Verbrannte Erde (Terra Queimada, 2024), de Thomas Arslan, é a sequela de Im Schatten (Nas Sombras, 2010), do mesmo realizador, um filme que não teve estreia comercial em Portugal, mas que se encontra, de momento, disponível na Filmin. Im Schatten retrata a reentrada de Trojan (Mišel Matičević) no mercado de trabalho (ilícito). Trojan é um ladrão honrado, passe a contradição, que tem uma estadia atrás das grades porque recusa delatar os colegas de profissão. Puro corporativismo laboral. Apaixonado pela sua linha de trabalho, Trojan está desejoso por arregaçar as mangas e pôr as mãos à obra, melhor dizendo, pôr as mãos naquilo que é dos outros. O protagonista tem a sorte de ser um ladrão qualificado e com boas referências e, por isso, apesar dos seus quarenta anos de idade, um factor detractivo noutros ramos, não tarda muito até Trojan começar a ter o tipo de entrevistas de emprego que não são divulgadas nos jornais e no LinkedIn.
Uma vez reunida uma equipa de bandidos de confiança, passe a expressão, o plano delineado consiste em roubar uma carrinha de segurança que transporta dinheiro, um golpe clássico, presente em todos os manuais de trafulhice que se presam. O interesse de Im Schatten reside, em primeiro lugar, nos procedimentos que conduzem ao crime e nos acontecimentos imprevistos que decorrem no rescaldo. A adrenalina do golpe é uma matéria de segundo plano, substância morta que o filme retrata com algum grau de fastio, como se fosse uma obrigação contratual presente numa qualquer alínea do thriller, género em que se inscreve. Não obstante, o filme segue atentamente os códigos narrativos do género, tanto que o primeiro acto é tirado a papel químico de Le Cercle Rouge (O Círculo Vermelho, 1970), de Jean-Pierre Melville. Portanto, quaisquer singularidades que possam ser atribuídas à leitura que Im Schatten faz do thriller, essas derivam da abordagem formal de Arslan, não dos contornos da intriga e das personagens-tipo, nas quais o filme não tem particular interesse – o que não é necessariamente uma qualidade negativa.
Dir-se-ia que há, inclusive, um ressentimento pelo aspecto digital da contemporaneidade, que, com o seu ritmo vertiginoso, nos faz sentir incapazes de acompanhar o presente, seja devido aos engenhos criados diariamente, seja pela avalanche de informação que circula nos média digitais.
O elemento que distingue o filme é a utilização dos décors, em particular os cenários interiores, como apartamentos, centros comerciais, garagens e automóveis. O interior dos carros é um cenário particularmente importante porque se trata de um espaço em movimento, um espaço que se deixa atravessar pela paisagem. É através do pára-brisas e das janelas laterais dos veículos que descobrimos Berlim em Im Schatten. Os cenários também desempenham um papel essencial na composição do ritmo. A repetição dos espaços, em particular dos automóveis, cria uma cadência lenta e regular, como um metrónomo calibrado para o andamento das longas viagens de carro. Além disso, os locais fechados e artificialmente iluminados geram uma atmosfera apática, silenciosamente opressora, que estende a lógica do aprisionamento para fora da cadeia, para os apartamentos, quartos de hotel, cafés e parques de estacionamento de Berlim.
A maior dificuldade de Arslan está em enquadrar o elemento humano, sobretudo Mišel Matičević, um actor com algumas limitações, sem a dose necessária de carisma. A sobriedade formal do cineasta deixa o actor desprotegido, em certos momentos. Ao passo que no cinema de Melville, que inspira Arslan, o mutismo das personagens afigura-se-nos cool e misterioso, essa mesma mudez em Trojan soa-nos a afectação – e isto deve-se não só a Matičević, mas à realização, e até à caracterização da personagem.
Verbrannte Erde começa como Im Schatten terminou: com Trojan na escuridão, ao volante de um automóvel. A primeira coisa que nos assalta quando o veículo transpõe o túnel, e o rosto do protagonista é iluminado, é o envelhecimento do criminoso. Embora as personagens com quem Trojan se cruza lhe digam, assumo que por simpatia, ou talvez por medo de serem julgadas pela mesma medida com que julgam, que ele está igual, que não envelheceu, é impossível ignorar as ofensas perpetradas pelo tempo. As pálpebras descaíram, o maxilar definido arredondou-se, as patilhas ganharam matizes cinzentas, e o pescoço tem agora frestas profundas, como as de um enforcado removido da corda.
Se Melville encena os golpes como uma acumulação de pequenos gestos que têm de ser realizados minuciosamente para que o objectivo seja cumprido, havendo, portanto, uma ênfase no detalhe, os assaltos de Arslan estão fraccionados em blocos sem pormenor.
Trojan pode ter um aspecto abatido, mas não se pode dar ao luxo de pedir uma reforma antecipada – essa é uma das desvantagens de se trabalhar num sector em que não se contribui para a segurança social. Por isso, o protagonista tem de continuar a trabalhar, adiando a reforma para o dia em que morra ou seja preso. À procura de um golpe cujo rendimento lhe permita viver tranquilamente durante uns meses, Trojan, um veterano nesta área, contacta os colegas dos velhos tempos, dos quais já não sobram muitos exemplares. Subentende-se que a criminalidade, em particular a de colarinho azul, porque a luta de classes também existe entre os bandidos, não é para velhos e, como corolário, o protagonista está numa fase da sua carreira em que se arrisca a ficar ultrapassado.
