Quando penso em Mike Leigh, e na obra com que o cineasta nos tem presenteado ao longo das décadas, penso que aquilo que sumariza também expande. Mas até essa noção se afincar, o auteur foi tido enquanto limitado, com uma obra de filmes preciosos que exploram o comportamento humano e electrificam o status quo. Os seus filmes surgem-nos sempre tão pensados e completos. Cada qual sobre personagens mais reais que a realidade (ou não seria cinema), e os silêncios que se estacionam dentro e entre eles no decorrer da vida – aí há que agradecer as influências teatrais nos filmes de Mike Leigh e a sua característica mudez (e à geral acústica, mais expressiva que quaisquer palavras ou imagens), onde ainda se ouve Harold Pinter. Dizia Sean O’Sullivan, no livro que escreveu sobre o realizador britânico, que “quando os seus filmes são elogiados são-no porque são ‘autênticos’, seja lá o que isso signifique; quando os seus filmes são atacados, são-no porque não conseguem responder ao código restrito do realismo, um código que ele nunca alegou subscrever.”

Hard Truths (2024), que colmata uma pausa de seis anos depois de Peterloo (2018), sofre deste segundo ataque (não conseguir responder ao código restrito do realismo), e suspeito que sofrerá ainda mais quando sair do circuito de festivais de cinema e começar a estrear-se comercialmente pela Europa fora. Não tem sido fácil para Leigh arranjar financiamento para os seus filmes, muito por causa do seu método de trabalho – a falta de argumento, a falta de um processo de casting normal (Leigh prefere entrevistas de vinte minutos com os possíveis actores) e o seu típico processo-workshop: os ensaios intensos e as teias de improvisação de onde o filme nasce. Há que estabelecer um ambiente onde não haverá interferência da parte dos produtores para que um filme de Mike Leigh seja um filme de Mike Leigh, onde os momentos de elevação mais perturbadores têm tendência a ser também os mais subtis: são anti-épicos, muito contidos. Antes deste seu último filme passar pela selecção oficial do Festival de Cinema de San Sebastián (onde o vi), passou pelo Festival de Cinema de Toronto onde se estreou e onde Leigh partilhou detalhes sobre o baixo orçamento da produção, o mais baixo a que teve acesso nos últimos anos. “Isso acaba reflectido na falta de complexidade da narrativa. Mas tudo bem. Corta-se o tecido de acordo com o seu comprimento,” disse aos jornalistas. Hard Truths pode ser petite com a sua hora e meia, mas é nodoso e não carece de complexidade.
Tudo começa com Pansy (Marianne Jean-Baptiste), o centro do estudo de personagem de Hard Truths, que bebe o seu café da manhã numa casa luminosa com jardim, ainda que estéril (por decorar, carente de vivência), numa Londres pacífica e suburbana. Voltamos à luz solar fria, gélida até, da Londres de Mike Leigh. Ai as saudades das suas fatias de vida, das vinhetas tragicómicas de coragem depositada, mesmo com a imobilidade e contínua desilusão a turvar a esperança. O que parece apenas uma manhã qualquer tornar-se-á num ciclo infindável de irritabilidade e fúria descontrolada de Pansy: primeiro em direcção ao jovem filho ocioso, tão manso quanto bloqueado, Moses (Tuwaine Barrett); depois ao marido Curtley (David Webber), um carpinteiro estóico de tão silencioso, ambos incapazes de responder ao fluxo lancinante de Pansy que infelizmente não têm como evitar; mas também em direção à fervilhante e afável irmã cabeleireira, Chantelle (Michele Austin), que vive com as suas duas filhas. Logo a seguir, fará o mesmo, mas com uma empregada num supermercado, com uma rapariga que trabalha numa loja de mobília e com o homem que procura, sem fim, um lugar de estacionamento e vendo-a sentada no carro sozinha lhe pergunta se ela irá por acaso sair – só para referir alguns casos específicos que Leigh nos mostra.
Hard Truths vive neste lugar movediço, entre o reconhecível e universal e o que se desenvolveu, de facto, no tipo de infelicidade que já exige ajuda médica.
Em San Sebastián, a pequena sala do Teatro Principal enchia-se de gargalhadas devoradoras e uivantes. Toda a gente se consegue relacionar com os dramas de Pansy, são tão reais quanto imparáveis, independentemente do lugar que se habita no mundo. Quem é que deseja ser importunado numa loja de mobília pela empregada que fará tudo para vender algo ao cliente que este certamente não quer? Todos já passámos por isso, desejar explorar os produtos sem se sermos importunados. Mas a multiplicação dos rants explosivos de Pansy (“you got sperm in your brains”) torna clara a sua incapacidade de filtrar até o que é apenas ligeiramente desconfortável e o filme inclina-se – e acena – sobre aquela forma de exaustão que chegou a um ponto limite, uma exaustão que é permanente e já não tem causa. Por baixo das gargalhadas está a tristeza letal, capaz de impedir o mundo de andar em frente. Hard Truths vive neste lugar movediço, entre o reconhecível e universal e o que se desenvolveu, de facto, no tipo de infelicidade que já exige ajuda médica.

