1.
É conhecida a resistência da Igreja em aceitar a “incineração” dos corpos, o que pode ter a ver com a necessidade de os preservar para a grande cerimónia da ressurreição final. Contudo, para Tertuliano (Da Alma), o indivíduo, pelo “sonho”, teria a experiência de um simulacro de morte (nenhum de nós sabe quando e como adormece) que o poderia preparar para a grande ausência a vir, fazendo-o sentir, ao mesmo tempo, ao acordar, um análogo da “ressurreição” que o confirmaria no seu corpo. Tudo se passava, afinal, como um son(h)o, entre diferentes tipos de imagens já que, para o mesmo autor, deus “tudo criou pela imagem”.
É, ao fim e ao cabo, o que sucede com o cinema: David Lynch segredou-o em Mulholland Drive (2001) que pode ser visto como o sonho (alucinação) de um morto.
A necessidade de “preservação” do corpo, com efeito, não se coloca no cinema que não deixa atrás de si cadáveres e que a tudo permite uma 2.ª vinda por meio de entidades de luz e sombras, nossos hologramas, que transportam consigo, como num sonho, o seu próprio (ir)real. Em boa verdade, no cinema o sonho nunca deve ser interrompido e acordamos, já refeitos e reconfigurados, em pleno “paraíso”.
Podemos assim considerar o cinema uma câmera de incineração, de transmutação dos corpos em imagens: tudo matéria leve e aérea, construções e precipitados de fluxos ou constelações de átomos (esporos) de matéria que pulsam e circulam, durante a projecção, no espaço e que aí permanecem, suspensos, depois dela.
Forma profana e pagã (Saint-Pol-Roux), no cinema, tal sarça ardente, os corpos ardem, autorizando-nos a experiência concreto-abstracta e abstracto-concreta de uma epifânia no mundo.
2.
A literatura tem muito que penar para que as suas “imagens” produzam um efeito de materialidade (corporalidade) física que afecte/altere de facto orgânica e metabolicamente não só o leitor (-espectador) como o meio em que ele se encontra. Lembro-me de alguém me ter dito que nela nem tudo era da ordem da imagem, no entanto não é bem assim. A própria sintaxe e as suas construções têm uma dimensão imagética, mesmo que caracterizemos essas “imagens” como brancas (negativas) ou com efeitos de dilatação/distorção que, porque afectam as nossas coordenadas de colocação no espaço, reconfiguram a nossa capacidade de ideação e percepção. O silêncio, mutismo dessas artuculações, produz imagens (impressões) neurológicas que contêm em si a dimensão imagética (nervosa) a que se referiu Artaud nos seus escritos sobre cinema.
Com efeito, em «Sorcellerie et cinéma» (1927), Artaud refere-se à “característica própria do movimento e da matéria das imagens”. Aquilo que designa por cinema bruto, “exterior a qualquer regra”, cujo efeito de “transe”, ligado à “euforia física que comunica directamente ao cérebro a rotação das imagens”, teria a capacidade de “expressar as coisas do pensamento”, melhor, do “sub(-in)consciente” (OC III, 1978 [65-66]). Ele “age directamente sobre a matéria cinzenta do cérebro”, precisa. Em «Cinéma et réalité» (1927) acrescenta ainda que não se trata “de encontrar na linguagem visual um equivalente da linguagem escrita, de que a linguagem visual seria apenas uma má tradução, mas de fazer esquecer a própria essência da linguagem”, ou seja, de chegar a “uma linguagem inorgânica que emociona o espírito por osmose”, “sem precisar de qualquer transposição pelas palavras”, e que, sem se separar da vida, “reencontra a disposição primitiva das coisas” (idem, 19-20) (sempre traduções nossas).
Afinal, aquilo que algum cinema dito “experimental”, com os seus jogos de sobreposições e dissolução/disseminação palimpséstica e corpuscular da unidade figural da imagem, procurou elaborar: casos, por exemplo, de Keneth Anger, Ron Rice, Jack Smith e Stan Brakhage. Este, em The Brakhage Lectures, a propósito de Méliès, privilegia a ideia do cinema como “um medium dando acesso a uma sobre-natureza e a um infra-mundo “, “um instrumento para desvelar o natural por meio da reflexão” e “uma porta aberta para um mundo estranho [dado] aquém da superfície da nossa capacidade natural de visão” capaz de revelar um “mundo subterrâneo que surge no nosso graças a máquinas que nos permitem ver o que não somos capazes de sentir naturalmente” (Capricci, 2009 [28]) (sublinhamos).
