Verdade ou Consequência? (2023) poderia chamar-se Fingido e Verdadeiro, como a peça de Lope de Vega que Luís Miguel Cintra encenou no Teatro da Cornucópia em 2012, e que aparece subtilmente em alguns dos momentos deste filme-puzzle sobre sombras, espelhos, fantasmas e ilusões, com que Sofia Marques fixa uma figura que surge sempre através da relação entre textos, referências, perceções e memória. Nesse espetáculo, narrativa intuitiva sobre São Gens, de tanto acreditar na sua personagem, o primeiro ator tornou-se na carne viva do santo que interpretou.

No texto que escreveu para apresentar o espetáculo, escrevia Luís Miguel Cintra: “O ofício do teatro serve-me como maneira de me pôr a pensar e gosto de pensar no que ando a fazer. Mas tanto faz o que me conduziu aqui. Sei que não é pelo teatro em si que sobretudo me interesso mas por aquilo que o teatro consegue das pessoas e que aquilo de que quis falar com este espetáculo, foi da vitalidade a que o teatro obriga, foi como se fala verdade a mentir”[1]. No filme, uma das primeiras frases que o ouvimos dizer é sobre a opacidade da cara dos atores: “As pessoas veem muito com a sua imaginação”.
Este filme lida, então, com uma memória que existe para lá do que nos que é dado a ver, e comporta-se connosco como se fossemos espetadores de um espetáculo que começou antes de chegarmos.
E este é um filme sobre a imaginação; esquisso de um possível retrato; formulação de uma vontade de continuarem juntos; ensaio e possível testamento de uma figura que habita imaginários coletivos e criativos de um Portugal começado nos alvores da democracia e, por isso, retrato de como o tempo presente se constrói na rememoração das ideias antigas, na reformulação de ensinamentos partilhados e testados. Verdade ou Consequência? sendo um retrato filmado, como é, é também uma demonstração visual de uma forma de articulação de pensamento a que Sofia Marques dá livre curso, pela mão de quem foi seu guia.
Mas, talvez por isso, este é um filme que trabalha sabendo que o modo como Luís Miguel Cintra se foi revelando através dos espetáculos, ou da expetativa criada em encontrar cúmplices de estrada, não apenas nas colaborações artísticas, mas na plateia, depois dos espetáculos, talvez também nos filmes, através das personagens que fez. É ele quem o diz, a certo momento: “Passei a vida a fazer espetáculos, não é?”. Hipótese de resposta no texto para Fingido e Verdadeiro: “E se no teatro a metáfora é o próprio homem, se a metáfora sou eu, transformo-me, transcendo-me, tomo consciência de mim, ser incompleto. Tomar consciência de si é conhecer-me pequeno, é tornar-me um só numa Humanidade que atravessa milhões e milhões de existências e corpos, é ter fé.” No filme, como num diálogo interpolado, dirá: “A história da humanidade já foi dita com as mesmas palavras, que significam coisas.” Essas coisas estão em Verdade ou Consequência? como vinhetas de uma figura que se escondeu nas personagens, se defendeu a partir das suas frases, valores, e orientações, quis construir para si um muro de referências partilháveis, que moldasse o real: “o que faz o Teatro (e que diz o Teatro, diz a Arte), como a religião, é criar metáforas, imagens, palavras, figuras, tão opacas como transparentes, para que na descoberta das suas chaves os homens sejam, se unam, se relacionem, se amem, e distingam, se respeitem na sua individualidade ou responsabilidade, que é o mesmo, é criar um corpo que faça sentido sem uma interpretação para sempre incompleta, para sempre imperfeita.”
