“What seems to be the trouble, Captain?”
O problema de Harry é estar ligeiramente morto. É um protagonismo ingrato, porque dele pouco mais conhecemos do que os pés e o mau-gosto na escolha a peúgas.
Hitchcock a regressar às suas raízes inglesas. O tom não destoa de uma comédia como Kind Hearts and Coronets (Oito Vidas por Um Título, 1949), sendo o próprio realizador quem aproxima os dois filmes numa entrevista aos Cahiers de Cinéma, conduzida por François Truffaut e Claude Chabrol. Mas Hitchcock leva-nos para o que há de mais americano, café e tarte de maçã (ou blueberry muffins), a paisagem idílica de Vermont, as folhas douradas, a vida despreocupada. “Lovely, lovely” – é a citação hitchcockiana que assenta aqui como uma luva [não querendo recuperar o contexto funesto em que Rusk profere estas palavras em Frenzy (Frenzy – Perigo na Noite, 1972), mas apenas as palavras]. The Trouble with Harry (O Terceiro Tiro, 1955) tem tanto de genuinamente americano quanto Shadow of a Doubt (Mentira, 1943), mas movendo-se da bonomia da pequena cidade para o deslumbramento Technicolor do cenário campestre. E se em Shadow of a Doubt o veneno parecia estar na ociosidade, aqui ela é elevada a “ética de trabalho”. Ninguém parece muito preocupado em produzir ou ser produtivo, roubando assim esta comunidade de um elemento primacial da cultura americana – a devoção ao trabalho.
Tal como sucede no noir a cores Leave Her to Heaven (Amar Foi a Minha Perdição, 1945), a comédia negra, very british, faz-se em The Trouble with Harry em glorioso Technicolor. Ainda que o negro esteja lá, nos ecrãs negros que separam diferentes sequências em lugar de uns suaves fondus. O corte seco justifica-se, porque este é um filme de consecutivos inícios. Em cada novo autor do crime que se perfila, há um novo enterrar / desenterrar do cadáver.
Estranha cidadezinha esta que parece saída de um conto de fadas. Os seus habitantes reduzem-se quase integralmente às personagens falantes, sendo um desafio encontrar figurantes (um deles será o próprio Hitchcock no seu costumeiro cameo), ainda que seja possível ouvir – mas não ver – sinais de outras presenças humanas, no barulho de crianças que brincam ou no ruído dos carros que passam na auto-estrada. Neste aspecto é um filme atípico, porque no oposto das habituais multidões hitchcockianas onde os falsos e verdadeiros culpados podem perder-se (por exemplo, as tais referidas por Sam, os milhões de pessoas que passam na Quinta Avenida, em Nova Iorque). O grupo de personagens de The Trouble with Harry é uma pequena família, mas que não nutre quaisquer sentimentos de familiaridade ou comunhão entre si. Cada um age em função do seu interesse próprio ou arrastado para os motivos do outro. O cenário explode de cor, a música tem um tom pueril, o genérico é feito de desenho inocente (da autoria de Saul Steinberg, não creditado), mas o que se passa aqui é muito negro. E o que Hitchcock tem a dizer em The Trouble with Harry a propósito da idílica pequena povoação americana, embora em termos bem diferentes de Shadow of a Doubt (The Trouble with Harry segue uma via bem mais sirkiana, feita de beleza exacerbada, cores que explodem na tela e perfeição enganadora), é tão profundo quanto no filme de 1943.
Ainda não decorreram dez minutos de filme e o cadáver de Harry já foi pontapeado pela simpática Miss Gravely (Mildred Natwick) e já serviu de instrumento para o Capitão Wiles (Edmund Gwenn) arranjar um date com a dita senhorita. The Trouble with Harry mais não é do que um catálogo completo de actos que poderiam configurar um crime de profanação de cadáver [nem o cadáver de Weekend at Bernie’s (Fim-de-Semana com o Morto, 1989) foi tão fustigado], culminando na humilhação maior de ser desprezado pela própria mulher, com Jennifer (Shirley MacLaine) a afirmar “You can stuff him, for all I care. Stuff him and put him in a glass case, only I’d suggest frosted glass.” Em contrapartida, se há algo de que estas pessoas não podem ser acusadas é de desonestidade. Ninguém tem pejo em admitir os seus actos ou em dizer o que pensa. As desonestidades são guardadas para outos propósitos, para possibilitar certos encantamentos românticos – Miss Gravely que tenta ocultar a sua real idade ou criar a narrativa de uma chávena de porcelana que vive há muitos anos na sua família [mas que, na verdade, acabou de ser comprada na loja de Mrs Wiggs (Mildred Dunnock)].