Essa vontade de um efeito corporal/físico, de uma dimensão 3D encarnada das imagens de cinema, encontramo-la também no cinema sensurround, sensacionalista, de sinestesia dos efeitos, da FC contemporânea (nomeadamente de “super-heróis”), transpondo para o plano das emoções/sensações dos espectadores essa inscrição do real, melhor, dos seus efeitos performantes em situação e presença. A sinestesia seria assim uma via no cinema para, con-fundindo a dimensão visual com a sua imanência háptica (tangível), tentar produzir esse efeito imagético (de imagem) do real.
Caso, por exemplo, do modo como o som e a música (o som das imagens e as imagens do som) no cinema de David Lynch transforma (performa) o registo das imagens. O último número (de setembro) da revista Sight & Sound contém uma entrevista de Sam Wygley ao autor sobre estas questões. É conhecido o trabalho, muito diversificado, de Lynch neste campo: indo da banda-sonora que compôs para Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977) à sua colaboração com Angelo Badalamenti (e Julee Cruise) desde Twin Peaks (1990/1) e ao seu trabalho em nome próprio (Blue Bob [2001], Crazy clown time [2011], Big Dream [2013]) ou mais recentemente com Chrystabel, a agente Tammy de Twin Peaks: The Return (Cellophane Memories, 2024). Em Inland Empire (2007) a desfiguração metamorfoseante de Laura Dern desemboca no grito (ponto de ruptura das imagens, passagem ao grotesco) mas temos momentos em que a tensão e impasses dramáticos se resolvem ou no devir animal da figuração (o teatro antropomorfo de coelhos) ou no edénico sinfonismo (herdeiro de Phil Spector) da sequência dançante de “Locomotion”.
O exemplo mais perturbante deste desejo de síntese criadora (genésica) é contudo a prática de intervenção directa na película de Stan Brakhage que inclui nela elementos materiais (folhas, pétalas, sais, sucos e mucos), procurando assim que o real faça o seu cinema e produza as suas imagens. Um cinema intersticial (corpuscular [Lucrécio]) que no espectador se tornaria intravenoso já que, das coisas do mundo para os minerais da película, circularia uma mesma energia fluida. Para ele, com efeito, “uma arte depende do mesmo processo natural e criativo que leva à formação de uma folha ou de um rosto” – e precisa: “tudo o que o artista realiza é tão marcado e predeterminado quanto a formação das moléculas da clorofila e cada forma artística constitui uma expansão individual tal como as medidas necessárias de cada folha” (idem [107]).
É o caso exemplar de Mothlight (1963) onde se tem não só colagem de asas de traça (“moth”) na película – alterando-lhe a textura material e criando um híbrido (mutante) como suporte do cinema, fonte de gestação e projecção de imagens -, como essas imagens, para lá das suas características plásticas novas (as formas constituem manchas raiadas ou listradas num fundo sobretudo branco), configurando outras relações (valendo pela interstecialidade, de textura e cor), constituem compostos complexos em que, pela projecção, e atravessadas pela luz, matérias mortas (?) se reanimam, passando, nos termos de Bazin («Ontologie de l’Image photographique» [1945]), do estado de “múmia do movimento” ao de “crisálida” viva. Confirma-se assim a concepção ressurreicional, não “lazarenta” (nocturna) mas “mutante” (solar), do cinema de Saint-Pol-Roux para quem o cinema era Pã vivo (Cinéma vivant, Rougerie, 1972 [102]).
3.
Em certa medida também a Moda permite isso: um trabalho com o corpo como matéria de imagem que reivindica mesmo a possibilidade de inscrever directamente nele as suas ideações e construções (figurais ou cenográficas, dramáticas), alterando-o e reconfigurando-o como uma tatuagem móvel e transportável. Na verdade, se a moda, puro trabalho da forma, de acordo com a fórmula de Lacan sobre o “belo”, enquanto tentativa de “apropriação” e “enfeite” desse vazio, procura “decorar” (suturar?) o “nada” que se encontra no seu centro, então, a persistência no trabalho da forma, vindo sobre esse “vazio” e recortando-o – visibilizando-o a “contra luz” e a partir dos seus bordos, limites -, eleva-o a um 2.º grau (o lado conceptual, meta, do “fetiche” mixed media, de modelo e roupa, assim constituído). Pelo que a moda (como o cinema?) é sempre uma teoria do nada trabalhada na e sobre essa ficção de realidade que é corpo.