Sem querer, Leigh entrega-nos então uma amostra física da vida pós-pandemia, pós-clima de instabilidade política no Reino Unido. Tenho a certeza que é sempre assim que todas as gerações se sentem, mas a verdade é que nunca foi tão difícil estar vivo como agora. No contexto britânico, ou mais especificamente inglês (cultura esta que não cultiva o toque), o caso piora de figura, e uma possível comparação com a energia maníaca de Johnny, de David Thewlis em Naked (Nu, 1993), e a sua “honestidade” começa a fazer sentido. São duas personagens misantrópicas, que pensam libertar (Johnny de forma consciente, Pansy inconsciente) as pessoas das suas rodas comunicacionais, mostrando-lhes a hipocrisia da sociedade em que vivem. É curioso também encarar Pansy em justaposição com a optimista Poppy, de Sally Hawkins em Happy-Go-Lucky (Um Dia de Cada Vez, 2008). Colocando uma ao lado da outra na metrópole, as diferenças falam sobre um espaço no tempo, onde tudo se exacerbou e se espraiou fora das dimensões existentes. Para além de não estar confortável no seu corpo, a miserabilidade de Pansy manifesta-se na forma como esta destrói até a possibilidade da sua relação com o mundo. Leigh coloca-a a acordar do pesadelo que tem vivido, a desejar algum alívio, a expôr o seu estado mental à irmã – “Estou tão cansada. Quero que tudo pare” – tentando descobrir a razão pela qual ela não consegue realmente desfrutar da sua vida, cinco anos depois da morte da mãe de ambas.
É um filme que fica na garganta sem se dissolver logo. Verdade seja dita, sai-se de Hard Truths a tentar recuperar de suores frios sem saber o que pensar deles. Mais tarde descobre-se que o filme se faz com o tempo e no ricochete da conversa entre espectadores. Só aí é que este começa a fermentar.
A missão é empática, claro. Sobre uma universalidade abrasiva assombrada pela morte e pelo desespero – ouve-se a dada altura, “não se pode comprar tempo nem vendê-lo”. E se nenhuma personagem se toca no ecrã, o espectador certamente abraçará Pansy. Mas o filme, enquanto um todo, mostra-se inexpressivo na sua recepção. Calvo no toque, e tão improdutivo como o cenário onde o espectador cai. Talvez porque é um filme que fica na garganta sem se dissolver logo. Talvez porque reflecte mais do que teoriza. Talvez porque permanece anti-climático. Talvez porque tão pouco tempo temos com esta família. Verdade seja dita, sai-se de Hard Truths a tentar recuperar de suores frios sem saber o que pensar deles. Mais tarde descobre-se que o filme se faz com o tempo e no ricochete da conversa entre espectadores. Só aí é que este começa a fermentar, com a possibilidade hábil de surpreender e até mostrar-se por aquilo que é: ainda um nenúfar de Mike Leigh, uma adição aos seus outros nenúfares igualmente necessária e impressionante no que diz sem ruído. E Hard Truths tem tanto a dizer sobre o que trazemos connosco todos os dias, sobre as verdades duras na vida familiar que não foram assimiladas, sobre como nos separamos uns dos outros nos nossos caminhos.

Seja como for, há que dizer que a estratégia de entrada no filme não é infalível, ainda que seja um processo muito humanizado, porque somos colocados no lugar dela. A primeira parte do filme expõe a euforia da miserabilidade da personagem e a segunda cai na depressão da sua agonia, e na mudez que esta provoca, assim que a personagem admite sofrer do que sabe que sofre. Este sair do corpo e olhar para ele, de fora, é vigoroso mas poderia cair na caricatura. Felizmente a focada performance de Marianne Jean-Baptiste, que volta a trabalhar com o cineasta depois de Secrets and Lies (Segredos e Mentiras, 1996), não dá sequer abertura para tal e este nunca chega a resvalar no ridículo. Há o receio também de a audiência se afastar dela, ainda mais do que Pansy se afasta de si mesma. Especialmente tendo em conta a temperatura sempre amena e constante em que o filme opera, mais amena do que é comum com Leigh. O espectador estará à espera e depois começará mesmo a ansiar que o filme desça às profundezas do que aflige Pansy. Mas não encontrará essa dor. Nada arde e tudo se vê. Pensando melhor, talvez seja mesmo esse o alvo. Replicar a nefasta leveza da tragédia.