coloca em perigo essa mesma arte, provocando desconforto, dúvida, hesitação.
No último piso, no tal do varandim pouco seguro, é oferecida a possibilidade de uma casa feliz, que acolhe a relação mais sólida, porque totalmente descontraída, a relação mais quente, mais apaixonada, com Jiyoung (Yun-hee Cho) – ou não fosse ela uma agente imobiliária, uma “especialista em casas”. O percurso de subida neste edifício acaba por corresponder ao sistema de frio num frigorífico, com as prateleiras de maior refrigeração em baixo, diminuindo a intensidade do frio nas prateleiras superiores. Adivinha-se, por isso, que a relação Byungsoo / Jiyoung esteja ainda no seu início, pela forma como cada um se deixa inebriar pela companhia do outro. Diga-se, aliás, que as garrafas de vinho (quer o vinho caro que Sunhee oferecia, quer o vinho mais em conta que Kim mandava comprar) foram sendo abandonadas à medida que subimos. Byungsoo passou a rejeitar o vinho, bebe agora apenas Soju, e voltou também a comer carne, sempre à procura da equação certa para a sua vida. Vemo-lo um pouco patético enquanto mastiga o ginseng selvagem que Jiyoung lhe oferece, sorriso rasgado, irritantemente optimista. Seria este um dos momentos do filme em que Sunhee teria bebido mais um gole de vinho, antes de rebolar de riso no tapete?
★★★★☆