Embora não seja o primeiro título que vem à memória quando se pensa em Alfred Hitchcock, este não é um filme menor na sua obra. Desde logo, pela questão essencial que perpassa toda a história e que é um tema de eleição de Hitchcock – a culpa (assim como uma exacerbada aversão à polícia). A culpa de todos que é de nenhum. Que melhor forma haverá de pensar a culpa do que imaginar um mundo onde ela não existe, o crime sem castigo, exógeno ou endógeno? Só o cadáver é culpado – culpado de ser demasiado bom (“horribly good”), e culpado de ser um chato que acredita em horóscopos (e talvez John Forsythe seja também culpado de estar pouco à-vontade como Sam Marlowe, com demasiados maneirismos, uma versão “Um Americano em Vermont” em lugar de “Um Gene Kelly em Paris”). O Capitão Wiles chega mesmo a declarar “I haven’t got a conscience and it’s not heaven that’s worrying me ‘cause I don’t expect I’ll ever have to face it. And it’s none of those noble things you were talking about, no. Nothing like that.” Por outro lado, existe uma outra circunstância que leva a que este filme tenha um lugar especial na filmografia do mestre inglês: é em The Trouble with Harry que se reúne, pela primeira vez, a totalidade da dream team de Hitchcock – Robert Burks na fotografia, Bernard Herrmann na música, Edith Head no guarda-roupa.
Se há algum prurido ou desconforto no lidar com a morte, ele estará do lado do espectador, não das personagens do filme. E até mesmo esse desconforto vai desvanecendo, porque o espectador vai aceitando essa leveza, essa forma de pragmática de lidar com um empecilho chamado Harry. Consoante vão matando mais vezes e mais vezes vão desrespeitando o cadáver, a nossa indiferença vai também aumentando, a gravidade do acto parece ir diminuindo. Enfim, como afirma o Capitão Wiles, “preserves have to be opened, some day”, o que talvez explique a recorrente necessidade de roubar Harry ao seu (eterno) descanso.
Curiosamente, se não existe incómodo no lidar com a morte ou no lidar com o morto, tal não impede que exista desconforto naquilo que pareceria mais inócuo – o discurso. Quando Miss Gravely convida o Capitão Wiles para sua casa, para os prometidos blueberry muffins acompanhados da chávena de café muito máscula, por diversas vezes tropeçam no tema da morte, o que lhes causa algum embaraço. Estas são as mesmas pessoas que não mostram qualquer pejo em incomodar um cadáver, enterrando-o ou desenterrando-o conforme melhor sirva os seus propósitos. O desconforto pode existir nas palavras, mas não nos actos.
Mas se a morte está em cada acto deste conjunto de pessoas, a lista de desejos que ditam a Sam prova que eles estão bem vivos, nos sentidos e sentimentos que ela abarca: o paladar dos morangos, o som da caixa registadora (“one that rings a bell”, com Mrs Wiggs a mostrar que tinha esse desejo na ponta da língua), o conjunto de química malcheiroso para Arnie (Jerry Mathers), o baú de enxoval que alimenta a esperança de Miss Gravely, o equipamento completo que alimenta os sonhos de heroísmo do Capitão Wiles. E, claro, a cama de casal pedida por Sam.
Em defesa desta comunidade tão pragmática na sua forma de “despachar” os problemas que se vão atravessando no caminho, diga-se que a displicência se aplica também a outras vicissitudes da vida. Assim sucede no pedido de casamento de Sam a Jennifer, primeiro posto em espera por ela, aceite pouco tempo depois, com Sam a responder que até já se tinha esquecido que a tinha pedido em casamento (sendo verdade que ele promete um casamento “peculiar”, vivido em liberdade – talvez essa liberdade comece já aqui). Será que o facto de Jennifer dizer “sim” é apenas uma forma de, finalmente, levar Sam a aceitar a sua limonada?
Quando os carrascos morais de Harry o limpam e lavam as suas roupas, livram-se também conjuntamente de qualquer réstia de culpa que possa tê-los maculado (até Sam seria passível de ser suspeito, porque deseja Jennifer, isto mesmo independentemente de apenas ter conhecido a viúva de Harry quando ela era já viúva). Harry é extraído da natureza, subtraído à sua tendência para tornar-se adubo. Harry nunca fere a beleza da natureza, mas vai sendo absorvido (e expelido) por ela. Hitchcock deliberadamente nunca mostra o cadáver como feio ou desagradável. É apenas um corpo, dorme em cima ou por baixo da terra, e vai tornar-se também ele matéria orgânica. Tão-só a natureza a funcionar. Segundo a viúva, Harry tinha o mesmo aspecto vivo que tem agora morto, apenas era mais vertical (e, já dizia Lorenz Hart em Bewitched, Bothered and Bewildered – “horizontally speaking, he’s at his very best”).
É justamente a horizontalidade que proporciona o inusitado plano da planta dos pés. Os pés irão surgir em diversas cenas – os do próprio Harry (calçados, de peúgas, nus ou como sombra projectada na parede), os que o pontapeiam (Miss Gravely e o vagabundo), ou o pé de Calvin Wiggs (Royal Dano), que revela o retrato de Harry. Harry – Os Pés a Seu Mundo. O facto de finalmente ter recuperado os sapatos poderá ter contribuído para o fim dos seus problemas.