Fechámos a primeira parte desta crónica com a réplica do acidente mortal de James Dean, operada por Vaughan, que reiterava o valor do simulacro, na concepção de Jean Baudrillard e demonstrava a potência fertilizadora dos embates rodoviários, designadamente das figuras do pódio da paisagem dos media, que assim se metamorfoseavam em lendas.
Algumas sequências depois, Vaughan confessa a Ballard o desejo de conduzir um automóvel amolgado, um automóvel com História, como o Facel Veja de Albert Camus ou o Rover 350 de Grace Kelly. O cientista diz-lhe que faria uma reparação mínima, apenas o suficiente para que o automóvel pudesse andar, sem o limpar, sem tocar em nada. James pergunta-lhe, então, se é por essa razão que conduz um Lincoln e se vê o assassinato de Kennedy como um género particular de acidente rodoviário. A formulação do protagonista é como uma proposta para um dos simulacros de Atrocity Exhibition (1970), o romance experimental de Ballard que antecipou Crash. Depois, Vaughan mostra mais fotografias de simulacros de acidentes, na preparação da colisão de Jayne Mansfield. A imagem participa da ideia de simulacro, intensifica-o, como se lhe desse corpo: sem a imagem o simulacro é como se não tivesse ocorrido, desprovido do poder que lhe é intrínseco. O cientista, como um predestinador, anuncia então a James o futuro no qual eles já estão a participar, no desenvolvimento de uma psicopatologia benevolente que lhes acena, um conceito que o escritor desenvolveu como uma escapatória à possibilidade de um mundo sem imaginação, assente no tédio do subúrbio. O experienciar, então, do acidente de automóvel permitiria uma libertação de energia sexual, que materializaria a sexualidade dos que morreram, com uma intensidade impossível de outra forma.
Como em outros filmes de Cronenberg, as imagens não são suficientes, os personagens precisam de altercar os seus argumentos, aqui apoiados na Literatura, para concretizarem as suas teses. O simulacro do acidente de Jayne Mansfield ocorrerá num desaguar de uma enorme procissão de automóveis, como aliás os diálogos de vários personagens tinham antecipado, como se todas aquelas faixas de estradas se encaminhassem para um espéctaculo para o qual todos foram convocados. O Lincoln que transporta Vaughan, James e Catherine chega ao local já depois do embate, que envolveu vários veículos, entre eles o duplo contratado pelo cientista para interpretar a loira voluptuosa, que morreu aos 34 anos num violento embate. O local é como um estúdio gigante e iluminado pontualmente, onde equipas partem as carroçarias com máquinas de corte, para desencarcerar os passageiros. Catherine passeia-se no cenário como um modelo de Helmut Newton, até que se coloca junto das vítimas para ser fotografada por Vauhgan, para intensificar o simulacro. James Ballard, como quase sempre é o observador, o escritor que recolhe experiências para alimentar a sua imaginação, que acumula material para consolidar a sua tese.
A sequência na oficina serve para apresentar com mais detalhe Vaughan, que se insinua como um Dr. Frankenstein na apresentação a James do seu projecto. Ballard folheia um dossier que mescla, sem diferenciação, imagens de acidentes rodoviários e encontros sexuais em automóveis. Há várias imagens que mostram Gabrielle (Rosanna Arquette) mutilada pelo seu acidente e as próteses entretanto aplicadas no seu corpo, em algo que se desenvolverá como um tema dentro do filme. A consulta de James também encontra imagens do seu embate e dos encontros sexuais com Helen. Enquanto o protagonista observa aquelas imagens, Vaughan junta o seu rosto muito próximo de James, como se pretendesse farejá-lo como um animal. Esse olhar potente de Vaughan já tinha ocorrido quando o cientista se cruzou com James no hospital e observou as suas lesões, escoriações e cicatrizes com uma intensidade bizarra. No mesmo quadro juntam-se, então, os apetites dos personagens de Ballard pelos instintos primários com um projecto futurista, que mais à frente Vaughan dirá que é um conceito de ficção científica grosseiro, mas que aqui formula como “a remodelação do corpo humano através da tecnologia moderna” (cita-se aqui e ao longo desta crónica Chris Rodley em Cronenberg on Cronenberg).
