Tim Burton começou a sua carreira nos anos 1980 como aprendiz-de-animação na Disney, onde trabalhou como animador, designer gráfico, entre vários outros poleiros, em filmes como The Fox and the Hound (Papuça e Dentuça, 1981) de Ted Berman, Richard Rich e Art Stevens, ou The Black Cauldron (Taran e o Caldeirão Mágico, 1985) de Ted Berman e Richard Rich. Contudo, a sua estética não se coadunava com a da Casa. Fez a sua primeira curta-metragem em stop-motion com Vicent (1982), uma homenagem a Vicent Price com narração do próprio, mas foi com Frankenweenie (1984) que chegou a uma momento decisivo. A Disney despede-o — por usar meios da empresa para criar uma história que não poderiam mostrar a crianças por poder causar medo (sempre curioso como não viram o potencial de alguém que mais tarde faria reinterpretações das suas histórias clássicas, com o seu cunho pessoal), essa emoção que faz tão parte da infância — mas o Paul Reubens, cara-corpo-e-espírito de Pee-wee Herman pede-lhe que realize o Pee-wee’s Big Adventure (A Grande Aventura de Pee-wee, 1985), o salto para o grande ecrã deste excêntrico personagem e o mundo-recreio perfeito para Tim Burton exercitar o seus músculos. Seguem-se Beetlejuice (Beetlejuice – Os Fantasmas Divertem-se, 1988) e Edward Scissorhands (Eduardo Mãos de Tesoura, 1990) e a catapulta leva-o até ao blockbuster que foi o seu Batman em 1989.

Tim Burton mudou muita coisa no cinema americano. Trouxe uma estética específica ao mainstream, o seu pendor para o gótico, aterrador e melodramático — e a sua sensação de alienação na juventude. Um rapaz com os gostos mais virados para tudo o que fosse temperamental, sombrio ou macabro, e preso na plasticidade e radiância da Califórnia. Obviamente influenciado pelo expressionismo alemão, pelo seu uso de distorção de proporções, de contrastes de cor ou formas arquitetónicas que são usadas para tornar a realidade um pouco “cartoonesca”. Há também muito da imagética dos esqueletos do Dia dos Mortos mexicano e ainda mais da estética gótica, ligada ao seu amor a Vicent Price, Edgar Allan Poe, cemitérios e todos os seus clichés como heróis torturados, amores trágicos, cenários sinistros e o gosto pelo grotesco. A beleza do toque do realizador foi trazer tudo isto à cena, mas juntar algo muito próprio da maneira como cresceu. Falo da ideia do suburbanismo idílico e de como tudo o que é sinistro e sombrio (gótico e expressionista) pode estar à espreita ou escondido, pronto para dilacerar o banal quotidiano, especificamente a sua retidão.
essa ideia explorada no filme original (e noutros tantos) do suburbanismo idílico e nas coisas sombrias que podem estar escondidas mas tão perto do quotidiano — tudo isso parece ausente deste filme.
Falo de tudo isto porque, a certa altura, especialmente com Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas, 2010), de novo com a Disney, a estética e especialmente uma estética completamente marcada pelos efeitos digitais — quando o realizador tinha prosperado com o seu uso engenhoso de efeitos práticos — vem tornar o seu cinema meramente estilo, sem substância. A sua alienação juvenil talvez ultrapassada com a apropriação e normalização da sua estética pela cultura popular, Burton deixa de conseguir filmes que vão mais fundo do que algo superficial ou simplista — contrastando com a forma como uniu estética e substância (narrativa, emocional, etc.) com os seus filmes anteriores. Para mim, há um antes e depois de Alice in Wonderland. Mas há também um antes e depois de Dumbo (2019), uma última colaboração com a Disney em que novamente o visual avassala tudo o resto.
Eis que chegamos a Beetlejuice Beetlejuice (2024), um retomar de um filme que é das mais claras definições do que é “burtonesco”. O Beetlejuice original é o filme que vem depois de Pee-wee’s Big Adventure e que o vê a construir o seu mundo fantástico, uma comédia que pega num casal de residentes de uma localidade no Connecticut, longe da vida citadina e prontos para umas férias em que vão ficar a tratar da sua bela casa de vários andares, que morrem num acidente de viação. Tornam-se fantasmas, chegam novos residentes à casa e o casal decide tentar expulsá-los usando um difícil de compreender Handbook for the Recently Deceased. Para Burton, a morte é estranhamente cómica e não longe de uma longa estadia na Loja do Cidadão. O filme tem como energia motora tanto uma aversão à burocracia como ao capitalismo e a uma ideia de vilões citadinos yuppies que vêm usurpar a paz e sossego não só dos Maitlands, mas de todos nós. A figura do próprio Beetlejuice é uma espécie de força anárquica que, sendo repelente, é o fogo necessário para a mudança de todos estes personagens. Juntamos à trama uma sequência musical fruto do assombramento do nosso casal recentemente morto (uns maravilhosos Alec Baldwin e Geena Davis, como Adam e Barbara), uma fulgurante Winona Ryder, uma hilariante Catherine O’Hara e o Michael Keaton em modo completamente desbravado e temos um filmes que une na perfeição a comédia e o horror gótico de Tim Burton. Tanto que na minha infância, ao ver o filme pela primeira vez, assumi que o meu pai me estava a mostrar um filme de terror, chegando a comédia aos poucos à minha percepção do filme.

