Poetas vanguardistas detestam poemas
por permanecerem poemas
em vez de se tornarem bombas.
Ben Lerner, Ódio à Poesia
Há filmes que não existem no desdobrar da história que contam. Dentro desses, existem aqueles que, contando uma história, não a exibem. Porque o filme não existe ou parte dela. O filme parte de um sentimento, do estabelecer do ritmo do seu verso; de um lampejo. Mas depois há outros onde o mistério por trás do filme passa pela nossa descoberta dele. Sobre estes, e dentro de um cinema japonês humanista, o nome de Kyoshi Sugita, protegido de Kiyoshi Kurosawa, Shinji Aoyama, Nobuhiro Suwa, com quem trabalhou enquanto assistente de realização, está prestes a deixar de ser uma incógnita. Ao longo de quatro longas-metragens, o realizador japonês toca na profundidade do mundano que nos une uns aos outros no palco do ennui urbano, apresentando-o através de um trabalho de câmara maioritariamente composto por momentos estáticos, por vezes fazendo uso de handheld ao de leve, que fluem um no outro sem contar com elementos expositivos para os entrelaçar. Depois do iluminar que foi a sua terceira longa-metragem Haruhara-san’s Recorder (2021) no circuito de festivais (arrecadou três prémios no FIDMarseille em 2021, entre eles o grande prémio da competição internacional) e junto da crítica, um filme tão contemporâneo quanto uma relíquia do passado, Following the Sound (2023), a longa-metragem que se lhe segue, é programado agora pelo IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema na secção Silvestre, depois da sua estreia na Giornate degli Autori no festival de Veneza o ano passado. Será a primeira vez que um filme de Sugita marca presença num festival de cinema em Portugal, “(os festivais de cinema tornaram-se) o verdadeiro circuito de distribuição” de filmes como este como dizia Nick Pinkerton no seu livro sobre Goodbye Dragon Inn da Fireflies Press. Filmes que, sem a devida contextualização com o resto da obra do autor, pode passar por ser só mais um nome na programação, mais um filme japonês e o requinte da sua quietude.

E isso não podia estar mais longe da verdade. Não mais impactante que Haruhara-san’s Recorder, Following the Sound distingue-se logo, no entanto, por vincar mais do que o seu filme-irmão a horizontalidade do tempo e do espaço entre o que já aconteceu e o que está a acontecer. Há uma ponte entre um e outro. E a pairar por cima dela está Haru (An Ogawa), uma presença tão empática quanto peculiar que adquire desde logo, aos meus olhos, uma certa sobrenaturalidade que nunca a abandona. Não é excessivo pensar nela enquanto uma personagem divina de visita ao mundo dos humanos. Perdida na melancolia de um luto qualquer, ou assim indicam aqueles seus olhos grandes e curiosos num corpo pequeno e tão sereno, Haru mantém-se alerta para todos os que exalam uma vida interior grave.
Ao longo do filme, esta jovem mulher que trabalha numa livraria injectará um brilho screwball num mundo repleto de camadas de sofrimento e apatia que se fazem sentir até na paleta de cores usada (um estranho enevoar) enquanto se cruza com pessoas e com elas cria laços, neste caso com um homem e uma mulher que, ao que aparenta, em nada se relacionam. E tudo indica que o faz de propósito. Num momento muito particular, uma mulher sente a invasão do olhar de Haru sobre ela e chama a atenção de todos que as rodeiam: “Tens estado a olhar para mim! / A menina Mishima tem estado a observar-me. / Isto é sinistro”, confessa em voz alta a pobre mulher, ao que Haru prontamente nega, pedindo-lhe até que não se preocupe. O que se passa? O que é isto que vemos? Para onde caminhamos? Olhando para o título, este aponta para um caminho a seguir. Mas nos filmes de Sugita, este caminho não se exprime numa só direcção e parece carecer tanto de lugar de partida como de chegada. Se começamos em algum sítio será sempre em media-res, onde também acabaremos. Por via de uma gravação eternizada num gravador de som (já em Haruhara-san’s Recorder era esse o objecto tensional) que Haru não perde de vista e que tenta decifrar com a ajuda dos aliados que “convoca”, a dimensão e importância da viagem que o filme faz não só permanecem um mistério como parecem estar a ser resguardados do espectador.
É este o terreno do cinema meio-acordado meio-adormecido (…) Ver um filme de Sugita é aceitar a frustração do que permanece sem fundo, e por ali passar a habitar, nesse lugar sem descrição.
Desta pureza e em direcção a uma abertura comunitária tipicamente nipónica, ou seja explosiva mas apartada, e sempre coberta por um silêncio desconcertante, Kyoshi Sugita parte de uma construção estrutural fluída mas por pontuar, e por isso também algo afectada e frustrante tendo em conta a falta das marcações em efeito dómino que costumam alimentar o desafio, adoptando a forma e força lírica de tanka (ainda que não da maneira literal do filme anterior), com personagens delicadas em sequências recorrentes de comida a ser feita ou momentos passados no cinema, no café ou até numa aula de desenho. Sem grande esforço, o filme é um espelho onde vemos Haru à procura de outros, e depois envolvida nos actos do olhar, do ouvir e do sentir. E tudo o que resta ao espectador é assumir e criar uma chave-mestra, mas sem nunca colocar a experiência da realidade nas caixas das motivações, das ligações, dos possíveis padrões. Isso seria destruir a intenção basilar de Sugita, subentendida nos seus versos visuais.
Por tudo isto, e ao contrário do que seria de esperar, o espectador não cai num típico embalar, nesta tão elevada gentileza. Ao longo dos vários quadros situacionais que nunca se apressam nem parecem estar a ser comandados por ninguém, nem por Haru, e que são possivelmente insignificantes, assiste-se a uma acumulação em eco que irá libertar o filme da convencionalidade para sempre, já para não dizer também de um possível carácter dramático. Sugita exige um outro tipo de produção. Não basta a partilha habitual do ecrã numa sala de cinema. O filme torna-se escrita. A rejeição da ordem e da rigidez narrativa dá lugar à liberdade interpretativa, que supera quaisquer noções de premissa. É este o terreno do cinema meio-acordado meio-adormecido com uma protagonista que ainda não desistiu das pessoas e da crença de que em qualquer lugar há um aliado, independentemente de possíveis diferenças sociais e geracionais. Num filme de Sugita, este carinho pela vida não é uma visão alucinada. É uma verdade. E esse estranho-tornado-amigo pode efectivamente salvar o outro do seu desaparecimento. Tudo o resto não importa.