Depois desta sequência e da apresentação dos personagens principais, os pares metamorfosear-se-ão em trios, em mais uma tentativa de transformar a geometria do quotidiano, de sacudir o tédio. Com planos sequência de três personagens que se masturbam num movimento e escala idênticos ao que Cronenberg usara para atravessar as chapas dos automóveis amolgados após o embate, as primeiras possibilidades de trio são dispostas em sequência: primeiro no Lincoln de Vaughan, que o junta a James e a Helen, depois na oficina com Gabrielle a substituir Helen e finalmente na estrada no insinuar e posterior perseguição de Vaughan ao pequeno automóvel de Catherine, com James a assistir (num papel que se replicará) na outra faixa. James acabará por proteger a parceira do embate, ao colocar o automóvel entre Vaughan e Catherine. Mas, na cena seguinte, no leito do domicílio conjugal, é Vaughan quem alimenta as fantasias do casal, através das suas cicatrizes, das marcas indeléveis de acidentes e encontros sexuais. Catherine pergunta a James se ele gostaria de fazer sexo com Vaughan naquele automóvel; antes já lhe havia sussurrado uma cadeia de frases: “Ele deve ter feito sexo com inúmeras mulheres naquele carro enorme. Parece uma cama com rodas. Deve cheirar a sémen rançoso”. É um acto sexual demorado, uma excepção no filme, que demonstra a potência da evocação do corpo e das acções de Vaughan. Cronenberg cortará para mais uma cena de sexo, com James e Helen no parque de estacionamento, com a médica a enumerar as relações sexuais que manteve com vários parceiros, sempre em automóveis, sabendo que Vaughan as fotografava, fantasiando que se tratavam de acidentes rodoviários, em mais uma equivalência entre sexo e acidente. Cronenberg define este “desejo de explorar a excitação sexual na colisão de automóveis” como “sexo tecnológico”. O realizador não está a dizer-nos que uma grande quantidade de pessoas poderia “replicar por aí” esta metáfora de Ballard, mas o filme coloca “pressão no inconsciente” porque muitas destas acções já “esvoaçaram através da nossa mente, em uma ou outra situação”. Cronenberg atribuiu o engenho ao imaginário do escritor que conseguiu, na forma como abordou certos aspectos, “excitar-nos” e “surpreender-nos”, e exemplificou com “as descrições de sémen no volante e nos instrumentos do painel do automóvel”.
Cronenberg também revelou alguns dos princípios nas opções relativas a “onde colocar a câmara”, sem utilizar “as manhas do costume”, escapando ao uso das “lentes de grande angular, porque é muito distractivo”. O cineasta procurou “sugerir as pessoas embrulhadas nos seus automóveis”, traduzido em enquadramentos “invulgares”, através da “construção de plataformas”, para estabelecer um quadro mais “puxado para o exterior do corpo do automóvel”, para que “o pilar do para-brisas ficasse a meio” da distância, sendo o restante quadro uma perspectiva externa do carro. Também as sequências de colisões automóveis evitaram soluções vulgares e espectaculares, como a utilização do slow motion. Cronenberg pretendia que os embates “fossem rápidos e brutais”, “realistas de forma cinemática”, sem a repetição de planos, o que resultou em algo que “pode ser saboreado e apreendido pelos sentidos”, mas despido de artifícios, pois “muitos de nós não têm aceso à repetição dos seus acidentes”.
O terceiro acto de Crash conjugará a convocação de dummies (mais uma afinidade com os manequins de Helmut Newton), próteses e cicatrizes, na rima com a chapa amolgada e os materiais e acções da máquina, na preparação da resolução da narrativa. Como um eco das repetições dos simuladores dos acidentes rodoviários (com manequins) a que os personagens assistem repetidamente no televisor, Vaughan convida uma prostituta para o banco de trás do Lincoln, conduzido por Ballard, mais uma vez no papel do observador. Vaughan articula os membros e o resto do corpo da mulher como se ela fosse uma boneca mecânica, a quem ele dá movimento com fortes golpes, que invertem ou confundem os elementos humanos com os mecânicos, numa clara homenagem às bonecas do fotógrafo Hans Bellmer. O automóvel em movimento transforma o sexo das fotografias em cinema, em imagens em movimento, emparelhando a história do automóvel com a arte popular do século XX.
