A programação do Festival de Locarno, na Suíça (7 a 17 Agosto), é dividida em diferentes secções que, para os acreditados online, possibilita o visionamento de alguns dos títulos em exibição, tanto nas secções competitivas como nas secções regionais e curatoriais. Do conjunto de curtas-metragens reunidas na secção genérica Pardo di Domani, que reúne o Concorso Corti d’Autore, Concorso Internazionale e Concorso Nazionale, e por entre a profusão de narrativas de experimentação elíptica, curtas-metragens de observação e confrontação com a desilusão, e títulos que trabalham a paisagem como extensão de um discurso de referências que procuram validação, impõe-se alguns títulos, certamente motivados por leituras paralelas e temporalmente coincidentes.
Três filmes parecem inscrever-se na pergunta feita por Judith Butler no livro Corpos que Contam (1993): “Serão os corpos puramente discursivos?” E, na resposta, uma linha que atravessa e destaca uma secção que toma o pulso ao presente e namora a ideia de um cinema de tese, onde a imagem é palavra e a montagem o que de mais próximo existe de discurso. No centro, claro, o corpo, matéria continuadamente misteriosa e, no cinema, sublinhada na sua condição de hipótese falsamente material.
No caso de La Fille qui explose (2024), de Caroline Poggi e Jonathan Vinel (realizadores que já vimos no Curtas em 2014 – Tant qu’il nous reste des fusils à pompe – e 2017 – After School Knife Fight – e com retrospetiva integral em 2019 no IndieLisboa e regresso em 2022 – Il faut regarder le feu ou brûler dedans – e 2024, com o filme surpresa Eat the Night), é de resistência ativa contra as formas e as normas, face a uma impossibilidade evidente, que se fala, num filme onde os corpos animados a partir do real são construídos num desenho que não distingue, como a personagem feminina, interior e exterior, ou objeto e função, propondo uma relação entre real e imaginário assente num desejo de existência para lá do plano material.
Os filmes de Caroline Poggi e Jonathan Vinel, Anton Bialas e Carlos Pereira, na competição de Locarno 2024, criam inesperadas leituras fílmicas para uma reflexão marcante de Judith Butler.
Candice, a rapariga, explode sem razão, e renasce como se devesse aprender não necessariamente a antecipar o fim, mas a explorar a intensidade do pré-explosão. Mais do que uma metáfora sexual, La Fille qui explose, é um exercício de análise narrativa sobre o poder da linguagem, do discurso e da perceção, vivendo no material do desaparecimento a possibilidade de regularidade. Escreve Butler: “A linguagem e a materialidade estão completamente imbrincadas uma na outra, têm uma interdependência quiásmica, mas nunca se reduzem inteiramente uma à outra, nem nenhuma jamais ultrapassa inteiramente a outra” (p.102).
É neste filme discursivo, narrativo e palrante, onde uma cidade a espaços reconhecível é cenário expressionista e espelho de impressões de uma protagonista que, num brevíssimo espaço de tempo, se apresenta, se metamorfoseia e duvida da sua persistência, ainda que dela não desista. Citando Butler para fornecer pistas de interpretação, são ações “ao serviço de uma fantasia de domínio e recuperação” (p.103). Num certo sentido, compreender a cidade, para compreender o corpo, compreender-se a si para entender os outros, indo o filme ao encontro de um primado fixado por Butler como central no que há de comum entre corpo e discurso: “A linguagem, que é o efeito deste deslocamento, não deixa de carregar o vestígio dessa perda precisamente com o intuito fantasmático de recuperação que mobiliza a vocalização” (p.103).
No filme, como no que dele se perceciona, o corpo explodido – o corpo exposto – é caminho para uma reflexão niilista sobre a vontade e a necessidade, não sobre a esperança ou a redenção, mas sobre a força e a aprendizagem e sábia gestão da memória e das armadilhas do quotidiano. É, ainda, sobre gerência de expetativas sem desilusão ou ambição. É, afinal, um filme com muita vontade de estar e de ser presente, por mais distópica que a realidade se apresente.
Num estranho sentido, o do controlo de si por incapacidade de controlo sobre o outro, vai também Ludwig (Power Inferno) (2024), de Anton Bialas (passou pelo DocLisboa em 2019 com Behind Our Eyes), apresentado em competição, é igualmente exercício de imaginação esculpido a partir dos textos de Joris-Karl Huysmans, onde as dobras da palavra, dos sentidos fazem da sedução, da força e do poder espelho bastante aproximado de Louis II da Baviera, para lá do prazer estético de Visconti, muito mais perto da perversa relação entre matéria e posse na qual se estruturam as óperas de Wagner.
O filme, intensamente narrado quanto é explicitamente exposto, apresentará um corpo, o do realizador, num longo ato de masturbação de evidente desejo de se saber visto, como se na redução a esse duplo prazer, pudéssemos encontrar o ponto fulcral da obsessão de Ludwig por Wagner, e de Visconti por Helmut Berger, já para lá da representação em Ludwig (1973). O que Bialas faz é de um despojamento irresistível, como por vezes pressentimos nos romances de Alain Giraudie ou no cinema de Albert Serra, que ecoa a referência usada por Judith Butler a partir de Lacan: “os corpos só se tornam inteiros, isto é, totalidades, idealizando e totalizando a imagem espetacular sustentada no tempo pelo nome sexualmente marcado” (p.106).