Este filme lida, então, com uma memória que existe para lá do que nos que é dado a ver, e comporta-se connosco como se fossemos espetadores de um espetáculo que começou antes de chegarmos. Já tinha sido assim com Vê-los assim tão pertinho (2010), que Sofia Marques assinara a partir do espetáculo Deu-la-Deu, para a companhia Comédias do Minho (2009). Não há apresentação de personagens, apenas evocação de momentos. Não há descrição de contexto, apenas o desfiar de situações do presente que evocam outros momentos que, por isso, se colocam no mesmo plano, como se neste tempo reencontrado, nos aproximássemos, ao mesmo tempo, de alguém e da sua projeção. É um gesto arriscado, e que Sofia Marques trabalha com o desvelo necessário para que Luís Miguel Cintra possa existir, com o mesmo recorte, nos planos da memória, da perspetiva e do real. Um dos momentos mais comovente, e tão breves, ocorre quando o ator da sua própria narrativa, procura reconstruir objetos que guardou em casa e que aparecem agora quebrados, como se fossem adereços que prepara para uma nova encenação – e, de certo modo, as mãos que quer colar, lembram as mãos dadas e agarradas dos recortes que fizeram o logotipo do Teatro da Cornucópia. Fala com e sobre eles, inventando hipóteses para o estado a que chegaram, e diverte-se com a resistência que lhe criam. Apenas vemos as suas mãos no cuidar dos objetos, e a sua voz a puxar pela história que tiveram e podiam ter, se quisessem. Nem sempre deu, e é também disso que fala este Verdade ou Consequência?, mais sobre narrativas secundárias, tentativas biográficas onde o tempo e o lugar do teatro são o tempo e o lugar para a vida acontecer. Fora do palco, e do Teatro da Cornucópia, fora do cinema, e na memória evocada de Manoel de Oliveira e João César Monteiro – e, a espaços breves e comoventes, a sua presença no cinema de José Álvaro Morais – este Luís Miguel Cintra que aqui surge pelo olhar de quem o filma sabendo mais do que consegue mostrar, parece pedir que o escutemos para lá de todas as memórias que dele possamos ter.
Foi a propósito de Um Filme Falado (2003), de Manoel de Oliveira, que Luís Miguel Cintra disse poder ser quem era “sem qualquer disfarce”. Descreveu-o no catálogo que a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou, em 2017: “dizer o que a cada filme de Manoel de Oliveira fiz, dizer quem sou. Sou o Luís Miguel Cintra. Mas era ficção” (p.309). Como era ficção, ou construção narrativa, a sua descrição das memórias históricas e especulativas em Zéfiro (1993), de José Álvaro Morais, onde surgia como narrador de uma memória coletiva, que é também esta que quis fazer do seu trabalho público. O grande mérito de Verdade ou Consequência? é saber existir para lá da biografia fílmica do ator, ainda que a ela recorra modestamente, e fosse possível traçar uma linha desde Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1970), de João César Monteiro, e O Novo Testamento De Jesus Cristo Segundo João (2013), de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, início e opus maior de uma relação com a sua própria imagem, no primeiro sem direito a voz própria, só corpo, no último, quase sempre só voz, e o corpo transmutado na paisagem, como neste filme, onde casas, estradas, reflexos na janela, armazéns, cidades, caves, teatros de luzes apagadas e as margens das fotografias são o campo expressivo de uma identidade formada a partir dos coletivos que nele quiseram ver “o cego que atravessou montanhas”, como na expressão de José Tolentino Mendonça para o espetáculo O Estado do Bosque (2013).
Na gestão de exemplos que poderiam estruturar um filme que quisesse ser hagiográfico – e que, para um ator e encenador que se foi aproximando da fé no decorrer do seu percurso, não é despicienda relação a que o filme se sujeita – Verdade ou Consequência? gere com modéstia os vastos recursos existentes sobre aquele que é, sem grandes comparações, o ator e encenador mais estudado e publicado [2], só comparável à atriz, encenadora Amélia Rey-Colaço (1898-1989), com quem, contrariamente a grande parte dos da sua geração, não estabeleceu relações, bem como os que existem sobre o Teatro da Cornucópia, companhia amplamente acompanhada, direta e indiretamente, no cinema e na televisão, assinados por realizadores próximos, como Solveig Nordlund e José Álvaro Morais, ou atores que quiseram filmar os processos de trabalho, como Ricardo Aibéo e a própria Sofia Marques, em Ilusão (2014) [3].