A sequência da lavagem automática substituirá a prostituta por Catherine, numa réplica expandida. Catherine é, então, a modelo, na acoplagem da máquina com o homem, ao ritmo do trabalho dos mecanismos da lavagem, como as criaturas do delírio de The Naked Lunch (O Festim Nu, 1991) que se agitavam mecanicamente ao ritmo do sexo dos personagens. As escovas dançam em cima do automóvel e produzem espuma como um jorro de sémen que acompanha o acto sexual de Vaughan e Catherine, um bailado em vários andamentos, que James observa pelo espelho do Lincoln. Vaughan morde Catherine e dá-lhe movimento, estica-lhe os membros como se lhe testasse o limite das articulações, procurando rimar com os ritmos da máquina de lavagem, como se fosse uma unidade, um ensemble orgânico, que mais uma vez cita as possibilidades enunciadas por Bellmer e pelas incontáveis posições de desejo das suas bonecas articuladas. Vaughan parece ele próprio uma máquina que penetra outra máquina, a dummie Catherine. As acções dele são primitivas, de uma força que Catherine parece tentar conter, mas sem evitar que o seu corpo adopte posições peculiares, como uma boneca desarticulada. O sémen nas mãos dela, no fim da sequência, tem a mesma aparência de óleo de motor, como uma equivalência entre as formas. Logo a seguir, no leito conjugal, o casal dilata a experiência da máquina de lavagem, com as acções de Vaughan no pensamento dos dois; e James acaricia as mazelas e escoriações nos membros de Catherine. As guitarras metálicas, que haviam soado desde o genérico numa rima notável com as carroçarias e a estridência do metal, são substituídas na sinfonia de Howard Shore pelo ensemble de arpas, na adopção de um tom trágico, de uma melodia de uma ópera.
As próteses de Gabrielle, como outros instrumentos empregues pelos personagens de Cronenberg, funcionam como extensões de um corpo transformado, modificado pela tecnologia. A sequência do teste do automóvel por Gabrielle é exemplar na paródia que também pontua o filme. O vendedor é modelar na tentativa frustrada de lidar com aquele corpo transformado pelos mecanismos das próteses. A concepção da boneca articulada, presente em sequências anteriores, é expandida na cena de sexo entre James e Gabrielle no parque de estacionamento. Os movimentos dos instrumentos do habitáculo do automóvel rimam com as oscilações das próteses de Gabrielle, que James coloca em posições inusitadas, como um bom aprendiz de Vaughan, para lhe observar as cicatrizes e depois as penetrar, como se inventasse novos órgãos sexuais, um sexo futurista, de novas e incontáveis cavidades que se podem explorar. Cronenberg diz que aproximou a sequência ao que estava no livro e que segundo ele é coerente com “o que está a acontecer àqueles personagens” naquele contexto, pois estão a ser envolvidos “numa estranha sexualidade”, como uma “mutação, não genética, mas física”, através de “cicatrizes, colisões de automóveis e auto-mutilação”.
Vaughan desafia James a fazer uma tatuagem no hospital, numa imitação dos efeitos de um acidente. Vaughan pede para a médica não executar uma tatuagem clínica (limpa), pois ele pretende uma tatuagem profética, e as profecias devem ser rugosas, ásperas, irregulares e sujas. A tatuagem de James traduz-se na projecção do dístico icónico do seu automóvel, que depois Vaughan lamberá como um canídeo, num acto tão primordial (e ancestral) quanto futurista e transformador, no sentido da concretização do projecto do cientista renegado, no preliminar do sexo com o parceiro. Por seu lado, Vaughan escolheu a forma do volante do Lincoln tatuado no peito, uma das invenções de Cronenberg relativamente ao romance e que antecipava “aquele volante queimado no peito após uma colisão automóvel”.