Trojan é enquadrado numa equipa de quatro criminosos que tem como missão roubar Frau vor der untergehenden Sonne, uma pintura de Casper David Friedrich. A idade de Trojan (e o desajuste propositado do filme face à actualidade) fica a descoberto quando o protagonista questiona a utilidade da quadrilha ter um engenheiro informático – alguém que os possa auxiliar com questões relativas a câmaras de segurança ou o mapeamento tridimensional da planta do edifício que será trespassado. Verbrannte Erde passa-se em Berlim no momento presente, mas podia desenrolar-se no início do milénio, uma vez que a tecnologia, ao contrário do que acontece, por norma, nos thrillers norte-americanos, desempenha um papel residual. Dir-se-ia que há, inclusive, um ressentimento pelo aspecto digital da contemporaneidade, que, com o seu ritmo vertiginoso, nos faz sentir incapazes de acompanhar o presente, seja devido aos engenhos criados diariamente, seja pela avalanche de informação que circula nos média digitais.
À semelhança do que acontece em Im Schatten, o assalto é executado com tranquilidade. Tudo corre de acordo com o plano, não há imprevistos. Embora a representação do golpe seja menos apática do que a do filme anterior, continua a registar-se falta de curiosidade na encenação destes momentos que se esperariam ser determinantes. Se Melville encena os golpes como uma acumulação de pequenos gestos que têm de ser realizados minuciosamente para que o objectivo seja cumprido, havendo, portanto, uma ênfase no detalhe, os assaltos de Arslan estão fraccionados em blocos sem pormenor. Complica as coisas, não tenhas o pragmatismo dos assaltantes, apetece dizer.
Uma vez ultrapassado o golpe, impõe-se o conflito central da acção: escoar o produto. O comprador que se tinha comprometido a pagar aos assaltantes revela ser um criminoso sem palavra. O mafioso pode não ter uma palavra honrada, mas tem um capanga temível, Víctor (Alexander Fehling), um brutamontes de cabelos castanhos-claros fixos à cabeça por uma camada de cera abundante, olhos azuis cristalinos desprovidos de moralidade e feições angulares feitas com o auxílio de um esquadro. O bandido é, então, incumbido de roubar os ladrões e, como tal, fica esquematizada a estrutura de um novo golpe – só que desta feita é a própria quadrilha que será assaltada.
Arslan é económico de um ponto de vista narrativo e aqui o seu pragmatismo é bem-vindo. O cineasta tem a particularidade de preferir as sequências discretas de exposição narrativa aos números de acção. Confronte-se, por exemplo, as duas cenas em que Victor conversa com o velho contacto de Trojan, Rebecca (Marie-Lou Sellem). O espaço é bem aproveitado em ambos os episódios: num caso o parque de estacionamento interior de um edifício e no outro o interior de um automóvel. A gestão da luz é criteriosa, o laconismo dos diálogos eficaz, e a composição claustrofóbica. A violência é iminente, sentimo-la borbulhar à superfície, mas nunca se concretiza em cena, gerando suspense. Verbrannte Erde é composto de cenas assim, de episódios em que duas personagens se encontram em espaços esconsos e conversam, trocando ameaças num volume brando.
No entanto, suspender a violência durante demasiado tempo é um risco. Arslan adia a libertação da tensão acumulada até aos momentos finais, concentrando a violência num único episódio que se queria impactante, de modo a gerar a catarse esperada de um thriller. Não é o que acontece. A perseguição de automóvel, por exemplo, tem panorâmicas que mal se esperariam de um chase film pré-Griffith. Além disso, a fuga a amena velocidade termina exactamente como esperado: 5, 4, 3, 2, 1, contamos, desinteressados, até que, inevitavelmente, se dá uma colisão num cruzamento. O confronto que se segue, a prometida luta entre Trojan e Victor, é igualmente sensaborão. Arslan utiliza a montagem paralela durante a segunda metade do filme para criar uma dinâmica de oposição entre os bandidos. A própria estrutura gera tensão entre ambos e a caracterização de Victor, que compete com Trojan para ver quem tem o casaco de cabedal mais justo, cria a expectativa de que o protagonista irá ter de defrontar o seu duplo.
Quando chega o momento da verdade, a luminosidade é de tal modo rarefeita que mal se consegue distinguir quem está enquadrado. Faz sentido temático realizar o confronto nas sombras, contudo, neste caso, a escuridão é, sobretudo, um escudo que Arslan utiliza para filmar uma sequência que ou não sabe como enquadrar e montar, ou na qual simplesmente não tem interesse. Um ou dois movimentos desajeitados de luta greco-romana no chão, o protocolar plano-detalhe de uma arma de fogo caída, e um mata-leão sonolento. Falta verve. Arslan gere melhor o papel da violência em Im Schatten, um filme que também não tem interesse em representar a violência de modo sensacionalista, mas que a emprega pontualmente, de um modo pouco estilizado e clínico.
Verbrannte Erde termina como iniciou, com Trojan atrás de um volante, de mãos a abanar, somente com a certeza de que terá de voltar a roubar. Em princípio, teremos a oportunidade de ver o criminoso de novo em acção, porquanto Thomas Arslan tem delineado um terceiro e último filme protagonizado por Trojan. Aguardemos, então, espero que não outros catorze anos, para ver se o derradeiro golpe da personagem é aquele que lhe proporciona umas férias a ler revistas de arquitectura, como Trojan diz ser seu hábito, ou se, por outro lado, esse será o assalto que finalmente lhe rouba a vida.
★★☆☆☆