Exemplar, deste ponto de vista, é o trabalho de Alexander McQueen entre 1997 e 2010/11 (data da sua última colecção): os seus desfiles, com efeito, eram muitas vezes concebidos em função do paradigma do cinema (The Birds [Os Pássaros, 1963], Eyes of Laura Mars [Os Olhos de Laura Mars, 1978], etc), fazendo dos modelos ou coreografias instalações em metamorfose e movimento num universo multimédia pensado e trabalhado de acordo com a ideia da realidade dos simulacros (vd. holograma de Kate Moss usado no desfile Widows of Culloden, 2006/7).
A proximidade (indissociabilidade) da dupla tensão do real e da morte no seu trabalho (o lado Norman Bates de McQueen, sensível na íntima relação, nele, entre moda e taxidermia) não só distorcia a forma humana (e a própria noção do “humano”) pela roupa (larga, irregular, desconstruída) como processava uma regressão ao animal (vd. acessórios com penas de pássaros, ossos, garras) com “enfouissement” no lodo da natureza (pinturas, incrustração de vegetais nas roupas ou décors). Uma procura do efeito do real patente tanto na incorporação de elementos materiais na roupa (no desfile Jack the Ripper [1992] os vestidos tinham aplicações de plástico com cabelos e secreções humanas) como na sua rigidez (ele deixava as roupas secar depois de as ter salpicado com argila diluída, usando também resina ou plástico para lhes dar textura e consistência). Tudo uma prática multiforme (medial) de regressão, brutalização de matérias e formas que revelava o corpo e criava nele aberturas para a carne. E isto porque a carne é porno, ela é o corpo acéfalo, idiota e sem palavras, em nós que em última (primeira?) instância somos.
4.
Ver em 3D, numa visão, mais do que “real” “hiper-real”, é o destino (fatalidade) das fotos de Laura Mars (Faye Dunaway) que tem visões/premonições de crimes que depois a assolam como “cenas do fantasma” que contaminam as fotos de moda que tira. O que permite dar o salto do “real” para o mais do que real é precisamente o carácter encenado das fotos (crimes) que tem a ver com a lógica, determinação profunda do inconsciente (ics) em que se estrutura o Fantasma: assim, essa dimensão fantasmática comum aos crimes e às fotos constitui o seu elemento (nó enigmático, cifrado e não-decomponivel) da verdade – do real como verdade, não como ele nos é dado a ver mas como é visionado (alucinado) por esse”olho-outro” que é tanto o do ics como o do cinema.
Eyes of Laura Mars, como Halloween de John Carpenter (que colaborou no script do filme de Irvin Kershner, também de 1978 [um tipo de slasher “voyeurista”, escópico, que se pode relacionar com Murder à la Mode [1968] de Brian de Palma e Someone’s Watching Me [1978] de Carpenter), começa (o pré-genérico) com um plano-sequência em travelling para diante, subjectivo (tirado do ponto de vista do assassino e da câmara), em que se vê (numa imagem um pouco enevoada) uma mão enluvada a folhear e depois recortar uma foto do livro de Laura Mars (pelo tipo directo, frontal – como se diz de um nu – das imagens facilmente atribuível a Helmut Newton, conselheiro do filme [são dele também as imagens a cores mostradas na exposição de obras de Laura Mars que servem para colocar a questão da admissibilidade da figuração do sexo e da violência em “arte”: “What happened to the beautifull?”, comenta um dos convidados]); com um corte elidido pelo raccord sobre a capa negra do livro de fotos, inicia-se outro plano-sequência, do mesmo ponto de vista, que penetra no interior da casa para se fixar, perseguindo-a, numa mulher acabada de chegar e que a mão do intruso agride com um punhal que não vemos a atingi-la mas que estilhaça a lamela de vidro que protege um dos olhos na capa do livro. Novo plano, confirmando a passagem do preto-e-branco (enevoado) à cor, agora de um olho iluminado no escuro que se abre, o de Laura Mars. Quando acende a luz, a cama, situada ao centro e ladeada (simetricamente) por dois candeeiros, reflecte-se em dois grandes espelhos laterais que, por seu turno, desdobram a imagem. No lugar de umas temos assim cinco imagens, uma central, de conjunto, e as laterais, parciais (um efeito que se repete noutras cenas de Laura no quarto). Lembramo-nos então da conhecida afirmação de Bergman (por altura de Vargtimmen [A Hora do Lobo, 1968], En passion [A Paixão, 1969] e Riten [O Ritual, 1969]) de que tínhamos entrado numa época em que os fragmentos do espelho (da unidade quebrada da razão e da representação) começavam a pensar (melhor, imaginar: produzir imagens) por si próprios. A lógica é essa: vemos, ou somos levados a ver, instaurados numa situação de “visão” que nos é dada (determinada) pelas imagens que nos fitam, scanarizam e perscrutam. Em 3 minutos e 45 segundos, os dados estão lançados.