O sexo no Lincoln ocorre, mais uma vez, num lugar peculiar, junto a uma estrada, a uma bomba de gasolina, a armazéns desertos, espécie de fim de mundo, onde despontará uma sucata – a paisagem pungente de Ballard, de acumulação de memórias, acções, sexo e pathos que concorrem para todos aqueles veículos e no diálogo com todas as cicatrizes dos seus ocupantes, da mesma forma que a nova cicatriz de Ballard dialoga com a colecção de cicatrizes de Vaughan. Eles são duas criaturas de J. G. Ballard: cheiram-se, lambem-se, violentam-se. Depois de Vaughan ser sodomizado por James, irá embater o seu Lincoln contra o automóvel sucatado onde repousa James, como uma colisão entre as emoções acumuladas naquela paisagem e as emoções dos dois homens. Na sequência seguinte, James acaricia a chapa amolgada do automóvel de Catherine, que James pensa ter sido causado pelo embate de Vaughan, como tinha acariciado as cicatrizes do cientista. Cronenberg fala-nos do uso crescente em “pessoas da classe média de brincos nas sobrancelhas e outras coisas do género” e essas pessoas certamente ficariam “mortificadas se lhes disséssemos” que aquelas opções remetem para “a auto-mutilação, ou algo mais primitivo”, próximo da “escarificação”, mas aqui sem a “justificação das estruturas ritualísticas tribais”.
Relembramos a abertura do romance de Ballard e a sequência da morte de Vaughan, na sua tentativa de se imolar no embate contra o veículo onde seguia Elisabeth Taylor. Cronenberg removeu, então, a sobrevivente do star system, e atirou a morte do cientista para muito próximo do fim da narrativa, mas em circunstâncias muito próximas do livro: numa bola de fogo após o embate deliberado com um autocarro, o que resultou numa espécie de escultura viva do Lincoln, num clarão no meio da noite, rodeado de outdoors publicitários, num acontecimento que o próprio predestinara, e que identificara como fertilizante e não destrutivo. A antecipar a morte do cientista, Cronenberg revela-nos a sua dupla natureza. O quadro aproxima-se vagarosamente do Lincoln, num longo plano sequência, que descobre no personagem um Frankenstein, depois de criador ele é agora a criatura transformada, mas também deformada, que já não pertence a este mundo.
O casal resgatará o Lincoln de Vaughan e seguirá os preceitos de Vaughan: consertam-no apenas o suficiente para que volte a andar. Uma perseguição final, do Lincoln conduzido por Ballard, que após um conjunto de transgressões, de mudanças de faixa e de quase colisões sobre o piso molhado, embaterá e empurrará para fora da estrada o pequeno automóvel de Catherine, à caça do derradeiro orgasmo. “Talvez para a próxima, querida”, é o que murmura James ao ouvido de Catherine na emoção do reencontro dos corpos no relvado, sob o automóvel capotado, que o ensemble de cordas de Howard Shore tinha preparado. O corpo dela junta as feridas à vegetação e aos vapores que se soltam da máquina como um todo orgânico que James penetra à procura do prazer último, de um ensemble orgânico, no delírio da psicopatologia e no triunfo da imaginação de Ballard.
Cronenberg confessou que o mais surpreendente de Crash é ter-se tornado “um filme muito comovente”, algo que “não se diria do livro”. Uma boa parte das pessoas “ficavam bastante abaladas”, “emocionadas”, o que é “óptimo”, pois o filme não usa truques na relação com espectador, nem “puxa nenhuma das teclas habituais”. E à pergunta se concordava com Ballard, que gostava muito do filme e dizia que é ainda mais extremo do que o livro, o cineasta começou por dizer que no romance “estamos na cabeça do personagem James Ballard”, “um monólogo interior”, dispositivo com que a ficção conquistou uma beleza a que o cinema não consegue naturalmente aceder. É claro que ele ficou “encantado” com a avaliação de Ballard e sem ser preciso apontou a “diferença devido ao medium”: “a urgência da realidade cinematográfica pode fazer isso por conta própria”.