Não é então, de admirar, que pelos festivais que o filme passou, incluo aqui o IndieLisboa, as pequenas descrições da história a ser contada, normalmente textos escritos por programadores, não se encontram umas nas outras e em tudo se diferenciam. Ver um filme de Sugita é aceitar a frustração do que permanece sem fundo, e por ali passar a habitar, nesse lugar sem descrição. Esta sua poesia não se encontra nos detalhes nem na informação obliterada tanto no enquadramento visual como no exteriorizar da vida interior das personagens. Habitualmente, no campo da não-linearidade, uma só expressão facial deve ser distintiva o suficiente para construir ou destruir a valentia do momento. Mas até aí, Following the Sound evidencia a sua unicidade. É praticamente impossível saber o que vai na cabeça de Haru. Por mais que a olhemos e a veremos a olhar, menos sabemos o que poderá ela estar a percepcionar, e muito menos quem ela é.
Na luta contra a padronização identitária, a composição do que é um filme altera-se com Kyoshi Sugita. É uma lufada de ar fresco ver este abraçar poético, que está em constante estado de fluxo, ser sempre só de quem o imagina.
No meio daquelas ruas-diorama, sente-se apenas o peso do passado, que se vai intensificando na interacção entre Haru e aquelas duas outras pessoas – a pergunta que mais vezes lhe fazem é se aquele encontro já tinha acontecido antes -, cujo destino ela parece ter mudado. E eles a ela. Tal como acontece com o clarear que tem sido testemunhado recentemente em filmes que se assemelham em sensibilidade e enquanto exercício, filmes como Remembering Every Night (2022) de Yui Kiyohara e There is a Stone (2022), de Tatsunari Ôta (este último também é protagonizado por An Ogawa), ambos estreados na Berlinale em 2023, o motor de Following the Sound é igualmente o da acção sugestiva que redefine todas as formas e formatos de um cinema decididamente moderno na sua subtileza que não existe nem para nos confortar nem para nos dizer o que pensar.


Na luta contra a padronização identitária, a composição do que é um filme altera-se com Kyoshi Sugita. E as possibilidades são, de repente, infinitas. Da frustração à criação, é uma lufada de ar fresco ver este abraçar poético, que está em constante estado de fluxo, ser sempre só de quem o imagina. Resta dizer que Sugita é um dos autores japoneses a não perder de vista.