Depois da exposição na galeria temos uma sequência com a encenação (melhor, passagem ao acto), na rua, dos “quadros vivos” dos cenários do fantasma da fotografia, com modelos de casacos de pele e lingerie que se agridem e lutam por entre carros que ardem e pessoas que passam. Enquanto tira os clichés, Laura tem a percepção – a cena desenrola-se de novo do ponto de vista do criminoso – de um novo crime a ser cometido e que tem por alvo, de novo, alguém do seu “entourage” (depois da editora do livro agora a dona da galeria). Os olhos são sempre o alvo primal do criminoso.

“Did you see it with your own eyes?”, pergunta o polícia que investiga o caso, o tenente Neville (Tommy Lee Jones) e é disso que de facto aqui se trata já que as imagens que Laura vê (pelo seu “olho interior”) e depois encena, re-produz (como um novo acontecer: happening) nas fotografias, co-incidem com as cenas do teatro do crime, havendo como que uma corrente de (in)consciência, uma passagem/transferência de imagens entre ela e o criminoso (stalker). Claro que há um momento em que os dois “olhares” se intersectam e Laura tem a percepção de estar a ser seguida pelo seu assassino. De facto, não se trata de dois olhares (pontos de vista) descontínuos (embora o do criminoso seja sempre mais flou), mas, como Laura explica ao polícia – num dispositivo óptico semelhante ao dos personagens de Kairo (2001) de Kiyoshi Kurosawa -, de um (re)enquadramento do seu olhar no de outro que (a) observa por detrás: tudo se passa então como se ela, vendo – e encenando as fotos –, estivesse a ser vista e dirigida pelo olhar do assassino que, à letra, a “compreende” e que, como se perceberá no desenlace, se encontra também ele compreendido nessa cena. Neste ponto do filme, a imagem que se vê no ecrã do vídeo com que Laura explica esta situação a Neville, é a do polícia que comenta: “I look like a damn cop, is what i look like?”. Então, ambos surgem no ecrã-vídeo, recusando-se o polícia a ser filmado.
No final, no confronto com o assassino – reconhecido como tal quando no seu discurso passa da 3.ª pessoa do cenário do fantasma à 1.ª do seu “acting out” -, vemos de início pelos olhos (embaciados) dele que, quando se reflecte no espelho do quarto de Laura, o estilhaça (as imagens que temos são as dele reflectido no espelho partido, seguindo-se um momento em que, tanto dele como de Laura, temos uma imagem dupla). Em toda a sequência, o assassino pede a Laura que use nele o revólver que lhe oferecera para se defender, acabando por forçá-la a disparar (“If you love me, shoot me”, diz). Nos últimos planos passamos da imagem dele morto no espelho para o corpo no chão e depois para Laura, com a arma na mão, também duplamente reflectida.
Se recorrermos à definição de Fantasma do Vocabulário de Psicanálise de Laplanche/Pontalis: “Encenação imaginária em que o indivíduo está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente “ (Moraes, 3.ª ed., 1976 [228]), pode-se perguntar: de quem é, aqui, o Fantasma?, em que “fantasma” se está (estão ambos) compreendido(s)?
Que olhar (e que entidade por detrás dele, con-fundindo-se com ele) é responsável pelo enquadramento (angulação) da cena? O da câmara, sim, e o do cinema: um olhar (olho) escópico e inorgânico (ou de uma organicidade diferente, híbrida de metal e carne) em que, como um bisturi ou sismógrafo da nossa profundidade (também ela impura), delegámos a função de trazer à superfície, sob as suas con-figurações remexidas e deformadas, os segredos da nossa pulsionalidade.