Algumas semanas atrás, apresentei uma sessão de La Telenovela Errante, filme que Raúl Ruiz realizou em 1990 e que sua viúva Valeria Sarmiento finalizou em 2017. Era parte de uma pequena retrospectiva voltada para os três longas que estavam na gaveta do mestre chileno e que Sarmiento supervisionou nos últimos anos – um projeto ao qual ela vem se dedicando na última década (um quarto filme está em produção). Isto me pôs a pensar na ideia de “filme de gaveta”, dessa obra perdida de cineastas que é recuperada depois. É algo que nós vemos com frequência com escritores, que às vezes se tornam muito mais produtivos depois da morte, mas não realizadores de cinema. Uma arte mais industrial evidentemente leva menos a este processo de obras abandonadas.

A forma mais comum que projetos engavetados ganham vida após a morte de um realizador são roteiros abandonados ou filmes interrompidos no final da vida. A própria Valeria Sarmiento dirigiu As Linhas de Wellington (2012) que Ruiz desenvolvia quando faleceu. Os resultados ficaram bem abaixo de Mistérios de Lisboa (2010) que o cineasta fez pouco antes em Portugal e que a produção dos filmes espelha. Anos mais tarde ela também realizaria O Caderno Negro (2018), baseado num outro romance de Camilo Castelo Branco que expande o filme anterior, o que não deixa de ser outra maneira de estender a obra do marido.
Filmes como esses são frequentemente conduzidos por herdeiros de sangue, ou não, do famoso realizador. Nick Cassavetes, por exemplo, realizou She’s So Lovely (A Mulher das Nossas Vidas, 1997) a partir de um roteiro do pai John. Claude Miller, que foi assistente de François Truffaut, filmou um roteiro que este trabalhara com Claude de Givray no fim da vida, em La petite voleuse (A Pequena Ladra, 1988). Da mesma forma, o ex-assistente de Yasujirô Ozu, Mimoru Shibuya, fez o mesmo para um roteiro póstumo deste com Kogo Noda, Daikon to ninjin (“Rabanetes e Cenouras”, 1965). Em todos esses casos, os filmes receberam uma atenção crítica bem maior do que os filmes dos herdeiros costumam receber.
A recuperação destes projetos abandonados pode ser bastante cínica. Me lembro de The Big Brass Ring (O Poder da Corrupção, 1999), baseado num roteiro que Orson Welles co-escreveu com Oja Kodar no começo dos anos 80. Dirigido por George Hickenlooper, mais conhecido pelos seus documentários, o filme reescreve consideravelmente o roteiro de Welles (que ao contrário da maioria dos casos do gênero foram publicados) num filme bastante sem sal, mas que claro se apoia ao máximo no nome do grande cineasta.
Uma questão levantada pelo filmes de gaveta é o impacto das suas tortuosas trajetórias na sua recepção. O mercado de cinema ama uma boa história que possa explorar e os cinéfilos têm uma queda pela raridade e pela redescoberta.
Às vezes um filme simplesmente desaparece na história. O produtor de Cani arrabbiati (Cães Raivosos, 1974) de Mario Bava foi a falência e o filme passou mais de vinte anos num imbróglio judicial, e ele só passou a circular em 1997, muitos anos após a morte do cineasta, para uma recepção das mais entusiasmadas. Em 2017, se descobriu uma cópia de The Amusement Park, filme de encomenda que George A. Romero realizou em 1973. Contratado por uma instituição religiosa para produzir um filme sobre abuso de idosos, Romero entregou um filme tão intenso que seus contratantes optaram por suprimi-lo. Após um restauro, o filme finalmente passou a circular nos últimos anos.
Uma questão levantada pelo filmes de gaveta é o impacto das suas tortuosas trajetórias na sua recepção. O mercado de cinema ama uma boa história que possa explorar e os cinéfilos têm uma queda pela raridade e pela redescoberta. Cani arrabbiati foi tratado como uma grande descoberta, um quase filme testamento. The Amusement Park também foi recebido com grande entusiasmo alguns anos atrás. No caso do filme de Bava me parece uma recepção das mais justas já que trata-se de um dos seus melhores filmes e como exercício de estilo muito distante dos seus filmes de horror habituais, ele não deixa de iluminar muitas partes da sua obra. A excitação pela descoberta de um “George Romero inédito” fez com que The Amusement Park se tornasse em algo mais do que a curiosidade que seria se sempre estivesse entre nós.

