Os walshianos reúnem-se para dizerem de sua justiça em relação a um dos filmes mais divisivos da temporada: Megalopolis (2024). Este é o primeiro de dois textos coletivos em torno do novo filme de Francis Ford Coppola.
É preciso querer ter memória, de espetador implicado e de cinéfilo disponível, para não recusar, de supetão, um filme como Megalopolis, depósito de referências e triturador das pressas e linearidades. Para lá da adjetivação, de defesa ou acusatória, Megalopolis é um filme que pede candura e comedida condescendência, porque reúne o que já antes estava em The Cotton Club (1984), nas suas entusiasmadas e alienantes festas; em Tucker: The Man and His Dream (Tucker – O Homem e o seu Sonho, 1988), na vontade expressa de defender o sonho americano; em Tetro (2009), no pacto faustiano que vai estruturar o duelo entre todos estes reversos de si mesmos; até no capítulo de New York Stories (Histórias de Nova Iorque, 1989), na fantasia sobre como herdar uma ideia de cidade; para além de tudo o que remeta para Apocalypse Now (1989) e se possa ter estado no guião, nunca filmado de The Great Gatsby.
São estas ideias de cinema que se vão acrescentado, camada por camada, num filme que trabalha a dimensão épica da única forma possível, anunciando e confirmando a tragédia a que estamos condenados (e os americanos ainda mais, na pressa de correm atrás da história e nela se inscreverem como se tivessem sido os primeiros, os eleitos, os únicos herdeiros). Megalopolis é um filme cheio de vontade em não o ser, porque sabe que o real se moldou para ser como nos filmes, e isso até se aproxima de uma ideia – talvez um mito – de que Coppola queria que o seu Bram Stoker’s Dracula (Drácula de Bram Stoker, 1992) fosse todo como na cena em que Gary Oldman e Winona Ryder dançam por entre vários candelabros, fazendo da récita visual uma narrativa puramente auditiva, e na imagem, nos fixássemos apenas no som. Uma peça de teatro radiofónica, afinal, para nos aproximarmos da experiência sensorial de habitar, por dentro, um filme sobre sangue, pulsões e imaterialidades. Como este Megalopolis, afinal, filme sobre e de espanto, como se nos quisesse transformar nos primeiros espetadores de uma nova invenção, precisamente o cinema, tal como terá sido com os que o viram, no tempo de Bram Stoker, nas feiras de variedades, bizarrias e curiosidades, onde a imagem era ainda, ou já, demasiado insuportável para ser real.
Megalopolis – como outros filmes feitos no tempo no qual este parece vir, como Blade Runner (Blade Runner: Perido Iminente, 1982), e a cidade de Los Angeles em 2019; Brazil (Brazil: O Outro Lado do Sonho, 1985), e a reinvenção de um espaço entre o sonho e o falso; Batman (Tim Burton, 1989), a sempiterna Gotham a mostrar as sombras de Nova Iorque – trabalha uma relação com o tempo através da suspensão, reescrita ou previsão, gerindo-o, e a nós, como se inventasse uma nova ou outra forma de o fazer passar, mais próxima a um desejo de dilatação e expansão complementar – multiverso, resumir-se-ia, se quiséssemos aproximar este filme ao rolo compressor dos filmes de super-heróis, contra os quais se tem que bater para se tornar lisível, filtrável, correspondido. Esta remontagem de um património cinematográfico, de uma memória de espetador e de um caudal de referências é perturbadora precisamente por expor a revisitação, agora como tragédia, da farsa humana, ansiosa, afã e ofegante em querer demonstrar-se liberta de tudo, preparada para tudo. Um filme sábio, que avisa, mesmo que já ninguém escute o ancião, porque apressado em querer saber o que pode respigar e tornar seu, quando afinal, a surpreendente mensagem parece ser a de que sempre precisamos de confiar, acreditar e desejar continuarmos juntos. Em frente a um ecrã, na construção de uma cidade, na educação e ação cívicas.
