De uma fachada, esperava-se uma história. De uma cidade, esperava-se um mundo.
De uma voz, espera(va)-se a luz. De uma imagem em movimento, espera(va)-se o tudo.
Numa mala leva(-se) o nada.
Começou, como sempre, nesse lugar da curiosidade (ainda por saciar), de desbravar um caminho (ainda por conhecer).
Empty Suitcases (1980), de Bette Gordon: um título que se despe de acessórios, colocando-nos num lugar plural de viagem do – ou pelo – seu sentido próprio. Uma sugestão – talvez, veremos – de um esvaziar daquilo que sempre trazemos connosco (essa bagagem), seguindo sem pressupostos. Missão impossível: o que de – ou em – nós vem, dificilmente se retira. Mas aceitando a proposta, deparamo-nos inicialmente com as lógicas do (im)provável: um roteiro de – ou pelo – meio caminho, meia narrativa. Um capítulo que se inicia num ponto longe da partida, entrecruzando descrições de átomos de explosivos, de horários das idas e partidas da manhã, com a história de uma mulher cuja vida se fazia on the road (ou, neste caso, on the train). É esta a mulher que seguimos, em todas as suas formas de linha de base de vida (e narrativa). E ela é também que, depois de uma estadia longa pelas paisagens gerais de um porto (ir)reconhecível, nos obriga a estar no espaço da visualização do gesto que pressentimos de início – aquele primeiro “talvez”, mas “veremos”. Uma mala que por si é feita – e vozes assim o descrevem – que no final acaba por sair (ou, neste caso, ficar) vazia. O movimento está no – e pelo – corpo transeunte e no objecto que aqui (sabemos só nós, como ela) está só em superfície. Mas o símbolo que se tornou leva sempre à representação: é esta a imagem de (prossegu)ir.
Neste início de tudo que do meio começa, os finais não acontecem. Falou-se em vozes: são elas que dão (outro) corpo. Interrompidas no seu pensamento, nas suas falas, levam-nos a uma das estações da partida – essa chegada. A imagem da mulher de mala(s) vazia(s) repete-se. Três vezes dirigindo-se ao canto da nossa posição (de frente, mas para o lado da câmara que nos posiciona). Acompanhada por três outras vozes – esses outros corpos – que, a cada passo, dão uma outra tradução, uma outra emoção, uma outra história.
Aqui paro um pouco, esperando o comboio que não chega, que não parte. Porque é o momento que me liga ao aspecto pessoal que trouxe comigo. O familiar que preciso de introduzir, a bagagem que aqui despejo. De uma ideia de mulher em viagem interminável (ali entre Chicago e Nova Iorque, aqui entre outros pontos geográficos). De um sentimento de casa incompleta, sem paragens, por lugares que preenchem um certo lado interior mas para os quais nada valerá a pena trazer, porque haverá sempre algo em falta. Há movimentos de desejo, de vontades que, mesmo que accionados, se deixam levar por trajectos do “in-between” e nunca encontrarão – aí ou ali – completa resolução.
Pensei noutra história – uma que não é minha, mas que em mim toca. De tempos – talvez não tão – perdidos, de um transporte que se – ou ainda assim nos – move nessa nossa busca interior, individual, eterna. Aí espera-se a partilha do espaço do incompleto, procurando criar o destino que sabíamos ter: nesse outro que encontramos enquanto o nosso porto seguro, o que não está – nem poderá ficar – vazio, com o nosso querer.
Regresso ao lugar de onde, por momentos, fugi. O filme de Bette Gordon. Desta vez, de forma directa – esqueça-se o lado críptico por momentos. Escrever sobre elementos pessoais – aí talvez de forma não muito directa – poderá ser visto, na verdade, como uma forma de dar azo aos potenciais desta obra. O acto de escapar às linhas traçadas pelos ferros que guiam o comboio, na cabine, no banco em que nos sentamos é também, em si, seguir pelas sugestividades lançadas por este filme, que não se deixa levar pelos guias do expectável (estando obviamente neles – há limites para qualquer fuga). De uma mulher que viaja (e com quem viajamos) além-geografias mas também – e acima de tudo – por questões do feminino que muites reconhecerão. De uma narrativa espelhada por estratégias cinematográficas que são jogadas como dados que não nos permitem prever o destino (no entanto conhecendo-o por dentro, à partida – ou chegada). As pistas são lançadas à medida que avançamos, carril a carril. Das histórias do amor infundado (as letras em formato postal num sofá), à violência para com os corpos e identidades femininas (sobre qualquer forma); das narrativas de injustiça contínua às representações que queremos criar à nossa imagem. É lançado um grito neste espaço de agitação das linearidades. Uma turbulência interior que se espelha num reflectir de problemáticas. Não tendo, no entanto, uma resolução final que fuja desse princípio: a violência que, de início, ouvimos, transforma-se numa realidade reivindicativa, com a qual também não nos identificamos (a ideia de violência como resposta a violência sistémica). Mas pelo caminho encontramos muito daquilo que, na verdade, poderá e deverá ser feito.
Dispersando pelos fragmentos introduzidos ao longo do filme – de tom cortante no aleatório -, vamos desde um lipsync desmotivado (ou contrariado) ao som de um disco que toca Billie Holiday – “Take All Of Me”, a uma sessão fotográfica de mulher fotografa(da por) mulher (e vice-versa, vice-versa) ao som de X-Ray Spex – “Art‐I‐Ficial”. Diga-se: temos na música, nas imagens (de frames em movimento a fotografias tanto estáticas como ou em movimento), nas palavras (faladas por inúmeras vozes, escritas por um mesmo tipo de letra), no ritmo (essa variação definida na sua própria articulação), um retrato fílmico que denuncia – representando, incorporando, expondo – a disforia social que ainda hoje sentimos, que ainda hoje filmamos, que ainda hoje vivemos.
De malas talvez vazias poderão seguir, a partir daqui. Mas a proposta é a seguinte: que se leve o que em nós deve ficar, que nos livremos daquilo a que a nós não faz justiça. Essa será a nossa missão (sempre foi): o filme.
Empty Suitcases (1980), de Bette Gordon, foi exibido no Festival Internacional de Cinema Queer Porto.