José Mojica Marins ficou sem dinheiro para finalizar um filme chamado A Praga, em 1980, o produtor Eugênio Puppo se esforçou para completá-lo primeiro junto ao cineasta em 2007 e finalmente em 2021 chegou numa versão final. Ninguém por aqui confundiu A Praga com os melhores filmes de Mojica, mas o filme se aproxima bastante de alguns filmes que ele realizou no fim dos anos 70 que recebem pouca atenção e a sua recepção foi no geral bem mais entusiasmada do que eles. Mesmo entre os filmes de Ruiz, existe uma diferença grande entre La Telenovela Errante, que marcava o reencontro dele com Chile após o fim da ditadura de Pinochet, é divertido e amargo, e El tango del viudo y su espejo deformante (2020) que ele filmou antes de seu primeiro longa Três Tristes Tigres (1968), é um pastiche da juventude.
Em 2015 foi lançado por aqui Ultimas Conversas, longa póstumo de Eduardo Coutinho. O filme é apresentado como: um filme de Eduardo Coutinho, montado por Jordana Berg e terminado por João Moreira Salles. Não é um mau filme, mas confesso ter muitos problemas com ele existir tal qual o temos. É visível ao longo das cenas que Coutinho, um famoso mau humorado, está bem insatisfeito com as filmagens. Berg e Salles incluem várias pontas soltas onde vemos Coutinho entre as entrevistas que dominam seus filmes e ele reclama o tempo todo, inclusive em alguns momentos de forma bastante cruel sobre os adolescentes com quem está conversando. No resto do tempo eles buscam apresentar um filme de Coutinho tão perto quanto possível dos outros longas que fez desde Santo Forte (1999). Eu sonho com outro filme no qual Salles tivesse a imaginação de fazer um filme através daquela última filmagem frustrada de Coutinho, no lugar de uma versão pior dos seus filmes olhando apenas o suficiente por trás da cortina para deixar claro que homem considerava a sério puxar o plug do filme que assistimos.
É inevitável que a passagem do tempo afete como vemos tais filmes. Se existe algo de muito excitante em The Amusement Park é menos a sua descoberta, mas a janela que ele abre para 1973 e a fricção entre a encomenda e o filme que Romero entrega. Se ele sempre estivesse entre nós era provável que esses elementos não se destacassem da mesma maneira. O mais recente dos filmes que Sarmiento finalizou, El realismo socialista (2023), era o filme que Ruiz realizou em 1973 quando Pinochet deu seu golpe de estado. É um filme sobre a esquerda chilena nos anos Allende e é um olhar bastante mordaz se muito próximo dela (de certa forma é um filme que complementa bem Diálogo de Exiliados que Ruiz rodou já na França em 1975 lidando com os humores, e mau humores, dos seus colegas de exílio).
O filme é fascinante hoje por ser um olhar interno para a esquerda chilena da época dotado de nada da mitologia que se formou entorno dela. Seria ele o mesmo se sempre estivesse entre nós como este lembrete das divisões e frustrações da época, ou a chegada agora acrescenta a ele um frescor ainda maior? Talvez não exista exemplo maior e mais fascinante disso que Visita ou Memórias e Confissões (2015), o filme testamento de Manoel de Oliveira cujos significados e fascínio é inseparável desta posição de filme que permaneceu guardado por décadas.
O que me fascina do que Raúl Ruiz nos deixou é o que aí se sugere sobre como se pode tentar imaginar outras abordagens para o cinema, para lá das estruturas viciadas do cinema de autor internacional; isto é muito refrescante.
Antes de Ruiz, o grande rei do filme de gaveta foi Orson Welles. Ainda não temos uma versão definitiva que agrade a todos do seu Don Quixote (que ele começou em 1955 e trabalhou até a morte) ou qualquer versão finalizada de The Deep (fim dos anos 60, deste há um workprint). Muitos dos fragmentos do seu documentário brasileiro It’s All True (1942-43), foram mostrados em It’s All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles (Bill Krohn, Myron Maisel, Richard Wilson, 1993). Mais recentemente o filme em que ele trabalhou ao longo dos anos 70, The Other Side of the Wind foi finalizado com a supervisão do seu pupilo e co-protagonista Peter Bogdanovich. A versão final do filme, lançado pelo Netflix com todo o seu peso dentro da indústria, chama a atenção pela sua pós-produção bastante agressiva do fim dos anos 2010, o que garante que o filme exista suspenso no tempo nem pertencente aos anos 70 quanto ao hoje.
A forma de trabalhar de Welles sempre colocou em primeiro plano o intuitivo e o artesanal, e a ideia da obra acabada e comerciável nunca lhe apareceu uma grande preocupação. Welles deixou tantos filmes na gaveta que isso até rendeu um documentário Orson Welles: The One-Man Band (Vassili Silovic, Oja Kodar, 1995) dedicado a destacar esta parte oculta da sua filmografia. Depois de The Other Side of the Wind, seus produtores lançaram algo chamado Hopper/Welles a partir de uma conversa entre o cineasta e Dennis Hopper no começo dos ano 70, que existe em algum lugar entre uma conversa entre pares e uma improvisação que poderia ter momentos incluídos no filme. Sou grato por vê-lo, mas é algo que sugere um desses manuscritos que famílias de escritores lançam quando atingem a parte não publicável dos seus arquivos.

São tantos projetos que numa reviravolta ruiziana, o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum tentou recrutar o cineasta chileno para realizar um filme a partir dos fragmentos e roteiro de The Dreamers, adaptação de Karen Blixen que Welles trabalhou e rodou algumas cenas no começo dos anos 80. Ruiz chegou a conversar com Oja Kodar, mas as partes não chegaram num acordo sobre que filme seria possível fazer a partir dali. Raúl Ruiz e Orson Welles têm muito em comum, são ambos grandes fabulistas, com um pé forte no experimental, menos do que convencionamos chamar de cinema experimental, mas a uma ideia de experimento constante no ato da criação. São artistas que com frequência buscam lançar mão dos melhores recursos industriais que lhe são disponíveis, mas que permanecem na essência artesanais.
Ruiz vai trabalhar com Paulo Branco, Menahem Golan ou a TV francesa, com ficção, documentário, curtas, médias e longas, pouco importa, e tudo são materiais igualmente possíveis de serem transformados em novos “filmes de Raúl Ruiz”. O que me fascina do que Raúl Ruiz nos deixou (uma gaveta cheia de filmes guardados, mesmo que tal ideia vá contra o princípio de fazer cinema tal qual conhecemos) é o que aí se sugere sobre como se pode tentar imaginar outras abordagens para o cinema, para lá das estruturas viciadas do cinema de autor internacional; isto é muito refrescante. O trabalho de Sarmiento de buscar dar forma a estes filmes que Ruiz deixou para trás ajuda a nos lembrar disso.