Tiago Bartolomeu Costa
Megalapolis vibra e, mesmo assim, vibra com pouca intensidade, como o tremor de terra que há uns meses despertou os portugueses com um ligeiro embalar, nos períodos em que a intriga política é suspensa, dando lugar à alucinação. O delírio rompe com os modelos de percepção padronizados e cria inteligibilidades através das quais, no contexto deste filme, novas concepções do ser humano são arquitectadas. Ou seja, o carácter visionário do protagonista, que é acometido por visões do passado e do futuro, é indissociável da sua propensão para a alucinação, uma vez que é nesse desvio da compreensão convencionada da realidade que está a potencialidade para se projectar novas maneiras de ser e de se estar em sociedade. O cinema tem algo a dizer sobre esta matéria, na medida em que se afigura o meio ideal para conjurar delírios que dão origem a novas formas de ver e, por isso, pensar sobre a realidade e o futuro que se quer ter. É significativo que Cesar Catalina (Adam Driver), um cruzamento de artista, cientista e mágico, seja capaz de parar o tempo, de estatuificar o real, sendo que, numa cena, o contrário acontece, e as estátuas ganham mobilidade e vida no instante em que são destruídas. A capacidade de Cesar Catalina parar o tempo, uma aptidão inexplorada apesar dos discursos prolixos sobre o assunto, fazem-me pensar, de novo, no cinema, porquanto a ambição de dar forma ao tempo e de o manipular é uma fantasia a que o cinema responde ao tornar o tempo visível. E essa visibilidade pode ter uma dimensão delirante, na medida em que as relações de aceleração e distensão do tempo, que as imagens em movimento permitem, são capazes de perturbar a percepção do espectador, impelindo-o, por exemplo, a pensar e experienciar o ritmo da vida de maneira diferente ao sair da sala de cinema. Portanto, faz sentido que o megalon, o material de construção mágico que Cesar Catalina inventa, se assemelhe a uma luz (a do cinema) que ganha substância e se torna moldável. As suas construções são uma espécie de holograma, projecções de luz, pelo que perto do final do filme compreendemos que a cidade e o próprio artista são agora constituídos dessa matéria cinematográfica. O futuro, da humanidade e das suas criações, pertence ao cinema, diz Coppola.
No entanto, a alucinação manifesta-se apenas em duas ou três sequências, como a visita ao fantasma da mulher ou a quase morte do protagonista, e num rasgo ou outro que pontualmente rompe com a lógica romanesca que enterra o filme em analogias históricas estéreis que entrelaçam, sem critério, o presente e o passado com o intuito de perspectivar o futuro. Alguns dos momentos mais pobres do filme são exactamente aqueles em que as personagens discutem o futuro da humanidade, recorrendo amiúde a frases feitas, ditas com solenidade, e citações provenientes de autores cuja obra se adivinha que nenhum dos envolvidos leu. Tendo eu próprio um pezinho na academia, estou familiarizado com o recurso gratuito à citação como um instrumento que visa mascarar uma reflexão que ainda não está devidamente consolidada. O problema é que uma citação penetrante num contexto discursivo empobrecido soa a estupidez maquilhada. Um dos episódios mais inadvertidamente disparatados de Megalopolis, e existe uma forte concorrência nesta matéria, encena uma guerra de citações, com Marco Aurélio a ser citado três vezes consecutivas sem que, contudo, se sinta que há um entendimento dos pensamentos do autor ou, mais grave ainda, se vislumbrem ideias próprias. Percebe-se que este tipo de discurso almeja a sagacidade, mas soa imaturo, em particular porque os actores têm um ar deslocado, de quem está a recitar palavras cujo sentido ignora. Ainda assim, sequências como a mencionada superam a maquinação inarticulada da intriga política, protagonizada por três homens que disputam a liderança de New Rome, e do romance central, que não tem espontaneidade e que é, desde o começo, somente uma conveniência simbólica: a da união de dois polos aparentemente opostos. É à margem desta ganga toda, ou seja, da fábula mais propriamente dita, e do seu enredo fastidioso e discursos pernósticos, que Megalopolis reluz, ainda que brevemente e sem consequência.