Em Ludwig (Power Inferno), o ego é o desejo, o corpo é a matéria em que o filme se queima.
Em Ludwig (Power Inferno), esse nome é o do rei e o do compositor, mas o corpo do realizador existe enquanto tal na construção dessa personagem, pelo modo como a projeção se ativa a partir da observação do espetador que sabe que, pela evocação referencial, se tornam materiais os fantasmas e as fantasias. Obra na fronteira entre o prazer hierarquizado e o gozo estético profundo, opera o que se define como “a formação do ego corporal e a sua marcação pelo sexo” (p.107), ao investir num dispositivo formal e limitado – uma cama que é como a gruta onde Ludwig quis construir o seu teatro de ópera – vista depois através de um texto que corre o ecrã, como a página de um livro marcado já pela leitura objetiva e condicionada dos textos de Huysmans, onde a própria imagem do realizador-ator, e o desejo que demonstra/provoca, são o que de mais próximo existe de aprisionamento e alheamento do real. “O ego é literalmente um objeto – objeto esse que cumpre uma função a que chamaremos imaginária”, lembra Butler citando o Le Seminaire, Livre III, de Lacan. Em Ludwig (Power Inferno), o ego é o desejo, o corpo é a matéria em que o filme se queima.
Também Icebergs (2024), de Carlos Pereira (que também esteve em Locarno no ano passado com Slimane, que passou por vários festivais, e recentemente por cá no IndieLisboa e no Curtas, onde foi premiado), igualmente em competição, é filme que não se revela por inteiro, porque é da sua natureza, pré-existente ao próprio filme, que observa sem cessar até à inevitável interrupção. Filme de espera, como já o era Slimane, que esperava, e por nós, nos corpos de quem procurava a vida depois da interrupção. Icebergs surge como filme-instalação porque parece querer encravar as personagens – mais correto seria dizer, as sombras e as expetativas que aqueles corpos representam – numa geografia visual mas sobretudo sonora, em que espaço e tempo não denunciam se está tudo por começar ou chegamos demasiado tarde, como nas peças de Henrick Ibsen.
Em Icebergs tudo são elementos de uma só superfície, de um drama de deslocação, de inusitada perda de referência, de permanência por inevitabilidade, mas por isso, por demais trágica.
Uma sauna, uma sala de cinema, uma zona industrial cenário de crime, o detalhe de um carro em andamento sem que saibamos para onde, uma estufa, o interior de um vaso, a cabeça encravada no apoio de um sofá, um corpo escondido noutro, abraçando-se, e o mesmo gesto com um animal, aparentando tornar-se só um, no contraste com corpos que dançam num só compasso, mas sobretudo como se não quisessem ser vistos, de frente e como se para um altar, em transe que se gere com custo, sobretudo um corpo visto como velho, talvez cansado, quem sabe sem esperança, que encontra no canto que a chuva forte vai trazendo o mesmo drama dos marinheiros de Ulisses, encantados e desgraçados. E, o corte que nos afastará com a mesma violência com que a espera revela os corpos, os espaços, os rostos, a espera, a repetição da palavra “dança”. Escreve Butler, que “como imaginário, o ego enquanto objeto não é interior nem exterior ao sujeito, é lugar permanentemente instável onde perpetuamente se negoceia essa distinção espacializada; é esta ambiguidade que marca o ego como imago, ou seja, como relação identificadora” (p.111).
Onde Slimane nos havia deixado, espera-nos, agora, um ensaio de observação, como se já desistente e, por isso, sabedor do abismo. À narrativa fluída de um homem que procura, no que será o Inverno da sua vida, um sentido e um espaço – ou um discurso no outro – acrescentam-se espaços, mas sobretudo uma construção sonora, onde alternam escalas entre a paisagem deserta e um detalhe que parece ter vida: o cinto de segurança do carro, o vaso com raízes salientes, o ferro que ofusca o cavalo, a porta entreaberta, mais chuva que luz, os diálogos do filme que se vê na sala de cinema, são tudo elementos de uma só superfície de um drama de deslocação, de inusitada perda de referência, de permanência por inevitabilidade, mas por isso, por demais trágica.
Talvez seja necessário admitir o confronto com o fim, que o filme introduz quando, habituados que parecemos ter ficado ao espaço, à luz e às presenças, a montagem nos retira desse lugar e nos projeta para uma referência contrastada. É como se o próprio realizador, caminhando na direção oposta de Slimane, onde nos deixava sozinhos com a imagem, depois que as próprias personagens abandonavam o campo, quisesse salvar a inevitabilidade da sua narrativa. Cada corte, abrupto, encadeado, driblando a nossa própria expetativa, serve de alerta, de compasso, marcando os passos até à queda. E, do observador que o realizador é, transforma-se no observado, e atira-nos para fora do filme, num final de surpreendente violência, depois de nos ter seduzido com a misteriosa música que ultrapassava a chuva.
As citações são retiradas da edição portuguesa pela Orfeu Negro, 2023, com tradução de Rui Leitão.