Beetlejuice Beetlejuice chega de forma diferente aos nossos colos, ou olhos, como preferirem. Uma espécie de “regresso às raízes”, Burton volta ao local onde se deu bem e se sentiu confortável, a ruralidade suburbana de Winter River, a burocracia da morte, a linha fina entre os Recently Deceased e quem estes assombram. Regressam, ainda, vários dos actores inicialmente envolvidos, nomeadamente Keaton, Ryder e O’Hara — juntando agora Jenna Ortega, Justin Theroux, Willem Dafoe e Monica Bellucci à mistura. Burton e Ortega trabalharam juntos antes numa série da Netflix que terá uma segunda temporada, Wednesday, que segue as aventuras de Wednesday Addams da Família Addams, aproveitando-se do estilo visual de Burton para criar algo compatível.
O filme chega assim décadas depois, mas décadas também se passaram na narrativa. Mas aquilo que era simples em 1988, torna-se desnecessariamente complicado em 2024. Os criadores de Wednesday pegaram no guião e adicionaram tantas camadas que é impossível explicar com concisão — mas tentarei:
Lydia Deetz, agora apresentadora do programa “Ghost House”, está com problemas em controlar a sua habilidade de ver os mortos mas algo acontece que corta com o quotidiano: a morte do pai. Regressando a Winter River, Connecticut, para o funeral com seu produtor-e-namorado Rory e a madrasta Delia, Lydia traz a sua filha Astrid, que tem uma backstory muito particular que começa por repudiar para, ao longo da duração do filme, começa a aceitar os poderes da mãe. Essa evolução envolve demasiados personagens extra (incluindo o pai e um potencial namorado de Astrid) e poderia ser um filme por si só. Ao mesmo tempo, Beetlegeuse (vulgo Beetlejuice) aparece muito mais do que no filme original, agora com direito a desenvolvimento do seu próprio passado e a relação com uma ex-namorada agora ressuscitada — Monica Bellucci, no papel ingrato de quase todas as namoradas de Tim Burton, que é surgir nos seus filmes para serem pálidas e bem vestidas, entre a femme fatale e beleza imaculada, e quase mudas. Dafoe é um actor-tornado-detetive fantasma, um personagem com rasgos de genialidade completamente subaproveitado e totalmente não-essencial à narrativa.
Mas voltando ao toque “burtonesco”, a essa ideia explorada no filme original (e noutros tantos) do suburbanismo idílico e nas coisas sombrias que podem estar escondidas mas tão perto do quotidiano — tudo isso parece ausente deste filme. Não há crítica mordaz a essa ideia americana idílica, não é o toque do sombrio, há, ao invés, uma banalização do sombrio. Ele parece menos à espreita e mais acessível por qualquer pessoa e somente empregue para comic relief. Nada necessariamente de errado, excepto que parece haver muito menos a dizer em 2024 do que em 1988. Há um retomar de um visual específico, mas talvez tudo perca ao trazer aquilo que resultou de forma tão onírica e palpável em película para o airbrushing do digital. A mesma sequência de abertura — música do Danny Elfman, a câmara a sobrevoar o mundo real até se dissolver numa maqueta — trazida deste modo para a contemporaneidade parece mais televisiva que cinemática. Há algo no filme, que não sei explicar bem, mas que soa ligeiramente a falso, ou requentado e a sensação não se afastou ao longo do filme.
Sobretudo, o problema é que muito do que se passa é subaproveitado porque ficamos com a sensação de demasiadas ideias atiradas à parede. Atenção que as ideias, em si, não são más, e algumas são bastante divertidas — excepto a ex-namorada de Beetlejuice, Monica Bellucci, que merece melhor; e o conceito do Soul Train também. A sequência que define o seu passado encontro com o anarquista e bio-exorcista titular é das melhores do filme e a que me fez soltar uma das poucas gargalhadas que o filme gerou, mas a superficialidade de alguns veios da narrativa parecem dever-se aos argumentistas tentarem incluir uma temporada inteira de acontecimentos numa trama que já roça o caótico, tornando a história uma literalização do Sr. Creosote que só comeu mais uma bolachinha de menta. Tudo isto revela falta de foco e intenção, o que é uma pena, dada a forma como Burton e Keaton se atiram à oportunidade de voltar a este mundo excêntrico, mesmo que O’Hara esteja a fazer um Moira-lite e Ryder pareça presa aos maneirismos da sua personagem de Stranger Things. Aqui, o barro que se atirou à parede tinha mais potencial do que o que vimos. É o problema de voltar a casa e trazer demasiados convidados sem pensar no que se vai fazer com eles chegando ao destino.
★★☆☆☆