Tiago Ramos
Está a passar num dos canais da TV um mal-amado filme de Coppola, Jack (1996), que, por puro preconceito, nunca tinha visto: nele, um jovem tem um tipo de desenvolvimento genético que o faz crescer quatro vezes mais depressa do que os outros. Assim, com dez anos, ele tem a aparência física e o metabolismo (não pára de crescer) de quarenta. O que é que isto tem a ver, pode-se perguntar, com Megalopolis de Coppola e o cinema? Na verdade, o cinema é também um organismo metabólico complexo pluri-medial e corpóreo (há sempre vários corpos nele) que se desenvolve, dentro e fora de nós (Jean Louis Schefer nunca deixou de escrever sobre isto), com uma velocidade e corpulência em que nos podemos projectar mas que nunca conseguimos suster (com-preender). Ele é o bom (ou mau) “gigante” (como os outros miúdos chamam a Jack) que nos acompanha e Megalopolis o fruto caído da experiência dessa constante desproporção e do desejo impossível (∞) que ele desperta em nós (por isso o amamos e nos encontramos na sua dependência). A sua matéria, DNA ou código genético, assim, é outro e tem aqui o nome de megalon: a substância, matéria paradoxal (física, plástica e mental) de que tanto se constitui o mundo (por isso Cesar é arquitecto) como, claro, as imagens (filmes). Arquitectura e bio-química, se não me engano, é aliás o título do livro escrito por Cesar Catilina (outra contradição nos termos).
Com efeito, lembro-me como Eisenstein, confrontado com o polimorfismo dos desenhos animados – a sua capacidade de constantemente produzir novas formas e assim reconfigurar o mundo –, nas páginas que escreveu sobre Walt Disney, aludiu a uma propriedade, não só das imagens mas da própria matéria, que designou por plasmaticidade e em que ele entrevia um “elemento proteano que [tinha] a ver com a omnipotência do plasma o qual [continha], no seu aspecto líquido, todas as formas e aparências possíveis em gestação” (Walt Disney, Circé, 1991 [92]). Uma mesma substância metaplástica e metamórfica que, no seu fluxo contínuo de formas (mobilizadas por uma montagem-vídeo, herdeira do Godard dos anos 70 e 80, capaz de jogar com os contrastes abruptos de planos e a arquitectura flexível das sobre-impressões), teria a capacidade de re(dis)solver as antinomias (entre o fixo e o móvel, o mole e o duro, o visível e o invisível), superando-as no carácter hologramático de uma imagem (um interface material-imaterial que palpita entre o visível e o invisível) que se plasma (é bem o termo) na tessitura do tecido que porta Vesta na cerimónia do casamento de Wow e Crassus.
Se a imagem descola da matéria (de um modelo causal e “realista” de narrativa) isso quer também dizer que se torna mais adequada a dar, no seu fluxo, o processo/metamorfismo do pensamento. Daí, pensamos, a dupla dimensão (coral, enunciativa) do filme: o seu lado operático (não interessa tanto o que as personagens dizem – ou discuti-lo – como estar atento à sonoridade e às modulações harmónicas ou polifónicas das palavras e discursos [Shakespeare + Verdi]) mas também o seu lado mental, já que este é um cinema do pensamento (como Eisenstein sempre o desejou) que, contudo, insatisfeito com o que poderia ser o seu carácter meramente conceptual, procura ainda gerar no vórtice das suas formas (porque este é também um cinema da percepção) algo que seja da ordem do vivo, isto é, do nascente. Saudemo-lo por isso.
Fernando Guerreiro