Daí resulta que este Verdade ou Consequência? opere como um observador espantado e seguidor da máquina de pensamento e reconhecimento de Luís Miguel Cintra sobre o que fez, e sobre o que possa ficar, entre o “nosso tempo”, como diz, o que nele exista de “sincero” e sem “meias-tintas”, apostado apenas “na empatia pela personagem”. A personagem resiste ao retrato, ao mesmo tempo que sabe ser necessário fazê-lo, e vai fugindo ao próprio filme, que termina para poder continuar numa vida interior, deixando-nos com a impressão de que o ator se tornou na personagem em que quisemos acreditar.
Nesse sentido, é importante que acreditemos que o Luís Miguel Cintra neste filme é uma construção para a câmara, que questiona o que se vê, e vendo-se refletido, pergunta se acredita nisso, como acontecia não só em Fingido e Verdadeiro, mas sobretudo em Ela (2011), de Jean Genet, onde Cintra interpretava um/o Papa, e escrevia para o programa: “o que me interessou agora não foi tanto a relação das imagens com a vida, a natureza da criação artística, foi primeiro a ideia do absurdo, do nojo que provoca a tentativa de criação de uma imagem definitiva, foi a ideia de contradição entre a construção de uma imagem que passe para lá do tempo e a própria natureza da condição humana, necessariamente inserida no tempo, isto é, destinada a morrer”. E, por isso, as palavras iniciais de Sofia Marques, justificando o filme, para que possam ficar mais um bocadinho juntos. A consequência é este filme, feito para fixar, atrasar, recusar e reescrever o tempo. Não é pouco, e é o que basta.
★★★☆☆
(O título deste texto é uma apropriação, conscientemente abusiva, do título que Luís Miguel Cintra deu a todos os textos que incluía nos programas dos espetáculos do Teatro da Cornucópia)
[1] A citação é retirada do livro Teatro Da Cornucópia – Espetáculos De 2002 A 2016, segundo volume, organizado por Cristina Reis, que reúne o conjunto de textos e processos cenográficos dos espetáculos apresentados pela companhia entre 1973 e 2016, em edição própria. Os textos “Este Espectáculo”, que acompanharam sempre cada programa, foram reunidos em Pequeno Livro Arquivo, Pensamentos, Atos E Omissões, organização Luís Miguel Cintra (Edições 70, 2023).
[2] Sobre o trabalho no teatro de Luís Miguel Cintra: Questionar Apaixonadamente O Teatro Na Vida De Luís Miguel Cintra, de Maria Helena Serôdio (Livros Cotovia, 2001); O Sentido Dos Mestres: Luís Miguel Cintra, Cinco Conversas Em Almada (Companhia de Teatro de Almada, 2015), O Cego Que Atravessou Montanhas, de Tiago Bartolomeu Costa (Orfeu Negro, 2016), Pequeno Livro Arquivo, Pensamentos, Atos e Omissões, organização Luís Miguel Cintra (Edições 70, 2023); sobre o seu trabalho no cinema: Luís Miguel Cintra: O Cinema, coordenação José Manuel Costa (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema 2017).
[3] Sobre o Teatro da Cornucópia no cinema: Música Para Si (1978) de Solveig Nordlund, Viagem Para A Felicidade (1978), de Solveig Nordlund, …E Não Se Pode Exterminá-Lo? (1979), de Solveig Nordlund e Jorge Silva Melo, Os 25 Anos Do Teatro Da Cornucópia (1999), de José Álvaro Morais, Teatro Da Cornucópia, A Louca Jornada (2001), de José Álvaro Morais, Miserere (2013), de Ricardo Aibéo, A Ilha (2013), de Ricardo Aibéo, Fim De Citação (2013), de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Ilusão (2014), de Sofia Marques.